“Podem fazer promessas, podem atirar o dinheiro que quiserem ao SNS, nunca será suficiente”
24-03-2021 - 07:01
 • Fábio Monteiro

Por mais dinheiro que o Estado meta, profissionais contrate, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português será sempre insustentável, defende o economista especializado em gastos com saúde pública Ernesto Ferreira, em entrevista à Renascença. “Com o envelhecimento da população, a procura de serviços de saúde vai ser cada vez maior. Tal como os gastos com tecnologia e exames”, explica. O professor universitário diz ainda temer que, em breve, “se tenha que pôr um travão a fundo na economia”, o que levará a uma subida das taxas de juro e descida de gastos públicos.

Os diferentes governos portugueses “podem fazer as promessas que fizerem, podem atirar o dinheiro que atirarem ao SNS, nunca irá ser suficiente. Nunca irão olhar para o SNS e dizer: 'chegámos ao ponto ótimo'. Ou seja, basta, não vale a pena atirar mais dinheiro. Isto é uma bola de neve que tem tendência a crescer cada vez mais”, diz Ernesto Ferreira, economista especializado em gastos com saúde pública e professor na Universidade de Aveiro e Universidade a Beira Interior, em entrevista à Renascença esta quarta-feira.

E explica o porquê: a população está a envelhecer, os custos de tratamentos estão a aumentar. “Há novas tecnologias, mais custosas. Em vários países, o sistema de saúde vai absorver cada vez mais recursos.”

Ernesto Ferreira admite ainda ter receio de que quando a economia reabrir, a liquidez no sistema financeiro – as poupanças feitas durante os últimos doze meses - leve a uma maior inflação. “As pessoas vão-se vingar, depois de terem de estar obrigatoriamente confinadas, e as pessoas vão gastar este dinheiro”, diz. Isto pode levar a que se anuncie daqui a algum tempo algum” travão a fundo em termos da subida das taxas de juro, como uma descida dos gastos públicos. E isso pode novamente voltar a forçar as economias a cair, a cair durante muito tempo”.

A saúde e a economia sempre viveram uma “relação conflituosa”, para usar palavras de um artigo científico da sua autoria, no limbo do divórcio, ou isso é um problema de hoje?

O ser humano é um agente económico e a forma como nós atuamos na sociedade tem impacto na nossa saúde. Não é por mero acaso que a maior parte dos estudos apontam que pessoas de estratos económicos mais elevados, em termos de expectativas de esperança média de vida à nascença, estão desde logo em vantagem.

Ainda há alguns meses, num estudo sobre uma cidade inglesa, cujo nome não me recordo neste momento, era posto em evidência: na mesma localidade, no espaço geográfico da mesma cidade, havia uma diferença na esperança média de vida à nascença entre duas pessoas de dois bairros completamente diferentes. Um de um bairro que era extremamente rico, das pessoas com mais poder aquisitivo, e outro dos bairros mais pobres.

Se num contexto de uma cidade, há uma diferença tão grande na esperança média de vida à nascença, agora imagine entre países que têm maiores rendimentos e menores rendimentos. Isso é expectável. E daí que economia e saúde estão muito interligadas.

Mas no caso português, acha que é uma relação conflituosa?

Se estivermos a falar dos indicadores de saúde, em Portugal o comportamento é exatamente igual ao de outros países. Ou seja, marca a forma como a pessoa se enquadra no contexto económico.

Nós vemos isso no que se está a passar na atualidade. Estou-me a lembrar de um caso concreto: aquilo a que nós chamamos morte prematura - da pessoa que não chegou a atingir a idade que está estipulada, a idade que foi determinada para a esperança média de vida-, a morte prematura normalmente é influenciada por questões sociais, toxicodependência, carências alimentares, ou problemas de integração na comunidade, que têm efeitos no foro psicológico e que depois leva a outros problemas. A saúde em Portugal segue os mesmos padrões que noutros países. A saúde é afetada pela economia.

Estava a perguntar mais no sentido do financiamento da saúde...

O financiamento da saúde já é outra situação. Repare: é uma relação muito direta. Portugal é um país que garante na Constituição que o acesso é tendencialmente gratuito, isto é praticamente implícito.

E digo-lhe sinceramente: é uma das virtudes deste país, é conseguir garantir serviços de saúde que são de ótima qualidade. Comparando serviços de saúde como o dos EUA nem sequer se fala, é outra situação completamente à parte.

