"É como se estivesse na Liga 3". Em Aveiro, o futebol é distrital, mas a transmissão é de I Liga

A Associação de Futebol de Aveiro transmite, em direto, todos os jogos da primeira divisão distrital. Um processo centralizado que atrai verbas, jogadores, notoriedade e profissionalismo a um campeonato que é maioritariamente amador.

16 jan, 2024 - 08:00 • Eduardo Soares da Silva



"É como se estivesse na Liga 3". Em Aveiro, o futebol é distrital, mas a transmissão é de I Liga

É domingo à tarde. No ecrã, começam a ser apresentados os onzes iniciais. Há grafismos de tempo e resultado, patrocinadores e até repetições dos golos e dos principais lances. Não é um jogo da Premier League nem sequer da I Liga portuguesa. São jogos do distrital de Aveiro, onde já não é preciso ir ao estádio para ver as partidas. Passam todas, na íntegra, no YouTube da associação.

As transmissões ao vivo começaram esta época, mas foi apenas o passo mais recente de um projeto com oito anos. Foi nessa altura que foi criada a AFA TV. Até esta época, os jogos eram gravados para uma transmissão em diferido, publicada nos dias seguintes. Os clubes começaram a pedir mais.

“Queriam mostrar os jogos aos seus adeptos, são extremamente ousados. Levou-nos a melhorar as condições e só seria possível com uma transmissão em direto”. E assim se deu o próximo passo, segundo explica à Renascença, o presidente da associação, José Neves Coelho.

No final do encontro, os treinadores e jogadores também vão à “flash interview”. Explicam-se derrotas, destacam-se vitórias. Protesta-se e celebra-se. Tudo fica gravado e cerca de 40 mil adeptos assistem, todas as semanas, a estes jogos da "quinta divisão nacional".

Noutras associações distritais, apenas alguns encontros são transmitidos: dérbis relevantes, jogos decisivos na luta pela subida de divisão... Os clubes que estiverem interessados em transmitir os jogos têm de fazê-lo com os seus próprios meios. E em campeonatos em que, para além da visibilidade, também é pouco o dinheiro envolvido, nem todos o conseguem suportar os custos.

“Mais visibilidade do que na terceira divisão”

Uma transmissão televisiva - ao vivo e em alta definição - e a oportunidade de prestar declarações no final do encontro ajudam a aproximar o campeonato do profissionalismo.

João Ferreira é treinador do Sporting de Espinho, atual segundo classificado da prova. É a sua terceira passagem pelo clube. A última, entre 2019 e 2021, aconteceu no Campeonato de Portugal, à data ainda a terceira divisão.

Explica que os jogos do Espinho eram transmitidos, ocasionalmente, na televisão, através do Canal 11. Em matéria de visibilidade, a comparação só pode ser feita aos patamares superiores. “A esse nível, é como se estivéssemos no Campeonato de Portugal ou na Liga 3", confessa.


A competição cria um “élan profissional”, segundo João Ferreira: “Obriga-nos a elevar o rendimento, a dedicar mais tempo e com mais detalhe do que se estivéssemos noutra competição do mesmo patamar, mas noutra associação."

Poder assistir aos jogos permite também prepará-los melhor. Ao contrário do que acontecia, já ninguém na equipa técnica tem a função de se deslocar aos estádios e gravar os jogos dos adversários: "Já não foi preciso, porque sabíamos que a AFA iria proporcionar este serviço."

Na mais recente jornada, o Espinho foi até Fermentelos vencer por 3-0. No fim do dia, João e a equipa técnica começaram "a tirar dúvidas e a fazer a reflexão".

"Quando chegamos a casa, podemos começar também a observar o nosso adversário seguinte. Aliás, posso ir ver todos os jogos anteriores", o que é "muito útil".

Mas há quem viva a emoção em tempo real. "Já vimos elementos das equipas técnicas de tablet no banco de suplentes a acompanhar os outros jogos", diz Neves Coelho.

"A transmissão dá uma imagem diferente do que é o nosso campeonato. Sempre foram muito competitivos, mas, com a transmissão, acaba por ser ainda mais impactante para quem nos segue", diz o presidente.


João Ferreira voltou ao comando técnico do Espinho esta época. Foto: DR
João Ferreira voltou ao comando técnico do Espinho esta época. Foto: DR
O Espinho joga de casa às costas até à construção do seu estádio. Foto: DR
O Espinho joga de casa às costas até à construção do seu estádio. Foto: DR


Entre 30 e 50 mil pessoas assistem, todas as jornadas, aos diferentes jogos que decorrem em simultâneo. “Há jornadas com jogos mais interessantes. A chuva e o sol também afetam, mas uma boa jornada facilmente chega às 50 mil visualizações”, contextualiza o diretor de comunicação da AF Aveiro e um dos principais impulsionadores do projeto, Pedro Abelha.

Até hoje, pouco falhou e todos os jogos tiveram transmissão em direto. O que por si só é um feito, consideram os responsáveis. O campeonato é distrital e amador, ou seja, a maioria dos envolvidos - jogadores, treinadores e dirigentes - subsiste à base de outras profissões, o que acarreta dificuldades na logística das transmissões. Há muitos imprevistos.

“No tempo das chuvas, os clubes com relva natural ficam em péssimo estado e alteram-se os estádios. Passa-se para o das camadas jovens e temos de adaptar rapidamente a logística”, explica Pedro Abelha.

Os bons resultados trazem responsabilidade acrescida para “manter a qualidade e o nível da transmissão”. Esse é o compromisso da AFA: “As pessoas confiam, daí as visualizações."

