Dani. "É o Cruijff quem escolhe o número 14 para mim no Ajax"
12-10-2023 - 18:00
 • Rui Miguel Tovar

Aquele português cuja carreira futebolística se podia assemelhar a um monitor de batimento cardíaco, pela quantidade de altos e baixos. Dani deslumbrou-nos em 1995, no Mundial do Qatar sub-20, deixou-nos de boca aberta quando anunciou o adeus ao futebol, aos 27 anos de idade. É o convidado desta semana no Jogo de Palavra.

Dani. Esse mesmo, aquele português cuja carreira futebolística se podia assemelhar a um monitor de batimento cardíaco, pela quantidade de altos e baixos. Deslumbrou-nos (a nós portugueses, a nós amantes do futebol, a nós cidadãos do mundo) em 1995, no Mundial do Qatar sub-20, deixou-nos de boca aberta quando anunciou o adeus ao futebol, aos 27 anos de idade. Podíamos estar aqui a escrever páginas e mais páginas sobre ele.

Ele, Dani. Não, não o outro de que também se fala, o das passagens de modelo, o das noitadas. Desse, não há vídeos, nem referências, só conversa de taberna. Falo do Dani futebolista. Aquele que, uma vez, pegou na bola do meio-campo e aí fintou logo dois argentinos junto à linha lateral, depois mais um, a seguir outro, até que lhe apareceu o guarda-redes e tocou-lhe por entre as pernas. Não é Maradona (este fintou seis ingleses), é Dani. Marca registada.

Aconteceu em Abril 1995, em pleno Mundial sub-20, de boa memória para Portugal, terceiro classificado. Como dizem os brasileiros, a Dani só lhe faltou fazer chover. Além do título de segundo melhor marcador da prova (Bota de Prata), foi eleito o segundo melhor jogador (Bota de Ouro), atrás de um obscuro Caio, brasileiro que nunca se conseguiu impor no futebol europeu. A Dani, podem queixar-se de muitas coisas, de exibições apagadas, de golos falhados, de expulsões absurdas, como aquela no Rapid Viena-Sporting, precisamente no dia do seu 19.º aniversário. Podem, e devem.

Se virarem o disco ao contrário, também podem ver o lado B, o lado bom. Os dois golos de cabeça ao Rangers (4-1 para o Ajax) na sua estreia na Liga dos Campeões, lançado por Van Gaal. A explosão de alegria por decidir um dérbi londrino entre Tottenham e West Ham (0-1). O orgulho de ter sido campeão espanhol da 2.ª divisão, treinado por Luis Aragonés, esse decano do futebol que deu o título europeu à Espanha em 2008. A fantástica oportunidade de ter sido aposta de José Mourinho no Benfica. E aquele golo de 30 metros no Atlético Madrid-Ajax, também para a Liga dos Campeões, ainda hoje no top 10 dos melhores de sempre do Ajax, entre uns de Van Basten e outros de Cruijff.

E foi este que, espantado com a sua técnica, o seu ritmo e o seu estilo, lhe deu autorização para vestir a camisola 14 na segunda época de Dani em Amesterdão (leu bem, sim senhor, autorização; porque isto dos mestres é coisa séria e respeitável) – na primeira época, era o 21 com Carvalho escrito nas costas. Seja como for, Daniel da Cruz Carvalho tem o seu lugar na história. Nas passarelas do futebol. É a sua marca registada. Ouçamo-lo.

Depois de termos aqui António Simões e Manuel Fernandes, reduzimos a fasquia da idade e mantemos o nível futebolístico. O nosso convidado é Dani e a minha primeira pergunta tem a ver com o tal golo à Argentina. É seguramente o único golo maradoniano à Argentina. Que memórias?

Muito obrigado pelo convite e à Rádio Renascença, é um gosto conversar contigo. E obrigado a todos os que nos estão a ouvir. Para mim, esse foi o golo mais difícil que marquei na carreira porque vem de um lançamento lateral e nada de extraordinário resulta de um lançamento: ou perdes a bola ou devolves ao teu colega. Foi o Mariano quem fez o lançamento. Aproximei-me dele e, à conta de muita confiança, minha e passada por toda a equipa, pedi-lhe a bola. Vieram logo dois jogadores argentinos e eu libertei-me. Depois é a intuição que me leva por ali fora, é a paixão pelo jogo, é a tua capacidade, a tua irreverência, a tua capacidade de acreditar. Não tens receio, não tens medo. Tudo isso vem de ti, vem da alma, da tal confiança em ti, da tal confiança da equipa em ti. Lembro-me que passei pelo Juan Pablo Sorín antes de chegar ao guarda-redes e, de vez em quando, falo com ele.