O Ernesto viveu e estudou nos EUA. Está, presumo, contente por não estar lá neste momento?

Os EUA têm um problema grave: não acredito que se consiga implantar algum dia o mesmo estilo de serviço de saúde que temos em Portugal.

Duvido muito, independentemente do tipo de ideologia ou partido, seja ele democrata ou republicano, duvido que isso algum dia se consiga aplicar lá. Acredito sim, que um sistema apropriado de seguros, um dia, consiga chegar à maioria da população. Isso pode acontecer. O Obama tentou e aproximou-se muito.

Falemos de Portugal. Já antes da pandemia, a saúde havia sido escolhida como uma das bandeiras do Governo de António Costa para a atual legislatura. E estávamos longe de imaginar o que aí vinha. Em dezembro de 2019, uma das bandeiras do Governo para o Orçamento de Estado para 2020 era o reforço do SNS em 800 milhões de euros e 8400 profissionais. O SNS estava financeiramente saudável quando a pandemia atingiu o país?

Em termos de solidez do sistema, acho que o SNS estava, para a altura, a par daquilo que se previa. A procura justificava o SNS que tínhamos, ou seja, a escala da dimensão adequada àquilo que se previa ser a procura do momento. Mas uma das características precisamente das pandemias é que é difícil prever a duração. E ninguém imaginava que isto ia ter a dimensão que tem.

Uma das coisas a que temos de prestar atenção é: atire-se o dinheiro que se atirar ao SNS, nunca é suficiente. Uma das particularidades que a saúde tem é essa: há sempre procura - mesmo em situações de normalidade - e cada vez mais há uma procura de serviços. Por vários motivos.

Há novas tecnologias mais dispendiosas, por exemplo. Em vários países, o sistema de saúde vai absorver cada vez mais recursos. E isto é fácil de entender. Com o envelhecimento da população, a procura de serviços de saúde vai ser cada vez maior. E há cada vez mais tratamentos para doenças que se apresentam cada vez mais relacionadas com a idade.

E digo-lhe sinceramente: podem fazer as promessas que fizerem, podem atirar o dinheiro que atirarem ao SNS, nunca irá ser suficiente.

Nunca irão olhar para o SNS e dizer: "chegámos ao ponto ótimo". Ou seja, basta, não vale a pena atirar mais dinheiro. Isto é uma bola de neve que tem tendência a crescer cada vez mais.

Acha que este é um problema consciente por parte dos governos europeus ou é um diagnóstico ainda por fazer?

O que nós nos temos de consciencializar, pensar, como sociedade, é que tipo de cuidados de saúde devem ser providenciados gratuitamente ou semi-gratuitamente à população.

Enquanto sociedade, que cuidados de saúde conseguimos comprar? Porque hoje em dia, ao nível dos países da OCDE, está-se a gastar um euro em cuidados de saúde por cada 10 euros de criação de riqueza. Portanto, estamos a gastar, em média, praticamente 10% do PIB dos países em cuidados de saúde.

Agora, o seguinte: é viável, podemos continuar a expandir estes cuidados de saúde, e o que é que sobeja da economia? Esse é o grande problema que iremos enfrentar no futuro. A médio prazo, vamos ter de fazer escolhas em termos do estado de previdência que queremos. E essas escolhas são penosas. Não sei se os políticos têm coragem de as fazer.

Pode concretizar de que escolhas estamos a falar?

A OCDE faz a divisão de vários tipos por nove tipos de gastos sociais. E precisamente a saúde é um desses gastos. A grande questão é a seguinte: de todas as categorias de gastos, será que é mais benéfico em termos diretos para a saúde gastar mais um euro num gasto específico, retirando às outras categorias, ou inverter o processo e gastar mais noutros tipos de gastos sociais?

Mantendo [o investimento] a saúde ou até encurtar a saúde? Ou seja, em termos de contributo marginal, obtém-se mais gastando mais um euro em saúde ou noutros tipos de gastos sociais?

E é interessante o seguinte: aquilo que têm comprovado alguns estudos é que há certos tipos de gastos sociais que têm mais impacto direto na saúde que propriamente os gastos na saúde.

Vou explicar de outra forma. Por exemplo, na mortalidade infantil, nós em Portugal tínhamos uma taxa, há 30 ou 40 anos, que era vergonhosa. Era uma situação muito, muito lamentável. O apoio à terceira idade - e isto tem-se visto nos países da OCDE - tem uma implicação direta na redução da mortalidade infantil.

