"Zelensky foi longe demais nas exigências militares e vai ter que mudar o discurso"
21-07-2023 - 21:59
 • José Pedro Frazão, enviado da Renascença à Ucrânia

Em entrevista à Renascença, o investigador Ilya Kusa, especialista em política internacional do Instituto Ucraniano para o Futuro, explica o que pode mudar na estratégia de Kiev em relação à NATO e analisa o desafio da integração europeia. Nesta conversa registada na capital ucraniana, o analista dá a sua opinião sobre o que deve a Ucrânia fazer em relação aos Estados Unidos, à Turquia, à China e até África e América Latina.

Muitos analistas descreveram a cimeira da NATO em Vilnius como um “banho de realidade” para o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Qual é a sua perspetiva sobre os resultados da cimeira para a Ucrânia?

Há duas correntes de opinião na Ucrânia. A primeira defende que o Presidente Zelensky fez tudo bem, tendo o direito moral a falar da forma como o fez, exigindo o máximo que podia, conseguindo o que lhes tinha sido prometido.

Uma segunda corrente considera que ele foi longe demais. Concordo em parte com esta análise. Há uma lógica nesta abordagem de negociação com os parceiros ocidentais, com exigências e declarações públicas, sublinhando que apenas a Ucrânia está a lutar no terreno. Como este fardo recai sobre os ucranianos , com mortes em combate, temos o direito moral de fazer estas exigências.

Esta abordagem foi realmente eficaz no início da guerra, quando muitos países ocidentais tinham medo de apoiar a Ucrânia ou não acreditavam sequer que a Ucrânia conseguiria vencer ou pelo menos confrontar a Rússia. O poder e a vontade de Zelensky foi crucial para os parceiros europeus e americano a fazerem mais.

Isso não resulta para sempre. Há agora a noção de que não se consegue tudo o que se pretende. Chegou agora o momento em que esta abordagem não resulta como era suposto, principalmente porque ao fim de um ano e meio de guerra, muitos países não têm capacidade de providenciar o que a Ucrânia necessita. Falam sobre isto abertamente, da falta de capacidade de produção militar.

A questão da adesão estava mais no domínio da gestão de expectativas que os ucranianos tinham antes da cimeira. Realisticamente, a maioria dos analistas e especialistas na Ucrânia compreendia que a Ucrânia não seria contemplada com a adesão, tal como nos foi dito ao longo de meses pelos parceiros ocidentais.

Isto foi apenas uma questão de expectativas que, a determinado ponto, o Governo ucraniano não conseguiu controlar e comunicar. Tratou-se sobretudo de um desafio de comunicação em que, provavelmente, Zelensky pensou que esta estratégia poderia resultar de alguma maneira. De certa forma fez ricochete, ainda que não de uma forma demasiado grave. As expectativas estavam demasiado elevadas e não alinhadas com a situação política real que existia antes da cimeira.

Ainda assim, penso que a cimeira foi muito positiva para a Ucrânia. Conseguimos resultados muito bons, mas seria ingénuo concluir que haveria um consenso de todos os países para a entrada agora da Ucrânia.

O problema é que a abordagem de Zelensky não pode ser apenas esta. Depois da cimeira ele deve ter concluído que a sua diplomacia tem que ser diferente e multidimensional. Há muitos interesses diferentes em tantos países da Aliança e é difícil colocá-los todos alinhados.

Não há um sentimento de corrida contra o tempo para a Ucrânia tendo em conta as perspetivas políticas nos Estados Unidos no futuro próximo, com uma possível mudança em Washington enquanto a guerra se prolonga?

A opinião geral aqui é de que o apoio americano não irá cessar, independentemente de os eleitos serem Biden ou Trump. Defender e apoiar a Ucrânia contra a Rússia é do interesse dos Estados Unidos, seja quem for o presidente ou a cor política da administração.

Claro que existe alguma preocupação caso Trump regresse ao poder, usando o apoio financeiro à Ucrânia como moeda de troca com a Rússia. Ele dá a entender isso nas suas entrevistas, dizendo que acabará com a guerra em 24 horas e que conseguirá negociar isso com Putin. Toda a gente aqui pensa que ele usaria a Ucrânia como uma moeda de troca para negociações. Esta é uma preocupação que se restringe apenas à candidatura de Donald Trump no campo republicano.

No entanto, a maioria dos analistas na Ucrânia concorda que o enfraquecimento da Rússia é do comum interesse dos Estados Unidos e da Ucrânia.

Em matéria de Defesa, a estratégia de conceder "garantias de segurança" à Ucrânia é um plano B face à não adesão à NATO? E que tipo de garantias seriam aceitáveis para a Ucrânia?