O Sorín, pois é.

Fez um documentário há uns tempos e ligou-me para aparecer. Depois fui ao Qatar em trabalho para o Mundial 2022 e encontrei-o. Disse-me, 'foste o único jogador que me fez uma finta daquelas, quase caí para trás. Nunca mais me fizeram uma coisa daquelas'.

E depois?

Quando sai o guarda-redes, meto a bola por entre as penas e foi um golo extraordinário. Deu-nos uma confiança para o resto do Mundial. Mas o melhor em campo desse jogo foi o Quim, o nosso guarda-redes fartou-se de defender. Ele, os postes e a trave. A Argentina tinha uma equipa bestial, fantástica, jogava muito muito muito à bola.

E foi campeã mundial.

Exacto, 2:0 ao Brasil. Só perderam connosco.

E, já agora, o que se passou com o Brasil na meia-final?

Tínhamos três ou quatro jogadores adoentados, eu incluído, e jogámos com um calor. Ainda agora estava a ler sobre o GP Qatar na Fórmula 1 sobre as queixas dos pilotos e os 40 graus à noite e os 60/70% humidade. Nós jogámos com 110 de humidade. Não se conseguia respirar, era terrível. E depois havia o Havelange, que era o presidente da FIFA e nesse dia senti pela primeira vez o que era frustração de uma arbitragem tendenciosa. O jogo foi até aos 98 ou 99 minutos, até ao Brasil. Foi uma coisa ridícula. Eles marcaram pelo Caio, que foi eleito o melhor jogador do Mundial quando havia outros, muitos outros. A Argentina tinha Ibagaza.

E Biagini.

Também, sim. A Espanha tinha Raúl, Etxeberría e De la Peña. E o Brasil tinha o Zé Elias. Que pés e parecia o Redondo, sempre de cabeça levantada. Sempre com o pé esquerdo, pau, pau, pau. E eu a marcá-lo com 30 e muitos de febre. Estávamos mortos, todos. Depois desidratados. Chegou uma altura em que já não tínhamos mais força. Tínhamos muitos jogadores bons, que driblavam fácil dois ou três adversários e conseguiam sair rapidamente para o ataque. Nesse jogo, não tivemos a mínima hipótese.

Entre o golo à Argentina e a derrota com o Brasil, há um livre famoso contra a Holanda. É uma jogada combinada?

É, sim, já treinávamos isso desde os 15 anos. Foi uma ideia do mister Nelo Vingada, ele tinha essa jogada na cabeça e meteu-nos a treinar aquilo. Ele e o Agostinho Oliveira estavam sempre ali em cima de ti, a incentivar-te, a picar-te, a mandar bocas. E o próprio Rui Caçador também. Então nós treinávamos aquilo, o partir para a bola ao mesmo tempo, o empurrar um ao outro. Só que nunca tínhamos feito num jogo. Naquele dia, eu e o Bruno Caires decidimos 'epá, vamos fazer hoje'. Foi o 3:0 e, antes, tinha marcado o 2:0 de canto directo. Fiquei de braço no ar a apontar para a minha mãe, que estava na bancada. Quando cheguei ao Ajax, falaram-me desse golo. Holanda, não é?

Ahahahah. O 3:0 é do Agostinho?

De cabeça. Quando marca, fica de braços cruzados, assim parado. Esses momentos são espectaculares. Podia ter terminado a carreira ali, já estava feliz. Sabia que já tinha vivido coisas que nunca mais iria ver no futebol profissional.

Porquê?

Porque é profissional. Naquele Mundial, tínhamos de dar tudo para chegar ao próximo nível e chegámos. No Mundial anterior, em 1993, na Austrália, ficámos em último lugar no grupo e voltámos para casa mais cedo que o previsto, ainda por cima sem qualquer vitória. Quem se salvou dessa selecção? O Porfírio e mais alguém?

Só o Porfírio, acho.