Como é que isto se explica? Normalmente, são os avós que diretamente ou indiretamente cuidam das crianças e fornecem o apoio aos pais. Ou seja, há uma ligação indireta entre os laços familiares das pessoas dos avós e precisamente a saúde infantil das crianças.

Nos últimos anos, principalmente na última década, houve um crescendo de críticas à capacidade do SNS. E houve várias queixas de degradação de serviços. Estamos realmente a assistir a uma degradação de serviços ou a um aumento de necessidades e isso não está a ser bem interpretado?

Quando falamos em degradação de serviços, acho irónico às vezes dizermos isso. Nós temos de nos lembrar o que era o antes. E depois temos que contextualizar o que temos aqui com outros países.

Por acaso, tenho uma situação pessoal, que tem a ver com um membro da minha família que teve uma situação de saúde. O meu filho, que teve uma situação de saúde complicadíssima, e teve de recorrer através do SNS para França para várias intervenções cirúrgicas.

E acontece o seguinte: aquilo que eles fizeram lá foi muito interessante, a tecnologia que utilizaram foi muito interessante, mas as infraestruturas, os hospitais, eu cheguei a comentar para pessoas: "epá, nós quando nos queixamos de lá, das infraestruturas que temos lá, isto aqui, quer dizer". Não vi nada de extraordinário por lá.

O procedimento [para o meu filho] só estava disponível em França ou nos Estados Unidos, em Boston. O SNS disponibilizou-se e fomos para França. E daí que reconheça o que foi lá feito. Mas em termos de toda aquela envolvência, de todo aquele aparato do hospital, não vi nada.

Digo: eu já não via um hospital com aquelas características, com aquela forma de entrada, de acolhimento, de lugares úteis e públicos há muito tempo. Porque saúde não é só providenciar um serviço, também se vende o serviço; aquela envolvência toda que tem um custo. E daí que nós aqui não nos possamos queixar dessa forma.

Normalmente quando procuro um serviço de saúde, contextualizo - tendo em conta a experiência que tive nos EUA e que tive noutro país - como é que nós estamos aqui. E é esta tal situação.

É um facto e uma característica da população é aquela tendência constante de dizer eu quero isto, eu quero este serviço. Nós temos de informar a população.

Há pouco tempo, num hospital em Viseu, vi uma coisa muito interessante. Tinham lá, num corredor de espera, onde as pessoas estavam à espera para ser admitidas para a consulta, afixado na parede quanto é que custava cada procedimento médico que normalmente é dispensado aos utentes.

E esta informação deve ser interiorizada por todos. Ou seja, ao recorrer a um médico público, as pessoas dizem: "mas é de graça". Não, não é de graça. Alguém paga. Tem um custo. Tudo que é feito tem um custo. E nesse contexto, às vezes, as pessoas não se mentalizam que isto é verdade, que isto tem de ser pago por alguém.

Não é também por mero acaso que nós somos das sociedades, dos países onde a população é mais medicada, se olharmos na panorâmica de países comparáveis connosco.

Isso é um bom indicador ou mau indicador?

No meu entendimento, é um mau indicador. Leva-me a pensar de outra forma, que é a seguinte: nós estamos hoje em dia a empurrar os utentes para fazerem cada vez mais exames de diagnóstico, para fazerem cada vez mais exames de averiguação de potenciais problemas de saúde.

Para experimentarem tipos diferentes de medicamentos. Às vezes, faz-se isto como uma forma de desresponsabilizar alguns profissionais de saúde, de não quererem assumir um diagnóstico sem se recorrer a uma panóplia de exames, que podem servir um dia para comprovar que não houve qualquer erro na previsão e diagnóstico que foi feito ao doente.

Eu já vi este cenário nos EUA, porque lá é muito fácil que uma pessoa, por qualquer motivo, recorre a um hospital, recorre a um médico, e as coisas correm mal, e automaticamente, por direito, há logo um processo sobre o médico. A responsabilidade legal cai sobre os ombros do médico. E o que eu noto é que esta atitude, hoje em dia, está-se a assumir também muito aqui.

A sua tese de doutoramento foi sobre os chamados gastos sociais dos diferentes países da OCDE com cuidados de saúde. De onde veio o tema?

Terminei a minha tese de doutoramento em Portugal, mas fiz toda a parte curricular nos Estados Unidos, em Nova Iorque. Quando entrei na universidade, não comecei com economia, mas com ciências políticas.

