Insolvência da Dielmar. “Antes da pandemia, era tipo Marcelo: selfies e beijinhos. Eramos uma família. Agora onde é que está a família?”
09-08-2021 - 07:00
 • Fábio Monteiro

Já há interessados em adquirir a Dielmar, empresa de confeção, sediada em Alcains, que ainda há dez dias entrou em insolvência. Sinais de que algo estava mal no reino de Alcains eram muitos, mas ninguém esperava a notícia tão cedo. Durante a pandemia, com as linhas de produção vazias, a empresa deixou expirar o seguro de saúde dos trabalhadores e o serviço de medicina no trabalho. Esta segunda-feira à tarde, em frente à Câmara de Castelo Branco, os 300 funcionários no limbo do desemprego vão manifestar-se.

Para Maria Lopes, a história repete-se - pela terceira vez. Em 2015, começou a trabalhar na Dielmar, empresa de confeção sediada em Alcains, Castelo Branco, depois de ter passado por duas empresas de confeção, também da região, que entraram em insolvência. Apesar de o trabalho na secção de mangas de casacos ser pesado, passar o dia em pé, julgou que tinha sorte em conseguir um novo trabalho, devido à sua idade: 56 anos. Os 50 “são uma faixa etária crítica, para depois tornar a voltar a trabalhar, arranjar emprego”, diz.

No passado dia 30 de julho, uma sexta-feira, Maria Lopes, hoje com 62 anos, recebeu a notícia que estava, mais uma vez, prestes a ficar sem emprego. “Uma colega minha ligou-me a perguntar se já sabia da notícia. Eu ainda não sabia de nada. Tinham-lhe passado a palavra que possivelmente a Dielmar ia entrar em insolvência”, conta.

A notícia era verdadeira. E se caiu como uma bomba na região de Castelo Branco, ao nível nacional foi lida como uma das primeiras baixas da hecatombe de falências que se temem, devido ao impacto da pandemia. Ao fim de 56 anos de atividade, a Dielmar – uma das maiores entidades empregadoras da região centro - entrou em insolvência, deixando mais de 300 trabalhadores à beira do desemprego.

“Esta crise atacou, globalmente, o que de melhor sustentava a sua atividade: o convívio social, os eventos e casamentos, com a elegância, o glamour da alfaiataria por medida e a personalização em que nos especializamos, e o trabalho profissional no escritório, que eram a base fundamental do negócio da Dielmar”, justificou a administração liderada por Ana Paula Rafael, CEO desde 2008, em comunicado.

Durante o último ano e meio, Maria Lopes passou um longo período em regime de layoff; em 2020, esteve cerca de seis meses em casa. “Já havia rumores que, como não havia encomendas, já não estava assim tão bem, mas esperar que aquilo fechasse, não”, diz.

Precisamente por causa do apoio à manutenção do emprego criado pelo Estado, para suprir o impacto da pandemia, Maria da Luz Esteves, 52 anos, também não pensava que a insolvência da Dielmar chegasse tão cedo. Melhor: pensava que ia chegar mais para a altura do Natal. “Sempre esperamos que ela [a administradora Ana Paula Rafael] aceitasse os apoios e no Natal acontecesse isso”, diz a dirigente da comissão sindical da empresa.

Os prenúncios de uma tragédia laboral estavam à vista. “A pandemia foi uma desculpa, mas não foi a pandemia que agravou a situação da Dielmar, porque isto já se arrasta desde 2015, 2014”, lembra. (Na realidade, a empresa já registava prejuízos, segundo contas do Ministério da Economia, há mais de uma década.)

Maria da Luz Esteves, que trabalha na Dielmar há 33 anos, recorda com saudosismo a administração anterior à de Ana Paula Rafael, um tempo em que os lucros da empresa eram distribuídos pelos trabalhadores. “Agora, foram-nos despindo, só não nos tiraram a roupa do corpo porque não puderam. Há uns anos, tiveram uma reunião connosco, a dizer que iam suspender o prémio de produção. O suspender foi tirar. Até à data nunca mais houve”, acusa.