Sabíamos que aquela era a nossa oportunidade de ser alguém daí para a frente. E lembro-me de estarmos a perder com Honduras no primeiro jogo da fase de grupos. Marcámos primeiro, eles deram a volta antes do intervalo e houve um colega meu que me disse 'por favor, por favor, faz alguma coisa'. Precisamente por isso, a necessidade de passar a fase de grupos era o mínimo dos mínimos. Demos a volta na segunda parte e ganhámos 3:2. No jogo seguinte, Honduras apanhou uns nove ou sete da Holanda. Connosco, estavam fresquinhos e deram tudo. Nós passámos as Honduras ali à tangente e ficámos a pensar que ainda faltavam Argentina e Holanda. Portanto, passámos o adversário tecnicamente mais fraco, mais acessível.

Agora é que vinham as dificuldades. E passavas será que vou passar a fase de grupos, será que vou dar jogador, será que vou ter mais oportunidades. E depois há a lógica do futebol, que não é nenhuma ciência exacta. Por muito que acredites em ti, há adversários. Aquilo à nossa frente não são pinos, eles mexem-se e também fazem o seu trabalho. Então, lembro-me perfeitamente de apanhar uma bola no meio-campo, com o Madureira ao pé de mim, e comecei a driblar em slalom. Finto um, dois, o guarda-redes e faço 2:2 sempre com o Madureira ao meu lado a incentivar-me. Mal a bola entra, ele agarra-se a mim e diz umas palavras que não posso dizer aqui. Só depois da meia-noite, ahahah. Esse sentimento do Madureira é transversal àquela selecção, éramos amigos, todos amigos. Vê-se nos festejos.

E vê-se isso no jogo do 3.º e 4.º lugares com a Espanha.

Eischhhhh, esse jogo é espectacular. Na primeira parte, 2:0 para eles. Marcava eu o De la Peña. Ele dá-me duas [hesita na palavra], duas cuecas, vou dizer mesmo essa palavra. Ele dá-me duas seguidas e quase caí. Só pensei ‘epá, este rapaz joga tanto tanto tanto à bola.’ Eles fazem dois-zero. Ao intervalo, juntámo-nos no balneário, nos chuveiros, e conversámos. ‘Eles parecem que andam de moto e nós de triciclo. Não, fogo, não, não vamos sair daqui a perder. Vamos lá, vamos lá com tudo e ganhámos 3:2. Dois golos do Nuno Gomes e um meu.’ Foi uma coisa. Aquilo veio da alma, veio do coração.

Era uma Espanha com Raúl, Etxeberría, De la Peña e ainda Michel Salgado, não é?

Ele marcou-nos um golo, o Michel marcou-nos. O Raúl já jogava na primeira equipa do Real Madrid, aquilo [do Mundial] já não era aquela coisa. A Holanda, por exemplo, já não levou Seedorf nem Davids. Mas lembro-me deles no Euro sub18, no ano anterior. E não me sai da cabeça uma jogada dele em que leva a bola à frente com os nossos maiores quatro matulões nas costas dele. O Seedorf, pffffff [Dani faz uma careta como quem diz ‘esse menino era um fenómeno’]. Ele tinha umas pernas [Dani alarga as mãos]. Que cabedal. E já tinha saído do Ajax, já tinha jogado na Sampdoria, ia ainda fazer história no Real Madrid, Milan e por aí fora. É um porreiraço e, por acaso, fala português. Aprendeu a falar.

Vieste do Qatar e, dois meses depois, ganhas a Taça de Portugal pelo Sporting. Estavas no banco?

Estava, sim, ganhámos 2:0 ao Marítimo. Ainda fui aquecer, mas quem entrou foi o Sá Pinto. Para o lugar do Iordanov, se não me engano.

Foi ele quem marcou os dois golos dessa final.

Exacto, foi ele.

E foi a despedida de Figo mais Balakov. Que tal esse balneário?

Sá Pinto, Figo, Marco Aurélio, Capucho. Todos esses eram-me próximos, eram mais abertos. O Oceano, claro. O capitão era uma coisa maravilhosa. O Carlos Xavier, o Carlinhos. E o Naybet.

Ya, o Naybet. Craque.