Esta questão está também ligada às grandes aspirações da sociedade ucraniana. Os ucranianos esperam que a nossa segurança deve ser garantida por escrito através de um tratado. Há uma grande desconfiança em relação a diferentes formas alternativas de acordo como memorandos, resoluções ou declarações. Os ucranianos já tiveram uma experiência amarga com o Memorando de Budapeste de 1994 em que a Rússia foi signatária mas depois ninguém veio ajudar-nos em 2014. Esta é a noção que temos do que é uma “garantia de segurança”.

Por isso, precisamos agora de um tratado, por escrito, com palavras muito precisas sobre essas garantias de segurança.

Há algum modelo a seguir neste domínio?

Sim. O primeiro é a adesão total à NATO. As pessoas pensam que o artigo 5.º da NATO é uma garantia muito forte. O segundo modelo, caso não haja uma adesão, passa por um tratado escrito como o que existe entre os Estados Unidos e países como Israel, Coreia do Sul e Japão.

O processo europeu será mais tranquilo do que o da NATO?

Não diria. É mais fácil ao nível da obtenção de consensos entre países europeus. Não são tão inflexíveis nas suas posições sobre o acesso da Ucrânia. Existem preocupações políticas e económicas na Nato porque os parceiros europeus e americano tendem a abordar esta questão pelo ângulo russo. Ainda acreditam que isto pode levar a uma escalada.

Quanto à integração da Ucrânia, a questão está ligada à capacidade ucraniana de implementar reformas. O entendimento aqui é que se forem aplicadas as reformas que nos são pedidas, a integração europeia será muito mais fácil e expedita face à entrada na NATO.

Penso que a maioria dos ucranianos não entende a diferença entre os dois processos de adesão. Considero que temos poucas discussões sobre a nossa integração europeia em diferentes esferas. Não falo apenas da dimensão política como as reformas do sistema de governação ou da área judicial, mas também medidas de economia, finanças e indústria onde estamos em fraca situação.

Espero que tenhamos estas discussões antes da adesão à UE. Não acredito num processo rápido, portanto não será questão para resolver até ao final do ano. Vai demorar o seu tempo, sabendo que implementar reformas na Ucrânia é uma empreitada significativa e sempre foi um desafio. Não espero que isto siga de uma forma suave e rápida. Temos muitos problemas aqui e é por isso que ainda não conseguimos implementar reformas. Esta história já tem 10 anos.

De fevereiro de 2022 até agora, o que mudou na relação entre Ucrânia e dois vizinhos europeus relevantes como a Polónia e a Hungria?

A Polónia e a Ucrânia desenvolveram uma aliança muito forte nos planos político, económico, logístico. Dependemos da Polónia em muitas esferas, incluindo comércio internacional - a Polónia é essencial para as nossas importações e exportações- ou os fornecimentos militares estrangeiros. O grande progresso nestas relações permitiu até pôr de lado questões delicadas que provocaram sempre discussões entre os dois países, como o massacre de Volyn durante a Segunda Guerra Mundial.

Neste sentido foi realmente um passo em frente. A Polónia passou a ser um dos nossos principais “advogados” na UE e na NATO.

No que toca à Hungria, sempre tivemos relações um pouco mais problemáticas. Começou com a questão dos direitos dos húngaros a viver na Ucrânia. Budapeste considera que Kiev não trata bem a minoria húngara, o que não me parece verdadeiro.

A questão principal é que o primeiro-ministro Viktor Orban é um nacionalista que ao longo dos anos se tornou um nacional-conservador de direita. No tempo do presidente Poroshenko, este também jogava cartadas nacionalistas fora do nosso país e claro que ambos colidiam em vários assuntos. Orban não queria que o seu povo pensasse que ele era fraco e por isso começou a jogar esta carta da minoria húngara na Ucrânia. Ao mesmo tempo o nosso presidente também não quis fazer concessões. Por estas razões, este conflito apareceu e infelizmente não conseguimos suavizar as relações antes da guerra. De momento, para além desse tema, muitos ucranianos foram travados em múltiplas dimensões durante a guerra.

Como definiria as relações atuais entre a Ucrânia e a Turquia? Erdogan é um parceiro fiável para Kiev?

A Turquia é um parceiro circunstancial. Temos interesses comuns em diferentes áreas da economia, comércio, infraestruturas de energia. Importamos os drones turcos que usamos em combate contra os russos. Ao mesmo tempo não diria que a Turquia é vista como um parceiro fiável por causa das suas ligações com a Rússia.

