A culpa não é sempre dos pais
16-07-2021 - 06:25

No bem e no mal, a nossa co-responsabilidade nos actos dos nossos filhos é muito mais reduzida do que nós gostaríamos de pensar. E, sim, este escasso poder paternal pode ser libertador para a paternidade moderna, que está à beira de um esgotamento.

À luz de dois mil anos de Evangelho, há muitas marcas do Antigo Testamento que nos deixam abismados. É mesmo outro país mental. A par dessas características chocantes, há outras que compreendemos mesmo quando as consideramos erradas ou ultrapassadas. Dou um exemplo: a culpa passava do pai para o filho. Se o meu pai cometesse um pecado ou um crime, o opróbrio passaria para mim; e de mim passaria para os meus filhos, netos do criminoso. A culpa não era individual, era familiar. Nós já não pensamos assim. O Evangelho corta com esta culpa colectiva e transformada num mal hereditário: não, não posso ser responsabilizado por atos cometidos pelo meu pai.

No entanto, não deixamos de ser permeáveis a esta ética. Os alemães de 2021 ainda sentem culpa pelo holocausto, apesar de terem nascido muito depois de 1945. A lógica do politicamente correcto moderníssimo está assente nesta inclemência do Antigo Testamento: considera-se que um branco de 2021 tem de pagar moral e até monetariamente o facto de ser trineto de proprietários de escravos. E, claro, é fácil encontrar romances e filmes que lidam com filhos que sentem uma culpa asfixiante por actos hediondos cometidos pelos pais. Estou a lembrar-me, por exemplo, do “Le Village de l’Allemand’ de Boualem Sansal. Já a série "Happy Valley" lida com uma variante desta ideia: será que a sociopatia passa de pais para filhos por transmissibilidade genética? Um filho de um psicopata será necessariamente um potencial psicopata?

Seja como for, a sociedade como um todo já não se mede pelo critério do Antigo Testamento. Diria até que saltámos de um extremo para o outro. Se nas velhas sociedades a culpa passava do pai para os filhos, na nossa sociedade assume-se que os actos dos filhos são sempre culpa dos pais, o que revela escassa consideração pela ideia de livre arbítrio. Somos uma sociedade obcecada com o controlo racional e mecânico do mundo, não toleramos acasos, imprevistos e uma natureza exterior à nossa vontade. Mas sucede que essa natureza exterior à nossa vontade começa logo nos nossos filhos. Um pai pode educar um filho da forma mais correta possível, mas esse filho pode crescer para se tornar um traste, porque esse filho é uma pessoa com uma alma absolutamente independente do pai.

Isto pode ser frustrante, sem dúvida, mas também é libertador. Não, os actos das minhas filhas, bons ou maus, não são consequências directas e imediatas da minha educação; elas não são carrinhos telecomandados à minha disposição. A educação que lhes transmito é apenas uma parcela de uma extensa fórmula que determina as suas ações livres e conscientes. É assim no lado solar, quando elas se revelam gentis com alguém necessitado ou quando pintam um quadro bonito. É assim no lado lunar, quando se portam mal. No bem e no mal, a nossa co-responsabilidade nos actos dos nossos filhos é muito mais reduzida do que nós gostaríamos de pensar. E, sim, este escasso poder paternal pode ser libertador para a paternidade moderna, que está à beira de um esgotamento. A paternidade moderna é esgotante, porque nós, pais moderninhos, somos parte da tal sociedade obcecada com o controlo e antecipação racional do mundo. Só que os seres humanos, a começar nos nossos filhos, não são moléculas dentro de uma fórmula previsível e quantificável. São pessoas com uma alma independente e rebelde.

Não, não chamem já a segurança social. Não estou a dizer que as crianças devem andar ao Deus dará ou que a educação é irrelevante. Estou apenas a dizer que a sociedade tem de perceber que as crianças não são títeres e que culpa (e o mérito) não é sempre dos pais.