O meu objetivo inicial era tirar direito internacional, mas depois, na licenciatura, acabei por fazer muitas cadeiras de economia e acabei por seguir esse rumo. Sempre me interessou a parte social. E depois há outra coisa que também me interessa: aqui sou português, não direi que sou da classe média, nunca direi que sou da classe média-baixa, nunca me contextualizei dessa forma.

Mas nós, seja a pessoa quem for, ao chegar a um país, lá é sempre estrangeiro. Nós lá [nos EUA] pertencemos sempre a algo que vem de fora. E daí que nesse contexto sempre tive aquela atitude de dizer: estou aqui, pertenço automaticamente a um grupo de pessoas que pode ser discriminado, ou seja, há aqui qualquer coisa que alguém me pode apontar, e aqui estou em desvantagem, e daí que sempre me tenha preocupado a parte social.

Sempre me interessou entender como os países, a Europa - que era apontada como um lugar perfeito por causa do estado social e estado de previdência - e daí o interesse por estudar o fenómeno europeu e ver como é que os apoios sociais tinham impacto sobre a vida das pessoas e diretamente sobre a qualidade de vida, e, por inerência, sobre a longevidade das pessoas.

Quando começou a ver os dados concretos, o que o surpreendeu mais?

Lá estava consciente de antemão: se quiseres fazer alguma coisa por ti, faz. Mas não contes com os outros para fazerem por ti ou com o Estado. Isto lá está incutido em todas as pessoas. Não olhar para o Estado como alguém que tem alguma obrigação para connosco.

Tanto que diretamente ou indiretamente, o Governo federal não se envolve muito com questões sociais. Nos anos 70, os gastos com educação, por exemplo, eram feitos ao nível dos estados ou municípios. E outros gastos, gastos com a saúde, também eram feitos nesse contexto.

Eram mais ao nível local do que ao nível federal. Sempre houve lá aquela filosofia de vida que "se fizermos por nós, se tivermos sorte, nós conseguimos chegar lá", mas se as coisas não correrem bem o Estado não está lá para nos segurar. Nessa forma de olhar para as coisas e depois olhar para a Europa, a atitude é relativamente diferente.

Nós sabemos que se as coisas correrem mesmo mal, podemos ser forçados a ir dormir debaixo da ponte. Mas, geralmente, há alguma rede no sistema que está em vigor na maior parte dos países - e oxalá que o sistema de proteção social não desapareça por completo - que, se as coisas correrem mal, nos vai apoiar.

Após a análise clínica que fez dos países da OCDE, como é que fica Portugal na fotografia?

Portugal, no contexto da altura em que a análise foi feita, não fica abaixo dos outros. Nós estamos a par com os outros. Olhando para as possibilidades, acho que estamos a tirar bom proveito dos dinheiros que são gastos.

Vemos a ótima qualidade dos serviços que temos. Tal como a formação dos nossos profissionais. É tão boa que há uma procura constante dos profissionais de saúde portugueses lá fora. É sinal que há algum apreço pelas pessoas envolvidas em todo o processo. Agora, a questão é como iremos nós trabalhar com isto tudo no futuro? Não pode haver saúde se não houver dinheiro. Que economia fica depois de tudo isto?

Consegue responder a essa questão?

Tenho ouvido pessoas que entendem mais do que eu nesta matéria e, mesmo generalizando, falando além do caso português, temo que daqui a algum tempo se tenha que pôr um travão a fundo na economia.

Digo isto pelo seguinte motivo: uma das coisas que têm estado a acontecer, por exemplo nos EUA, a administração Biden, para impulsionar a economia, injetou grandes quantidades de dinheiro na economia, os tais cheques, e a administração Trump fez a mesma coisa.

Os meus pais, aqui em Portugal, também receberam dois cheques, na altura em que estava lá o Trump, dois cheques de 600 dólares. Até tenho comentado com algumas pessoas sobre esta situação: como muito habilmente se usa a economia para fazer política.

Enquanto as transferências da reforma que recebem pontualmente todos os meses são feitas através de transferência bancária, neste contexto aqui, não, veio um cheque, por correio, para cada um deles, com a assinatura do Trump, a dizer "a grande nação americana, através do esforço que está a fazer, está-lhe a enviar este cheque para mitigar o problema que está a viver em devido à pandemia".