Não falava bem a língua e tinha um feitio difícil de ser tão competitivo. Era um tipo porreiro, quando acabava o treino. Ahahah. Até lá, muito muito competitivo. Uma vez, ao intervalo de um jogo em que tudo nos saía mal e tudo saía bem ao adversário, o gajo agarrou numa marquesa e, puuuumba, contra a parede. E nós, epááááá. Depois do jogo, quando fazíamos sauna e tal, o Naybet já era outro. Há jogadores que se transformam em campo, alguns chegam ao campo e notas essa transformação na linguagem corporal. Às vezes, basta o olhar. Ou então há outros indícios, como os braços tensos, as veias a sair, os dentes, os maxilares.

Meses depois dessa conquista, és emprestado ao West Ham. Jogava lá o Bilic, grande croata.

Roqueiro, filósofo, simpatiquíssimo, casado com uma mulher lindíssima e levava-me de carro para os treinos. O West Ham contratou-me e pensou que eu tinha carta. Não tinha. Então quiseram dar-me um carro. Disse que não. Primeiro não queria porque não, depois eles conduzem ao contrário e não queria ir por aí. Deram-me um carro com motorista. E, às vezes, era o Bilic, daqueles jogadores cativantes, com seis / sete imagens diferentes da sua versão, todas elas cativantes, emocionantes. Do que me lembro mais dele é a ler filosofia. Um dia, disse-lhe que o meu pai era professor de filosofia, ele empolgou-se e eu ‘epá, fala com o meu pai’. Ahahahah. O Bilic já tinha uma estrutura intelectual extraordinária, só que eu era um sub-20. Tenho pena de não ter 24 ou 25 anos para poder falar com ele sobre esses assuntos. Ainda hoje falamos.

E ele, igual a si mesmo?

Tudo tudo tudo tudo. Sempre o mesmo. Já foi treinou na Premier League, já foi seleccionador da Croácia. E se reparares bem, ele de repente desaparece uns seis / sete meses sabáticos. Vai descansar, vai à vida dele, vai instruir-se e desenvolver-se. É daquelas personagens cativantes. É daquelas pessoas que se atravessa na tua vida e deixa uma marca para sempre.

Também lá estavam Rio Ferdinand e Frank Lampard?

Ainda nos juniores. Só saltaram para a equipa principal no final dessa época. O Lampard sempre do West Ham, o Ferdinand tinha vindo do Leeds.

E então, já se notava o que eles iam ser?

Não, não, ainda não. E, depois, aquele treinador [Harry Redknapp] não queria nada com os jovens. Só queria era contratar jogadores e ganhar dinheiros. As comissões, isso é que era. Passei mal com ele. O Porfírio também passou as passas do Algarve. E o Futre também. Todos no West Ham, era um treinador com uma mentalidade daquelas.

Pois é, Porfírio e Futre.

O Futre, então, foi cá uma situação. Ele já chegou lá numa fase em que as lesões o deixaram bastante frágil. Ele trabalhava trabalhava trabalhava, ele num esforço enorme e o gajo [Harry Redknapp] nada, não o convocava.

Xiiiii. Hoje apanhei uma foto tua com o Peter Shilton nesse West Ham.

O Peter, pois é. Lembro-me tão bem dele no Mundial 86 e, dez anos depois, ainda continuava por lá. Funcionava como terceiro guarda-redes, já tinha os seus 40.

42, parece-me.

Olha, 42. E também me levava aos treinos de vez em quando. Durante as viagens, desabafava muito aquela história ‘se eu soubesse o que sei hoje’. Eu só tinha 18 anos e ele falava-me assim sobre o futebol é isto, o futebol é aquilo e eu sou queria divertir-me dentro do campo. Só queria marcar-lhe golos de livre durante o treino.

E marcavas?
Então? Ahahahahahah. Pumba pumba, é meter lá para dentro. Atenção, era um guarda-redes respeitadíssimo.

Marcaste dois golos na Premier League: um ao Tottenham e outro ao City. Se fosse agora, ui ui: o Tottenham é o líder da Premier, o City é o actual tricampeão.

Ahahahahah. O City foi um remate rasteiro dentro da pequena área, não foi?

Foi, foi. Revi esse golo há poucos dias.

Fui a correr todo contente para a bancada, estava lá a minha mãe. Agora o outro foi sorte, a bola bateu-me na cabeça. Foi um canto e eu, no meio daqueles matulões todos, afastei-me da área na esperança de apanhar a bola de ressaca. Não sei porquê deu-me para avançar durante a marcação, o Bilic cabeceou, o guarda-redes para a frente por instinto, a bola bateu-me na cabeça e entrou. No dia seguinte, os jornais todos Daniel isto, Daniel aquilo. Danny Glover, acho. Porque joguei de luvas.

