Debate sobre "crises ideológicas" no PS só depois de "vencer crises epidemiológicas"
01-02-2021 - 20:44
 • Susana Madureira Martins

No rescaldo da crítica aberta de Pedro Nuno Santos ao modo como o PS se posicionou nas presidenciais, a direção nacional socialista não mexe um dedo para o debate ideológico interno no imediato.

Pedro Nuno Santos arrisca-se a ficar a falar sozinho, porque por vontade da cúpula do PS o artigo que o ministro das Infraestruturas e membro do secretariado nacional do partido escreveu este domingo no jornal Público vai ficar sem resposta e cair em saco roto.

Naquele artigo, Pedro Nuno critica abertamente a posição do PS nas presidenciais, por não ter apoiado nenhuma candidatura, com o ministro a escrever mesmo que "ao ter optado por não marcar presença no debate o PS contribuiu (ainda que involuntariamente) para a afirmação do candidato da extrema-direita".

O ministro das Infraestruturas defende ainda que o PS deve contribuir para uma polarização evidente entre a esquerda e a direita que sirva de tampão à extrema direita, escrevendo mesmo que "Se tivesse apresentado um candidato próprio, o PS até poderia ter perdido a corrida eleitoral de 24 de janeiro, mas teria reforçado a polarização entre esquerda e direita e, com isso, a estabilidade da nossa democracia".

E, algo provocador, Pedro Nuno escreve mesmo que "como já várias vezes disse (bem) o secretário-geral do Partido Socialista, a convergência no posicionamento ideológico e nas políticas entre os principais partidos num bloco central permite o crescimento da extrema-direita".

Um debate ideológico que o ministro das Infraestruturas quer provocar (ou reencetar) dentro do PS, mas as vazas podem mesmo ser cortadas. À Renascença um alto dirigente socialista avisa que "este ano, e nos tempos imediatos, estamos mais interessados em vencer crises epidemiológicas e depois, então, falaremos de crises ideológicas".

Ou seja, debate ideológico agora sobre esquerda, direita e extrema-direita, não. Mais tarde talvez, numa espécie de convite a Pedro Nuno para que, para já, se remeta ao silêncio, correndo o risco de ficar a falar sozinho.

No fundo, o combate à pandemia a servir de pretexto ou desculpa para evitar o confronto entre gerações, linhagens, fações, o que for, dentro do PS.

Voltando ao texto de Pedro Nuno Santos no Público, há vários avisos e até uma tentativa de contextualizar esses avisos, comparando o que se passa com a esquerda e a direita em Portugal com o que aconteceu a partir de meados dos anos 90 do século passado no sistema político francês.

Diz o ministro no artigo que basta "olhar para o exemplo francês para perceber o que acontece" quando é substituída a polarização esquerda/direita pela "polarização entre democratas (sejam de esquerda ou de direita) e extremistas antissistema".

Ou seja, escreve o ministro "mais de 30 anos depois da alteração do sistema eleitoral promovida por Mitterrand ter aberto as portas da Assembleia Nacional francesa a Jean-Marie Le Pen (para muitos com o objetivo de retirar força à direita de Chirac), a democracia francesa vive hoje polarizada entre o centrismo de Macron e a extrema-direita de Le Pen".

Assim, "já não é a direita que ficou tomada pela extrema-direita: hoje é todo o debate político francês que é moldado por uma força política que beneficiou do colapso da esquerda socialista e da direita republicana".

E é sobre este risco para a esquerda (e, subentende-se, para a direita dita moderada) que o ministro quer ver debate político o quanto antes. Mas também aqui leva resposta torta do mesmo alto dirigente do PS que em conversa com a Renascença diz que "a diferença é que o Mitterand não o fez no meio de uma crise pandémica que ele e o seu país tivesse que vencer com todos os apoios disponíveis".

Porfírio Silva com Pedro Nuno Santos

Se, nos órgãos internos do PS, o debate ideológico provocado por Pedro Nuno Santos não arranca no imediato, esse debate já começou nas redes sociais. Um dos membros do secretariado nacional do partido, Porfírio Silva, publicou na rede social Facebook que Pedro Nuno Santos "diz coisas importantes”, e com as quais concorda.