Neste momento, supostamente está para ser aprovado no Senado uma injeção de 1.9 triliões de dólares, uma dimensão astronómica. [Já foi aprovada.] Isso vai ter um impacto direto: essa injeção de dinheiro, em termos de dinamização da economia, vai ter algum impacto, oxalá que sim. Ao mesmo tempo, ainda vimos na semana passada, em Portugal, que nas contas poupança foi acumulado um montante aproximado de 180 mil milhões de euros, uma taxa de poupança que nunca se tinha visto antes.

Quando as economias começarem a abrir, todas elas, a economia europeia vai abrir mais tarde que a dos EUA porque o pacote de estímulos de Bruxelas é muito menor, mas o que irá acontecer é o seguinte: toda esta liquidez que existe no sistema, as pessoas vão-se vingar, depois de terem de estar obrigatoriamente confinadas, e as pessoas vão gastar este dinheiro.

E isto a princípio não vai ter grandes efeitos, mas passado algum tempo vai criar uma pressão inflacionista, uma pressão sobre os preços tão grande que pode acontecer a inflação entrar num processo de descontrolo.

E então para travar essa possível situação, os governos, através do BCE, podem ser obrigados a ter de aplicar uma política monetária muito mais restritiva, fazer aumentar as taxas de juro de forma diminuir a procura. E depois, por parte da política fiscal, os estados vão cortar nos gastos públicos para tentar conter a inflação.

Como dizem alguns especialistas, como o Larry Summers, que foi assessor de Bill Clinton,isto levar a que se anuncie daqui a algum tempo algum travão a fundo em termos da subida das taxas de juro, como uma descida dos gastos públicos. E isso pode novamente voltar a forçar as economias a cair, a cair durante muito tempo.

O aumento das taxas de juro vai afetar, principalmente, que segmentos da população?

Os mais endividados.

Ou seja, quem já está numa situação precária.

Exatamente. Em termos de desigualdade, esta pandemia veio por a nu as fragilidades dos sistemas económicos. Se nós compararmos esta pandemia com outras, por exemplo a pneumónica, de 1917, a devastação em termos de mortalidade foi muito grande. Nesse contexto, a pandemia durou de 1917 a 1921. A seguir a essas datas, a pandemia terminou, controlou-se.

Mas a economia nessa altura não fechou, as economias mantiveram-se abertas e mantiveram-se em atividade. Nos EUA, seguiram-se os anos 20, que foram os anos de ouro dos EUA, e depois em 1929 veio a Grande Depressão.

Alguns historiadores de economia estão a traçar um paralelo daquilo que aconteceu um século atrás e aquilo que possivelmente pode acontecer agora, como consequência da abertura da economia. Ou seja, a seguir a isto, virem anos de ouro, três, quatro, cinco anos, e depois, por um motivo ou por outro, pagar-se toda a fatura a seguir.

Como tem acompanhado a pandemia? Se tivesse numa posição de decisão, tem ideia do que teria feito diferente?

Não iria optar por fechar toda a economia, não iria fazer isso. Iria optar por manter alguns setores de atividade abertos pontualmente. Está comprovado: não é fechando todos os setores de atividade, não é no local de trabalho que muitas das vezes uma pessoa é contagiada, é mais na parte social.

E daí que essa necessidade que houve de fechar tudo, talvez tenha sido a forma mais imediata para fazer baixar os casos, mas depois não houve a consciência de fazer assim. Esta linha orientadora tem de se manter.

As faturas vão chegar, as moratórias vão acabar, tudo isto vai ter um custo económico. E quando há um custo económico, isto tem um efeito nas pessoas.

O Governo não devia ter uma especialista de cada área das ciências sociais para ouvir quando decreta as medidas do estado de emergência, ao invés de só ouvir vozes do campo da saúde?

Devia, devia. Ter certa transversalidade. Mas isto não é só um problema de Portugal.

Ora se oscilou entre a negação por completo, ora se oscilou ao só se ouvir os profissionais de saúde, sem levar em conta todas as vertentes.

Se fosse um profissional de saúde, diria: vamos ficar todos em casa, todos blindados, e daqui a uns meses, quando isto acabar, a gente sai da toca.

Agora o problema é o seguinte: as economias não recuperam assim, não saltam de um momento para o outro da caixinha de Pandora, não saltam cá para fora, porque há setores que nunca mais voltam a ter atividade. Há setores que são irrecuperáveis.