Ahahahahah.

Como sabes, não há jornais desportivos em Inglaterra. Aparecem lá umas páginas de desporto e pronto. E para aparecer alguma coisa do West Ham é precisooooo. De repente, aparece uma fotografia minha ao alto, enorme. E foi um golo de sorte.

Isso tinha repercussão nas ruas?

Em Londres? Ninguém, ninguém te liga. Eles querem é o Tom Cruise, o Brad Pitt, o Leonardo DiCaprio. Talvez isso tenha começado com o Beckham. Quer dizer, o Jamie Carragher até é o primeiro, e namorava com uma das Destiny Child, acho, mas o Beckham é quem dá o passo de uma forma mais definitiva. Até porque impõe-se na selecção por anos e anos. O Carragher não atinge a dimensão do Beckham. Com Beckham, o jogador de futebol começou a ser visto como estrela.

Viste algum Tom Cruise em Londres?

Nós, jogadores, íamos muitos às premières dos filmes e tal. Um dia, levo o meu primo que jogava no Lourinhanense a uma estreia e, à nossa frente, está o Michael Hutchence, vocalista do INXS, com a nova namorada que se chamava Paula Yates. Como é que o meu primo ia explicar ao pessoal da Lourinhã que tinha estado com o Michael Hutchence?

Ahahahah [rio-me nervosamente, o meu pai é da Lourinhã]. Falaste do Beckham há pouco. Tens noção de que o driblaste antes de marcar um golo à Inglaterra na qualificação para o Euro sub23?

Foi lá em cima, não foi?

Terá sido em Lamas?

Talvez, é bem capaz. Em Lamas, com o campo enlameado.

Faz sentido.

Lembro-me disso porque enviaste-me há tempos um recorte com essa descrição do golo. Sou dois anos mais novo que ele, mas já jogava nessa selecção. Aliás, tinha sido despromovido pelo professor Queiroz dos seniores para os juniores do Sporting. E o Nelo Vingada chama-me para as Esperanças. Agora perguntas-me se tenho noção? Não, não tenho noção. Não queria saber do outro lado, queria só saber da minha equipa. Agora lembro-me bem do Beckham, coincidimos em Madrid.

Ah pois é, ele no Real e tu no Atlético.

E noutros sítios, ahahahahah.

Falamos há pouco do Seeford. Era um porreiraço, disseste. Quando chegaste ao Ajax, era Van Gaal o treinador?

Sim. Quando cheguei ao Ajax, o Van Gaal não me meteu logo a jogar porque queria que eu mudasse um pouco a minha forma de jogar. Eles, no Ajax, tinham uma série de situações muito presentes nos jogos, que nós, portugueses, não trabalhávamos ou trabalhávamos pouco. E lá aquilo era muito acentuado na forma de jogar do Ajax: o passe, a recepção, a velocidade do passe, a forma como o passe entrava.

[cara de espanto a minha; Dani topa-me]

O passe nunca entrava no pé, entrava no espaço, e isso tinha de ser muito bem treinado. E depois os passes não eram a trivela para meter a bola a rodar sobre si mesma, o passe tinha de ser o mais simples possível. Por isso é que o Van Gaal me perguntava ‘epá, mas ele [Kluivert] é teu adversário? Tu gostas de receber a bola de um colega pelo ar ou a rodopiar?’ Então comecei a dar na bola com a parte de dentro do pé. Eles trabalhavam o movimento dos pés para te enquadrares. Se todos conseguíssemos fazer isso, ganhávamos uns segundos no teu jogo.

E quando começaste a jogar com frequência?

Há uma história engraçada. Durante um jogo, já só havia uma substituição e o Kluivert finge uma lesão. Como só havia um avançado no banco, o Van Gaal manda-me entrar. Ahahahah. O Kluivert já era o rei daquilo tudo em Amesterdão. Imagina teres 18 anos, entrares a meio de uma final europeia com o Milan e resolveres com um golo? No campo, uma figura. Fora, um grande maluco. Como era amplamente reconhecido, eram-lhe permitidos muitos comportamentos. Ele, às vezes, até exagerava. Mas quem sou para falar de exageros? Mas a verdade é que, às vezes, chamava-lhe a atenção e dizia-lhe para não passar esse patamar por falta de educação ou de respeito em relação a terceiros. Uma coisa é divertimento, outra é isto. Não é o caminho e tal. O Kluivert ouvia-me, a gente dividia o quarto nos estágios e voltava a ser o Kluivert de sempre, o menino bom.