Após a chegada da pandemia, a administração retirou também o prémio de assiduidade. E começou a falhar no pagamento nos serviços de saúde obrigatórios para os trabalhadores. “Tiraram-nos a [seguro de saúde] Multicare. Houve pessoas que foram a consultas com o cartão da Multicare, o cartão não dava. Não avisaram as pessoas. As pessoas iam de surpresa ao médico, fazer o pagamento através do cartão e o cartão não dava. Nós questionamos a empresa, e eles responderam com desculpas, com atrasos”, denuncia Maria da Luz.

A administração da Dielmar deixou ainda expirar o contrato com as clínicas Interprev, que assegurava os serviços de medicina no trabalho aos 300 funcionários. A sindicalista não fez queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) porque já eram “tantas multas que a empresa tinha de pagar, porque ainda era mais uma”, explica Maria da Luz.

A afeição que tem para com a empresa, ainda assim, não apaga a mágoa do momento presente. “Eles foram-nos tirando tudo, não foram sinceros connosco, não nos deram a cara. É beijinhos e abraços, é tudo muito bonito. Antes da pandemia, aquilo era tipo Marcelo: era selfies e beijinhos. E que eramos uma família, e que eramos umas mãos de fada. E agora eu pergunto: onde é que está a família?”, atira.

Há interessados

O pedido de insolvência da Dielmar deu entrada no Juízo de Comércio do Fundão, do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, no passado dia 30 de julho. Dez dias depois, já há sinais que a empresa de confeção pode não vir a fechar portas a título definitivo.

À Renascença, José Alves, presidente da Câmara Municipal de Castelo Branco, avança que já recebeu contactos de duas empresas interessadas em adquirir a Dielmar e houve também “uma manifestação de interesse” de outra entidade para “adquirir todo o material que a empresa tem, neste momento, confecionado”. “São dois mais um, vamos chamar-lhes assim”, explica.

O autarca socialista afirma que, durante as próximas semanas, “é natural que haja mais” propostas; das que chegaram, já deu conhecimento ao Governo e ao administrador de insolvência João Francisco Baptista de Maurício, garantiu.

Neste momento, José Alves estabelece como prioridade e principal preocupação que a empresa continue a funcionar com os mesmos 300 trabalhadores. “Que esta situação que aconteceu seja um pequeno hiato na história da Dielmar, que é uma marca de prestígio, referência, a nível internacional e nacional”, afirma.

Até porque o número de interessados pode ser ainda mais elevado. Carlos Almeida, vereador do PSD em Castelo Branco, recebeu também na semana passada um contacto de um potencial investidor. “Estamos a falar de uma pessoa, que é um investidor consistente, que não está aqui apenas a criar algum mediatismo ou tentar algum protagonismo, porque ele não se revela”, conta à Renascença.

Dado que, tanto o presidente de câmara como o vereador da oposição não podem revelar a identidade dos interessados, não foi possível à Renascença aferir se estão a falar das mesmas ou de entidades diferentes.

Uma década de prejuízos

O cenário de aquisição da Dielmar não é propriamente novidade. Na última década, sempre que a empresa passou por uma fase mais sensível, houve empresas a manifestar interesse.

A Renascença apurou que, ainda em 2017, duas empresas contactaram o município de Castelo Branco, mas a administração da Dielmar não mostrou sequer disponibilidade para ouvir as propostas. “Da parte da administração não houve vontade, porque tinham esperança que, com aquele fundo, resolviam o problema”, revelou fonte do município.

O fundo em causa foram os paliativos dois milhões e 500 mil euros que a Dielmar recebeu através do Fundo Imobiliário Especial de Apoio às Empresas (FIEAE), na época gerido pelo secretário de Estado da Indústria João Vasconcelos (que faleceu em 2019). (Em 2011 e 2013, a empresa sediada em Alcains recebera também dois milhões e setecentos mil euros através do Fundo Autónomo de Apoio à Concentração e Consolidação Empresarial, o FACCE.)

Segundo contas do Ministério da Economia, nos últimos dez anos, o Estado investiu com cerca de oito milhões de euros na Dielmar: cinco milhões por injeção de várias entidades públicas, três milhões em garantias de dívida. "O recurso a estes montantes [fundos] pressupunha a realização de um conjunto de medidas necessárias à reestruturação, sendo que a maioria destas medidas não foram aplicadas pela administração da Dielmar", frisou o ministério liderado por Siza Vieira, num comunicado na semana passada.