Toda a gente entende que a Turquia tenta jogar pelos seus interesses. E fazemos o mesmo com eles, é uma parceria pragmática onde temos projetos comuns, mas não somos aliados, no sentido total da palavra. Sabemos que a Turquia tem os seus próprios interesses e motivações para cooperar com a Rússia num número de questões incluindo segurança regional, questões marítimas, comércio, energia, turismo. Por um lado, a Ucrânia compreende isso, mas por outro lado não pode confiar totalmente na Turquia por causa de determinadas questões em que não estará contra a Rússia porque não é do seu interesse económico.

A relação entre a Ucrânia e a China teve alguma evolução desde o início da invasão russa de larga escala? Sabendo das relações entre Pequim e Moscovo esta ainda é uma carta que Kiev tem que jogar neste contexto?

Infelizmente nunca tivemos uma estratégia coerente para a China. Durante anos não tivemos um embaixador em Pequim, apenas tendo sido nomeado muito recentemente um diplomata.

Diria que há duas opiniões sobre a China na Ucrânia. Por um lado, pensa-se que a China é um aliado da Rússia, pela forma como ajuda e apoia a Rússia, que nunca se distanciará de Moscovo e que, por essa razão, não devemos cooperar com a China.

Há diferentes versões desta opinião genérica , que vão até teorias da conspiração como a que a China começou esta guerra com a Rússia, combinada nos Jogos Olímpicos de Pequim entre Putin e Xi Jinping, com a luz verde deste a uma invasão russa. Não tenho nenhuma informação que o prove, mas isto foi sempre falado.

Outra corrente defende que a China não é um aliado da Rússia, que são parceiros por interesse da China no enfraquecimento da Rússia de forma a esta ser totalmente dependente de Pequim. Deste ponto de vista, a Rússia e a China não têm uma aliança estratégica, mas apenas amizade de palavras numa parceria circunstancial. Nesta versão, a China quer enfraquecer a Rússia, mas não que esta se desintegre ou que o regime colapse, porque precisa de uma Rússia unificada para continuar a usá-la contra os Estados Unidos.

Qual é a sua opinião entre essas correntes ?

Na minha opinião, China não é um aliado estratégico da Rússia e tenta improvisar um pouco durante a guerra. Não creio que a China tenha uma estratégia para a guerra na Ucrânia. Penso que tentam impedir a Rússia de colapsar por completo com uma derrota estratégica total na Ucrânia, porque isso significaria que a Rússia poderia cair na esfera de influência da Europa e dos Estados Unidos, o que não poderiam permitir. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento da Rússia em resultado das sanções ocidentais seria do interesse das empresas chinesas, permitindo tomar esse mercado.

Penso que a China quer que a guerra acabe assim que possível e, preferencialmente, como resultado de um processo de negociações entre a Rússia e o Ocidente, sem um vencedor claro, incluindo alguns pontos propostos pela China no seu documento publicado em Fevereiro. Isto para que o mundo já não seja dominado apenas pelo Ocidente e haja uma ordem mundial multipolar.

É difícil perceber como o nosso governo entende a China. Não tivemos a tal estratégia coerente, mas penso que o Governo perceciona a China como um aliado da Rússia. Há uma desconfiança entre a China e a Ucrânia, ainda que Kiev esteja ativamente envolvida em ações diplomáticas, tendo recebido o representante especial de Pequim. Aceitámos as suas iniciativas de paz, tal como as que surgiram de parceiros em África e América Latina. O nosso governo ainda está a avaliar as reais intenções da China.

Finalmente , Zelensky referiu-se em fevereiro deste ano à necessidade de novos caminhos de paz com participação da América Latina e África. Seis meses depois, não há nada de concreto por exemplo entre o Brasil e a Ucrânia. Acha que há mesmo uma estratégia ucraniana neste domínio?

Neste momento, não penso que haja uma estratégia, mas estamos no processo de a formular. Eles perceberam que precisam dessa estratégia. Isto é de facto um bom passo em frente, porque antes da guerra nunca foi pensada uma estratégia para a América Latina e África.

A nossa política externa estava fixada em dois polos: a Rússia e o Ocidente. Nunca tivemos uma política externa diversificada. Neste momento, o discurso de Zelensky dá a entender de que a Ucrânia precisa de mais aliados, envolvendo países não ocidentais.

Precisamos de pelo menos tentar começar a estabelecer laços com esses países. Um sinal muito forte foi a nomeação do vice-ministro dos Negócios Estrangeiros para o cargo de embaixador no Brasil, uma vez que é um diplomata com muito peso. Ele vai ser uma das pessoas que serão responsáveis por aproximar estes países, estabelecendo uma comunicação que faltava há muitos anos.