Havia muitos miúdos nesse Ajax.

Witschge, Ronald e Frank de Boer, Litmanen.

Litmaneeeeeeeen. Que craque.

Era reservado. Morávamos um ao lado do outro e passávamos algum tempo juntos, porque saíamos do treino e íamos para casa. Mas ele chegava ali às três, quatro da tarde e fechava-se. Era muito, muito reservado. Passava hora e horas sozinho.

E a família?

Ele vivia sozinho. Às vezes, juntávamos malta na casa de alguém com playstation, mesa de pingue pongue, sala de cinema, mesa de bilhar e ele nada, gostava de estar sozinho. E, às vezes, levantava-se às duas, três da manhã para comer antes de voltar para a cama. Coisas assim.

E o Van Gaal também tinha coisas assim?

O Van Gaal é uma personalidade extraordinária, extremamente inteligente e muito agradável. As pessoas é que não sabem, porque ele também transmitia aquela imagem de treinador e homem difícil, complicado. Nunca senti isso. Houve outros portugueses que sentiram, que não conseguiram ter uma boa relação com ele, eu adorei a relação com ele. Foi um pouco a figura paternal em Amesterdão, conversava imenso comigo, dava-me atenção e senti um carinho muito grande. Agora, ele também se fartava de gritar comigo nos treinos. E em holandês, uma língua com umas características muito sonantes, muito levada ao extremo. Ainda hoje guardo uma carta fantástica escrita por ele para mim.

Fantástico.

Um dia, ainda na primeira fase do Ajax, há jogo em casa às 14 e era costume aparecer às 10h30. Deitei-me às onze da noite e dormi tão ferrado que nem ouvi o despertador que só cheguei lá às 11. O Van Gaal estava com uma cara e só me disse ‘como é possível, ainda não fizeste quase nenhum jogo pelo Ajax e já estás a chegar atrasado, como é possível?’ Eu disse-lhe a verdade e ele acreditou na hora.

E conheceste o Cruijff?

Ele aparecia lá, às vezes. Andava pelos corredores e notava-se logo o burburinho. Quando não jogava, por lesão, ele falava comigo na tribuna. Era uma figura muito presente, embora dividisse o seu tempo em Barcelona. E ele também era comentador televisivo. Numa das vezes, diz que eu lhe faço lembrar a ele pela forma de virar o jogo, de jogar com o calcanhar. É ele quem escolhe o 14.

O número da camisola?

É ele, o Cruijff. Desde que ele saiu do Ajax [início dos anos 80], nunca mais o 14 teve dono. Até chegar a mim. O Ajax aproveitou e as camisolas esgotaram-se na loja do clube.

A tua relação com o Ajax começa com os dois golos de cabeça ao Rangers. E também há aquele golo ao Atlético, em Madrid, nos quartos de final.

O Gil y Gil é que não gostou nada. E atirou-se mesmo aos portugueses, porque o Figo tinha marcado nessa semana um grande golo ao Atlético Madrid. Depois fui eu. Ainda por cima, golos que deram a vitória a Barcelona e Ajax. O gajo [Gil y Gil] ficou pior que estragado. Foi uma noite espectacular, um golo de fora da área. Quando cheguei ao balneário, tinha feito uma luxação na clavícula e nem reparei. Foi o Van Gaal quem se aproximou de mim para dar os parabéns e notou o desvio no meu ombro. O Van Gaal sentou-se e só suspirava, nem falava. 'What a goal, what a goal'. Quando percebeu a minha lesão, disse-me logo para ir até Portugal e tratar disso, como quem diz vai com calma e não te preocupes connosco, depois deste golo podes tudo. E fui para Lisboa, três semanas de baixa.

Fazes nove jogos na selecção e estás no banco de suplentes naquele 1:1 em Berlim com Alemanha, para a qualificação do Mundial-98. O Rui Costa é expulso durante uma substituição. Que sentimento se apoderou da equipa?

