Falta de apoio espiritual torna ainda mais duro o desafio dos atletas
06-08-2021 - 06:37
 • Filipe d'Avillez

Um padre com experiência a acompanhar atletas e um psicólogo do desporto falam das dificuldades acrescidas de competir nuns Jogos Olímpicos sem público e sem acompanhamento espiritual presencial.

A falta de acompanhamento espiritual presencial na aldeia olímpica em Tóquio torna ainda mais complicado o desafio dos atletas, sobretudo os que têm fé.

As limitações impostas pela Covid-19 levaram a organização dos jogos em Tóquio a impedir o acesso de ministros de culto. A aldeia olímpica continua a ter um espaço inter-religioso, mas quem quer falar com um padre, imam, rabino ou ministro de outra confissão religiosa tem de marcar um atendimento por videoconferência.

Para o padre José Antunes, isto não chega para a vida exigente de um desportista. “É evidente que a presença física é fundamental para apoiar estes atletas, porque não é com teleconferência que a gente dá apoio que fortalece, que anima, alguém que tem necessidade de explicar e expor as suas angústias, as suas situações de derrota, ou de vitória.”

“Quando o fracasso, as lesões, a desilusão batem à porta, é evidente que é necessário apoio que abarque todas essas dimensões. O apoio à distância não dá. A dimensão física é fundamental, porque eles estão aí a lutar, em todas as modalidades, precisam de encorajamento, têm necessidade de uma direção espiritual, de um apoio na sua hora de dor e as horas complicadas”, diz o sacerdote da arquidiocese de Braga, que é também dirigente do Vitória Sport Clube, conhecido como Vitória de Guimarães, e nessa qualidade está habituado a conviver de perto com atletas de alta competição.

O psicólogo do desporto Jorge Silvério, que acompanha perto de 20 atletas olímpicos, admite que para quem tem fé esta falta de apoio espiritual pode ser um obstáculo. “Eu diria que para um atleta que tem fé faz todo o sentido, se ele normalmente, no seu dia-a-dia fala com alguém da sua confiança, que o ajuda na parte espiritual, acho que faz todo o sentido que isso também exista nos jogos, e que não haja uma quebra ou um hiato nessa relação com a religião, seja ela qual for. Neste sentido acho que pode ter uma importância, no sentido de não quebrar a rotina normal do atleta”.

Embora o Jorge Silvério admita que em 30 anos de experiência neste ramo são poucos os atletas que conheceu que vivem a fé de forma mais intensiva, o padre José Antunes tem uma experiência diferente no seu contacto direto com os desportistas. Há casos mais extrovertidos, como acontece com atletas da América do Sul, por exemplo, mas não é por serem mais comedidos que os portugueses são menos crentes, diz.

“Há gente que no recato do balneário faz a sua oração em silêncio, antes de entrar no campo concentra-se e reza. Eu vejo-os ali em oração pessoal. Um fecha-se ali, outro acolá, depois abraçam-se naquele grito, antes de começar, a unir as suas forças e a voz para um objetivo.”

“Outros, infelizmente, aquilo é um fetiche. O benzer-se quando entram no estádio, é um fetiche, não diz nada. É um costume. Mas grande parte deles acreditam e Deus faz parte da sua vida. Não extravasam muito, mas acreditam. Quem tem fé, há ali uma força especial para o embate, no respeito pelo outro, na vitória não ser altivo, na derrota não ir abaixo. É essa força que vem do interior que os anima”, diz.

Toda esta experiência diz ao padre José Antunes que a dimensão religiosa é inseparável do desporto. “O desporto tem uma relação muito direta com a fé. Aquilo que o desporto nos faz acreditar tem uma relação muito direta com a fé e muitas vezes é um chamamento grande para que entendam os jovens de hoje qual o caminho a seguir. Poderíamos ter melhores resultados em diversas áreas sociais se houvesse melhor compreensão e aceitação dos valores da prática desportiva. Porque de facto é fundamental, o desporto exige prática constante, mas é muito importante também a fé que dá certeza e força”, acredita.