Ainda de acordo com a tutela, a Dielmar tem uma dívida à banca de montante total de cerca de seis milhões e 150 mil euros. Em novembro de 2020, a empresa registava uma dívida a fornecedores de cerca dois milhões e meio; já à Segurança Social estavam por saldar um milhão e 700 mil euros.

Defeitos de gestão

À Renascença, Ana Paula Rafael, administradora e CEO da Dielmar desde 2008, é descrita por vários trabalhadores da empresa de forma negativa: alguém “impaciente”, “intransigente” e que “gostava de controlar tudo”.

No 10 de junho de 2015, ano em que a Dielmar já registava prejuízos, Ana Paula Rafael foi condecorada por Cavaco Silva com a distinção de “Comendador da Ordem do Mérito Empresarial – Classe do Mérito Industrial”.

Já no final 2016, Marcelo Rebelo de Sousa visitou as instalações da fábrica em Alcains e teceu largos elogios à empresa e família da empresária. O momento ficou registado num vídeo partilhado este ano no canal do Youtube da Presidência da República.

Maria da Luz Esteves acusa a CEO de nunca ter estado aberta ao diálogo com os trabalhadores, mesmo com a empresa numa situação sensível. “Desde o dia 17 de março do ano passado até hoje, eu não vi a administração”, conta. De acordo com a dirigente sindical, houve uma reunião agendada para o dia 22 de julho, mas que acabou por ser “cancelada sem motivo”. “A administração não nos dava a cara”, frisa.

O Sindicato dos Trabalhadores do Sector Têxtil da Beira Baixa, afeto à CGTP, reuniu duas vezes com a administração, mas os encontros não produziram resultado. Porquê? “Com aquela administração era um bocado difícil conversar, chegar a um diálogo, porque era de ideia fixas, não aceitavam opiniões, só falavam em quebras, em quebras. O que lhe interessava era só dinheiro. E uma empresa destas não pode ser só dinheiro.”

A decisão de lançar a Dielmar num processo de insolvência não foi comunicada pela administradora com antecedência a nenhuma entidade – nem ao próprio município de Castelo Branco.

“Nós já vínhamos acompanhando a situação, tínhamos feito já várias reuniões com a administração, mas não esperávamos que esta situação acontecesse assim tão de rompante. Era expectável, mas não assim como foi. Aconteceu. O tempo da administração da Dielmar já foi, agora é o nosso tempo, é o tempo do Governo, é o tempo da câmara municipal e o tempo do administrador de insolvência”, diz José Alves, à Renascença.

O horizonte

Para as funcionárias da Dielmar, cujo futuro agora está no limbo, ainda é difícil antecipar o que acontecerá à empresa beirã. Maria Lopes diz que, se houver alguém que compre a empresa, tem interesse em continuar a trabalhar. “Espero que sim, pelo bem de muitas trabalhadoras”, afirma.

Mas a idade é uma preocupação que não lhe sai da cabeça: com 62 anos, “já ninguém me quererá a trabalhar nalgum sítio. Não tenho aquelas forças que tinha antes, para dar rendimento suficiente para outras fábricas. Vou optar possivelmente de seguir para a pré-reforma, porque não há outra hipótese. Outros mais jovens que eu que quererão ir para o mercado de trabalho e não há assim tanto emprego na zona”, diz.

Maria da Luz Esteves tem esperança que a Dielmar não feche portas a título definitivo. “Alguém que nos ajude, que pegue naquilo, mas como deve ser. Uma pessoa com capacidade, porque é muita gente a trabalhar. São pessoas qualificadas, não são pessoas que estão a aprender, são pessoas que já sabem”, apela. Dito isto, quem quer que adquira a confeção, terá muito trabalho pela frente. “Quem pegar nisto tem que arranjar clientes, porque a Dielmar não os tem. Não tem serviço. Tem de começar do zero”, avisa.

Segundo a sindicalista, a linha de produção “está completamente vazia”.” Para acabar a última encomenda, que nem era da Dielmar, tiveram de ir pedir aviamentos emprestados a outra fábrica.” E há também feridas por sarar nos 300 funcionários: é preciso urdir a confiança que foi rasgada. “Se for comprada, vier uma nova administração, a primeira coisa que vou fazer é pedir uma reunião, esclarecer o passado e vou-lhes dizer que isto no futuro não pode acontecer.”