Epá, sinceramente não me lembro bem. Não foi daquelas coisas que marcaram. Poderia estar aqui a dizer ‘ah, foi isto ou aquilo’. Não, não me ficou marcado esse momento. Lembro-me é de estar no banco naquele 3-0 à Irlanda na Luz, com um golo chapelão do Rui Costa, isso sim.

A final da Liga dos Campeões 2010 é entre Inter de Mourinho e Bayern de Van Gaal. Foste treinado pelos dois, uma honra. Como foi apanhar Mourinho na sua fase embrionária, no Benfica em 2000?

Ele era o mesmo de hoje em dia, com menos mundo, claro. A experiência que ele conquistou tornou-o melhor treinador, melhor pessoa, melhor homem. Aquilo que o Mourinho tinha no Benfica já era mais que suficiente para ser um grande, grandessíssimo treinador, excelente líder e condutor de homens.

E como apareces no Benfica de Mourinho?

Vim lesionado do Ajax e fiz muito trabalho específico com o Gaspar para chegar à primeira equipa. No campo, era fácil entender o Mourinho até porque ele também aprendeu coisas com o Van Gaal. Então estávamos sempre ligados. Só que apanhámos um Benfica mais complicado. Nós, às vezes, dizíamos que ia ser difícil, que ia ser complicado. Todos os clubes passam por isso. Olha o Ajax.

Está em antepenúltimo na Holanda.

E não deixa de ser um grande clube, só que está terrível. Acontece.

A queda tem a ver com o desaparecimento de algumas figuras. Como o Van der Sar, por exemplo, que teve um problema físico?

O Van der Sar foi trabalhado durante anos e anos para ser o presidente do Ajax, passou por todos os departamentos para perceber como é aquilo funcionava. Mas havia mais jogadores envolvidos na estrutura, fosse a treinar avançados ou miúdos da formação como Bergkamp, Witschge, Frank de Boer, Ronald de Boer. Verdade seja dita, sempre vi o Van der Sar como grande guarda-redes, um tipo fantástico, mas não o via como presidente.

Teve um problema físico, até foi assustador, porque correu risco de vida, e agora está bem. E o resto do Ajax?

Todos os jogadores do passado de quem falei já não estão lá.

Como assim?

Agora é uma nova estrutura, que fez esse corte com o passado.

E porquê?

Não sei, não percebo, não há resposta para isso. Agora a estrutura é ocupada por pessoas e sem ligação ao futebol, que nunca cresceram no meio, nunca foram jogadores nem treinadores. Agora chamaram o Van Gaal para ser conselheiro. Mas o Van Gaal, que até está a passar uma fase complicada da sua vida a lutar contra um cancro, vai dizer-lhes o óbvio: ‘vão buscar quem afastaram’. Só assim é que o Ajax foge à crise, há coisas no futebol que não aprendem na universidade. É preciso gente qualificada, gente com olho.

Aurélio Pereira, olha.

Todos os clubes europeus devia ter um Aurélio Pereira, sou fã.

Descobriu-te em Tróia.

E tu também estavas lá.

Ahahahahah. E lembras-te desse dia?

Então não lembro? Nesse dia, o meu primo quis ficar em casa. Ele tinha mais interesses que eu entre skates, bicicletas, Tio Patinhas, isto e aquilo. Eu era mesmo só futebol e fui com os meus pais, eles iam beber café e nós íamos jogar à bola.

Naquele relvado entre os blocos de apartamento, com um campo de minigolfe junto ao quiosque?

Esse mesmo. Jogámos e o Aurélio vê-me. Pede-me para dar toques na bola e eu começo a dar toques. Ele quis falar com o meu pai e fez-se. Acontece que eu já tinha ido às captações do Sporting e Benfica e nada, porque aqui em Portugal só se entrava com dez anos e eu só tinha nove. O meu pai questionou o Aurélio e o Aurélio só disse ‘diga que vai da minha parte’. E pronto fiz toda a minha formação. Quando cheguei a casa e contei ao meu primo, ele passou-se. A verdade é que depois ele também entrou no Sporting e jogou lá até aos 18 anos.

Os destinos já estavam cruzados.

Já estava escrito.

Acabámos da melhor maneira possível, obrigado Dani, foi um prazer enorme.

O prazer foi meu em falar contigo.