Por exemplo, que "a ausência de um candidato apoiado pelo PS deixou margem para interpretações sobre a “liberdade de voto” que a confundem com um apoio implícito a MRS", ou seja, Marcelo Rebelo de Sousa.

Porfírio também concorda que "um encontro eleitoral com um protagonista da esquerda democrática a disputar o debate e o lugar com o candidato da direita democrática teria tirado palco à extrema-direita" e que isso "seria revigorante para a democracia (mesmo que o candidato socialista perdesse)", rematando que "em todas estas coisas, PNS tem razão".

Mas, como há sempre um mas, este membro do secretariado nacional defende que há "dois pontos fracos" na análise do ministro das Infraestruturas que acusa de esquecer "a relação entre o partido e o seu eleitorado: um partido pode, e deve, esforçar-se por influenciar a sua base eleitoral, não se conformar em ‘seguir as massas’, mas é suicidário insistir em chocar de frente com os seus apoiantes – e uma parte muito significativa do eleitorado e da militância do PS pretendia votar em MRS".

Depois, Porfírio Silva revela dúvidas em relação à adesão "sem reservas à bondade da candidatura" de Ana Gomes e que "isso merece análise, tanto pelo conteúdo" do posicionamento da candidata derrotada "em matérias fundamentais para o entendimento do papel do Presidente da República, como pela orientação que a candidata imprimiu à sua campanha".

E porque "o futuro é sempre o mais importante", escreve Porfírio, há um ponto em que ambos os dirigentes nacionais parecem concordar "claramente", é que "a esquerda democrática não pode deixar de pensar – a tempo e horas – numa candidatura presidencial potencialmente vitoriosa para daqui a cinco anos".

Ascenso vs. Pedro Nuno

A ala mais à direita do PS também se fez ouvir, ou melhor publicar, na rede social Facebook. Este domingo Ascenso Simões, deputado e antigo secretário de estado da Administração Interna de António Costa e que apoiou a candidatura do comunista João Ferreira nas presidenciais, deixou alertas.

Por exemplo, que o que Pedro Nuno Santos "propõe é a construção de um partido muito diferente do que foi o PS dos últimos 50 anos" e que a opção que o ministro entrega ao PS "está mais próxima da que foi seguida pelos trabalhistas ingleses num tempo recente" acrescentando que "essa opção garantiu uma certa pureza ideológica que fez com que os conservadores tivessem ganho as últimas quatro eleições e tivesse havido o BREXIT."

A conclusão do deputado é que "seguindo este caminho, o PS português deve esperar um longo período de governação de direita que fará um desbaste irreversível no Estado Social" e que um "PS anti-mundo, seguindo o caminho de outras esquerdas, seria o seu fim".

Para Ascenso Simões o partido "perderia a sua influência territorial e seria comido, no seu âmago, pelos movimentos de esquerda urbana que dão gás, para poderem sobreviver por mimetismo, à extrema-direita".

Fica ainda desmontada a tese do texto de Pedro Nuno sobre o caso francês. Ascenso salienta que em França "a extrema direita sempre existiu e sempre foi muito forte" e que "isso aconteceu (acontece) também em Itália e na Alemanha e seus satélites".

Para além disso, o Partido Socialista Francês (PSF) "não desapareceu por falta de esquerdismo, desapareceu por ausência de liderança da sociedade, e esse é um alerta que faz sentido também para Portugal", acrescenta o deputado.

A publicação de Ascenso Simões termina com uma declaração de apoio a uma eventual candidatura de Pedro Nuno à liderança no futuro, com o deputado a dizer que o critério é "simples": deixou de "empurrar quem acha que nasceu para uma liderança por despacho burocrático, para apoiar quem dá a cara por ideias" ainda que questionáveis, rematando que "em boa verdade, um moderado na ala esquerda até pode ser um mini-oráculo".