E contextualiza os números. Coloca-os no mesmo patamar dos jogos da Liga 3, o terceiro escalão nacional, um campeonato com clubes históricos e mais dinheiro envolvido: “O nosso pior jogo é equivalente ao melhor de qualquer outra associação distrital. Os melhores estão ao nível dos grandes jogos da Liga 3, quando são transmitidos no YouTube. Obviamente que não pode ser comparado com os números da televisão."

Mas qual o custo das transmissões? Neves Coelho diz que "não é fácil quantificar", tanto mais que o investimento inicial na compra das câmaras foi feito há quase uma década. Mas garante que só é possível com apoios.

Os números das transmissões são atrativos. O principal patrocinador é uma seguradora que dá também nome à II Liga. Uma loja de calçado nacional e um hotel são também patrocinadores relevantes e ajudam a "tornar o projeto possível".

"Seria impensável os clubes sustentarem um investimento destes, independentemente de serem os beneficiários do projeto", explica o presidente.

É mais fácil contratar jogadores

No futebol distrital, a visibilidade pode ser um dos fatores mais importantes para jogadores e treinadores. Uma porta aberta para um contrato profissional, uma rampa de lançamento para o sonho de vários anos. Em Aveiro, é mais fácil tornar isso possível.

"Podem criar um veículo de promoção individual que não existe em mais lado nenhum", explica João Ferreira.

No momento de contratar, a possibilidade de autopromoção é um argumento vencedor: "Podemos cativá-los desta forma, os jogadores valorizam isso. O Espinho, por si só, já tem uma grande visibilidade, mas podemos acrescentar esta coleção de imagens como argumento. Faz a diferença quando estamos a tentar negociar com jogadores de outras associações ou do Campeonato de Portugal."

O treinador vai mais longe, apontando que há "muitos, muitos, muitos jogadores da Associação de Futebol do Porto que todos os anos torcem para vir jogar para Aveiro".


José Neves Coelho é o presidente da associação distrital de Aveiro. Foto: AF Aveiro
José Neves Coelho é o presidente da associação distrital de Aveiro. Foto: AF Aveiro

"Um jogador da Liga 3 e do Campeonato de Portugal tem muitos vídeos seus. Pode mostrar-se a um empresário, a um clube, a um treinador. Um treinador ou jogador que esteja na AF Porto tem muita dificuldade. Aqui, são 90 minutos sobre 90 minutos, 34 jogos mais as finais", atira. E o "jogador de hoje" não despreza essa possibilidade.

"Rapidamente, está nos olhos de milhares de pessoas", assinala.

Para além de ajudar a trazer jogadores, a transmissão traz também dinheiro. Embora centralizada, a AF Aveiro permite a possibilidade de uma nova fonte de receita para os clubes, uma vez que, ao longo das duas horas em direto, há espaços de promoção aos patrocinadores de cada clube.

“Têm sempre essa possibilidade de partilhar os seus patrocinadores e angariar fundos através dessa ferramenta”, garante Neves Coelho.

Transmissão não afasta adeptos. Convence-os a voltar

Se assistir ao jogo em alta qualidade é fácil, porquê sair do conforto de casa? É a principal crítica apontada ao projeto. Não há dados disponíveis, mas o presidente da associação garante que não é isso que acontece.

“Os adeptos voltaram a interessar-se pelo jogo e começam a voltar aos estádios, coisa que não acontecia. Se estiver mau tempo, podem ficar em casa, mas isso já acontecia antes. Agora, acompanham a equipa de forma mais regular e, depois, deslocam-se aos campos pelo movimento que se cria, domingo após domingo, com estas transmissões”, acredita.

O Espinho é um clube que vive de casa às costas. Enquanto um novo - e muito aguardado - estádio não está pronto, o histórico com 11 participações na I Liga passou, nos últimos anos, por Nogueira da Regedoura, Fiães e Ovar.

Há adeptos que não se identificam e, por isso, não se deslocam para fora do concelho para assistir aos jogos.


João Ferreira viveu uma época em cada um dos estádios. Gosta de “bancadas cheias, muito público em redor da equipa e muito apoio”. Contudo, é sensível aos constrangimentos.

“Somos felizardos, porque, de facto, conseguimos sempre criar uma grande envolvência. Sei de famílias que, não podendo ir aos jogos, reúnem-se a ver o jogo na televisão. Chega-nos este 'feedback' e preenche-nos de alguma maneira”, reconhece.

Ferreira confessa alguma preocupação face à possibilidade de a situação afastar adeptos dos estádios, mas tem a certeza de que também já resultou ao contrário: “Abre-se a possibilidade de que esses adeptos se emocionem com o jogo e qualquer dia decidam voltar ao estádio. Pode funcionar por aí, de certeza que já funcionou em alguém”, argumenta.

Dentro de campo, o campeonato está ao rubro. Só existe uma vaga de subida ao Campeonato de Portugal. O União de Lamas lidera a classificação, mas Espinho, Ovarense e Paços de Brandão seguem com a esperança viva para a segunda volta.

Está criado um ecossistema que começa a ficar oleado. Os adeptos passaram a acompanhar todos os jogos, valorizam-se jogadores, os treinadores preparam melhor as partidas e os clubes conseguem contratar melhor e angariar receitas adicionais. “Com custos realistas, todos saem a ganhar. É um fenómeno com ciência simples”, aponta o diretor de comunicação do clube, Pedro Abelha.

Aveiro foi pioneiro, mas gostaria de ver outras associações a seguir o seu caminho. Internamente, já se discutem os próximos passos do projeto.

"Vamos tentar fazer mais e melhor, mas avançar de forma calma e serena. Talvez alargar para as outras divisões da nossa associação para que também se sintam integrados por completo", remata Abelha.