Foi um choque, mas não uma surpresa para quem mora na Mouraria. Há um ano, foram expostas ao país as condições em que viviam mais de duas dezenas de pessoas, no rés-do-chão de um edifício na Rua do Terreirinho, na Mouraria, junto ao Martim Moniz, na encosta oposta à do Castelo. Amontoavam-se colchões e beliches para acolher 24 pessoas sem o mínimo de condições. Até as saídas estavam bloqueadas por beliches.
A 4 de fevereiro de 2023, um incêndio naquele rés-do-chão matou duas pessoas de nacionalidade indiana - um menor de 14 anos e um adulto - e provocou ferimentos noutras 14. Só duas eram portuguesas.
Alzira - nome fictício - é peixeira. Nasceu há 74 anos na Mouraria e ali sempre viveu. Depois de limpar as lágrimas, que explica serem de saudade dos vizinhos que "foram corridos" para dar lugar a alojamentos locais, admite que vive com o coração nas mãos, tal o número de casas onde teme que possam ocorrer outros incêndios.
"Ai, sim, sim. Até lhe vou dizer uma coisa: há casas onde eles estão uns à espera dos outros. Uns levantam-se à meia-noite e outros entram. É por turnos. Aquilo é colchões que nunca mais acaba", diz, enquanto ajeita o gelo nuns carapaus colocados numa caixa, aguardando por comprador.
Ao lado, noutra bancada, a comadre de Alzira, também funcionária da peixaria, acompanha a conversa e vai acenando que sim com a cabeça, enquanto escama uma pescada.
Trabalha num restaurante, mas longe dali. Maria - também nome fictício - quer falar mas diz que teme represálias, porque regressa a casa "à noite, depois do trabalho, e as ruas estão cheias de imigrantes."
Um sentimento que Eduardo Pires da Silva, morador há 50 anos e dono de casa própria no bairro, não partilha. Garante que "em termos de segurança, não há conflitos aqui, nem raciais, nem religiosos, nada. A insegurança é dessa mesma utilização exagerada das casas, e, portanto, segurança física só", explica.
Sente, isso sim, a pressão imobiliária constante. "Já tive ofertas pela minha casa, do género de me dizerem:
— Diga, quanto é que quer?
— Não quero nada, eu quero viver cá.
— Mas diga um número!
Porque a pressão é grande e cada um tem um preço", lamenta.
Para Maria, que vive há 42 anos na Mouraria, o bairro deixou de ser a "maravilha" que sempre conhecera quando os senhorios passaram a cobrar "1200 ou 2 mil euros de renda" - que "o português não pode pagar". E os imigrantes só conseguem "porque vivem 20 ou 30 em cada casa."
Desde o incêndio, nada foi feito pelas autoridades para "controlar" a sobrelotação das casas, assegura o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior.
"Não houve alterações substanciais", prossegue Miguel Coelho, que lamenta que não se tenha feito, pelo menos, uma avaliação das condições de habitabilidade.
"Alertámos a Câmara e a Proteção Civil dos riscos que aqui havia. Pedimos que fizessem uma avaliação das condições de habitabilidade destas casas, porque nós, Junta, não temos nenhuma competência legal nem autoridade para entrar em casa das pessoas, a não ser sejamos convidados. E não tenho notícia de que isso tenha sido feito", explica o autarca.
"Há uma situação que ainda está fora de controlo total e é preciso fazer alguma coisa de forma oficial", defende.
O líder da comunidade do Bangladesh em Lisboa discorda. Rana Taslim Udin diz que o incêndio "chamou a atenção para as condições em que muitos viviam". E que isso não foi bom para a comunidade, a quem transmitiu a necessidade de ter o mínimo de condições de vida.
"Estamos na Europa, não no terceiro mundo, e as pessoas não podem vir para cá viver de qualquer maneira", desabafa Rana, que assegura que já não há sobrelotação. Pelo menos entre a comunidade do Bangladesh.
"Depois da Covid e depois deste incêndio, fizemos fiscalização casa a casa. Agora, em cada quarto há no máximo duas pessoas", assegura.
Kamrul Ali torce o nariz às garantias de Rana Taslim Udin. Natural do Bangladesh, Kamrul é dono de uma loja que em tempos foi um talho halal e que agora vende doces tradicionais do Bangladesh. Entende que é simples a explicação para a sobrelotação: "A renda de uma casa são 1200 euros. Alguém tem um ordenado de 700 euros. Como aguenta? Tem de juntar mais pessoas. E outro problema é ninguém alugar casas. É tudo Alojamento Local."
A luta por arranjar um alojamento na zona continua, ainda para mais porque, sublinha Kamrul, há cada vez mais imigrantes a chegar — do "Bangladesh, Paquistão, Índia, Nepal, Senegal, Guiné-Conacri, Marrocos. Todos os imigrantes vêm para aqui, porque aqui conhecem gente, aqui têm lojas, comida. Todos vêm aqui".
Se nada se alterar e a sobrelotação das casas se mantiver na Rua do Benformoso e nas artérias circundantes da Mouraria, Maria não tem dúvidas: "pode acontecer novamente" um incêndio numa das casas de imigrantes, como aconteceu há um ano.