A Terra está a arder. Quatro pontos onde podemos melhorar como cidadãos
10-08-2021 - 06:30
 • Hélio Carvalho

Viriato Soromenho-Marques avisa que "estamos a habitar a Terra de uma forma absolutamente incompetente". Depois de conhecidas as conclusões alarmantes do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas, o filósofo e ambientalista diz o que pode ser feito, à nossa escala, para reduzir a pegada de carbono.

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O relatório lançado esta segunda-feira desenha um futuro negro para o mundo. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), o impacto da ação humana irá provocar um aumento de temperatura de 1,5 graus Celsius até 2030, um aumento que se pensava acontecer até 2040.

A dependência do mundo em combustíveis fósseis está na origem de muitos problemas causados pela poluição. A comunidade internacional já se comprometeu com uma maior aposta em políticas climáticas, através do Acordo de Paris e da recente Cimeira do Clima, mas o IPCC alerta que a iniciativa poderá ser tardia e insuficiente.

O relatório, composto por milhares de artigos de 234 autores - que tem, também, uma versão resumida de 42 páginas para decisores políticos - estima que, entre 1988 e 2021, foram produzidas mais emissões do que em toda a história anterior da Humanidade.

Se nada for feito para mudar o rumo, a temperatura mundial irá aumentar 1,5 graus até 2040, 2 graus até 2060 e 2,7 graus até 2100.

Em entrevista à Renascença, o filósofo e ambientalista Viriato Soromenho-Marques faz duras críticas às ações dos Governos ao longo das décadas e lamenta a forma como o planeta foi estragado.

"A forma como estamos a habitar a Terra é uma forma absolutamente incompetente. Estamos a habitar a Terra, não como se fossemos uma espécie inteligente, mas como se fossemos a mais bárbara e inculta das espécies que a biologia alguma vez produziu", rematou.

Mas também enalteceu a necessidade da sociedade civil, dos cidadãos, em procurar minimizar os danos causados e "não ficarmos à espera que os governos ou a economia ganhem juízo".

Trocar o carro pelo transporte público

O principal responsável pelo aumento das emissões poluentes é, sem dúvida, o setor dos transportes. O relatório do IPCC indica que, desde 1970, as emissões provenientes de transportes mais do que duplicaram e 80% desse aumento deve-se aos veículos nas estradas.

Reverter a tendência passa, obrigatoriamente, pelos transportes públicos, mas Viriato Soromenho-Marques não descarta o uso de carros elétricos.

Contudo, para este professor universitário, este segmento de veículos acaba por representar um peso, na medida que potencia mais poluição, por via das explorações mineiras para materiais, por exemplo.

"O carro elétrico é preferível a um carro não-elétrico. Mas, se possível, o ideal seria apostarmos mais, não no automóvel particular, mas nos transportes públicos, ou em modelos de utilização de automóveis partilhados. Assim como se partilham bicicletas, podem ser partilhados automóveis", sugere.

O antigo presidente da associação ambiental QUERCUS acredita na mudança de comportamentos individuais, mas também defende que os governos devem incentivar o uso do transporte público, e não o transporte aéreo, e dá um exemplo de como isso já foi feito com sucesso.

"Seria muito mais fácil se algumas mudanças de comportamento pudessem ser induzidas por politicas públicas. Temos o exemplo português: antes da pandemia, tivemos uma medida do Governo muitíssimo positiva, de reduzir de forma extraordinária o preço dos passes de transportes públicos nas Áreas Metropolitanas [de Porto e Lisboa], que permitiu uma instantânea mudança de utentes que até aí usavam o seu automóvel particular para os transportes públicos", afirmou à Renascença.

Sociedade civil. O fim do "cidadão passivo"

Soromenho-Marques diz não ter dúvidas de que a mudança deve partir da iniciativa cívica dos cidadãos, das pessoas, não só "induzindo mudanças profundas à nossa escala e à nossa volta que passam pelas nossas opções", mas também sendo proativos na vida política.

"Como cidadãos, podemos participar nas políticas municipais. Se olhar para o nosso país, temos imensos concelhos onde neste momento se discute se uma determinada infraestrutura deve ou não ser construída numa zona florestal ou agrícola.

A defesa dos espaços agrícolas e florestais é também uma frente muito importante na defesa do nosso futuro coletivo", vinca.

Protestar, pedir mais ações, participar nas decisões como for possível. O filósofo português, com obra publicada sobre políticas ambientais, acredita que "aquela ideia do cidadão passivo" terá dificuldades em enfrentar os problemas do futuro.

"Aquela ideia do cidadão passivo que olha para o mundo a partir do sofá da sua sala, que pensa que o mundo é o que está na janela da sua televisão ou do seu computador, esse cidadão não vai sobreviver aos desafios que as alterações climáticas e a crise ambiental nos colocam", disse Soromenho-Marques.

Carne vermelha. Reduzir, sem precisar de abandonar

Um dos comportamentos a mudar mencionados no relatório do IPCC é a dieta mundial, que persiste em depender de carnes vermelhas.

As carnes vermelhas estão associadas a um dos principais gases de estufa, o metano. A produção de carne vermelha, especialmente a de origem bovina, tem "muitíssimo impactos negativos, não só pela emissão de metano, mas é também pela destruição da biodiversidade".

Daí que uma mudança de dieta, ao nível mundial e especialmente nos países mais ricos onde é consumida mais carne vermelha, seja necessária, ainda que livre e individual.

"Evidentemente que a decisão de ser vegetariano é uma decisão individual de cada um, não estou a propor uma espécie de vegetarianismo legislativo, mas também tem uma grande dimensão ecológica. Não digo para se abandonar, mas se reduzirmos o nosso consumo anual de carne, estamos a produzir uma transformação benéfica fundamental", apontou Soromenho-Marques,

O investigador realça que a produção de carne vermelha e de ração animal (como a soja) leva à destruição de florestas tropicais e de biodiversidade. Mas, se reduzirmos o consumo de carne e fizermos mais refeições vegetarianas ou vegan, "estamos a preservar floresta, que são garante de biodiversidade e permitem transformar dióxido de carbono sob a forma de biomassa, e estamos também a contribuir para uma maior área para agricultura mais sustentável", enaltece.

Eletricidade. Maior acesso e mais telhados para os painéis solares

O quarto ponto onde podemos procurar reduzir a pegada carbónica e minimizar os estragos relatados pelo IPCC é o consumo doméstico de eletricidade.

Portugal é um dos países da União Europeia com maior percentagem de eletricidade produzida a partir de energias renováveis. No primeiro trimestre de 2021, a produção renovável abasteceu 68% do consumo de energia elétrica", referiu a REN em julho.

Ainda assim, Soromenho-Marques afirma que Portugal está "atrasado" no que toca à economia doméstica.

"Há ainda falta de incentivo para que painéis solares possam ser utilizados com mais frequência a nível do domicílio", aponta.

Os painéis solares são caros e, para muitos portugueses que moram em prédios, esse investimento é ainda mais complicado, mas Viriato Soromenho-Marques pede uma mudança nas tendências do mercado desta energia renovável.

Já o IPCC deixa algumas recomendações: comprar e usar eletrodomésticos mais eficientes, assim como ar condicionados e ventilação mais ecológicos, e lavagens de roupa a seco, são alguns dos conselhos para reduzir o seu consumo elétrico e, assim, reduzir a sua pegada carbónica.