Falta de público “é terrível”, mas prepara-se

Outra dimensão que marca incontornavelmente estes Jogos Olímpicos é a falta de público nas bancadas.

Para o padre José Antunes a situação não é nova, uma vez que como dirigente e vitoriano presenciou vários jogos no Estádio D. Afonso Henriques com as bancadas vazias. O sacerdote não deixa dúvidas sobre o que pensa desta realidade.

“É terrível. Este ano os jogos do Vitória eram uma coisa terrível, uma dor de alma. Eu dizia muitas vezes tirem-me deste filme, estou farto deste filme, não volto mais aqui. Não dá nada, parece a fazer de conta.”

“Para os atletas é fundamental o apoio, o incentivo, o puxar por eles. É fundamental. Um atleta nuns jogos olímpicos, não ter aquele apoio, os abraços entre colegas de diversas religiões, culturas, aqueles abraços que têm no final das vitórias e das lutas que têm. Deve ser impressionante e doloroso”, afirma ainda.

A situação põe-se especialmente nos jogos olímpicos em que, ao contrário do que acontece no futebol, raramente se sente hostilidade nas bancadas, mas apenas apoio. “Mesmo perdendo as pessoas apoiavam, porque ali não há credos, não há mais e menos, é o ideal olímpico mais alto e mais forte. Se o atleta não ganha, se não consegue passar a barra no salto em altura, ou atingir o salto em comprimento, as palmas vêm na mesma para animar. É fundamental, esta necessidade do outro para que se chegue onde se quer chegar. Agora parece fantasmagórico.”

Para o psicólogo Jorge Silvério, porém, esta é uma dimensão que é possível trabalhar e que afeta os desportistas de forma diferente. “Aqui cada caso é um caso. Há atletas que usam o público para se galvanizarem e motivarem ainda mais e há outros para quem a presença de público até pode ser um fator que prejudica o rendimento. Estou a lembrar-me, por exemplo, daqueles atletas que normalmente, na sua prática desportiva regular, não têm muita gente a assistir.”

“Claro que isto também se prepara, o facto de de repente entrarem numa piscina e ela estar cheia, ou o facto entrarem num pavilhão e ele estar cheio, ao contrário do que se passa no nosso país, e isso poder ter influência no rendimento desportivo de forma negativa. Mas tudo isso se prepara, sabendo com antecedência. O que se tentou foi reduzir ao mínimo o impacto da ausência de público na prestação desportiva dos atletas”, explica.

Atletas cada vez mais dispostos a falar dos seus problemas

É habitual verem-se os atletas nos Jogos Olímpicos a extravasar os seus sentimentos de forma mais enérgica, tanto na vitória como na derrota. São, afinal de contas, quatro anos de preparação para estes momentos, ou neste caso particular, cinco.

Jorge Silvério acredita que as particularidades em torno destes jogos ajudam a explicar algumas das reações mais intempestivas que se têm visto.

“Eu acho que foi muito importante os Jogos Olímpicos terem-se realizado, porque é um objetivo. Andaram a lutar por ele durante cinco anos, muitos deles com muitas alterações na sua própria vida, com muitos sacrifícios. Por isso foi excelente que se tenham realizado. Agora, estão a realizar-se numas circunstâncias muito diferentes e muito difíceis. Os atletas estão muito restringidos em relação àquilo que podem fazer e, portanto, obviamente que isso acaba por impactar os atletas e é normal que em termos de reações emocionais haja um menor controlo, e assistimos a algumas reações, quer de euforia, quer de tristeza, que se calhar se fosse um ciclo olímpico normal, não seriam tão evidentes.”

Mas há outro fator. Jorge Silvério sente que os atletas estão cada vez mais confortáveis a falar dos seus problemas emocionais e psicológicos. “A própria Simone Biles dizia isso, o facto de Michael Phelps e da própria Naomi Osaka terem falado do impacto que o desporto tinha na sua saúde mental, também lhe permitiu a ela falar sobre isso com mais à-vontade. Depois isso leva a que outros atletas se sintam também à vontade para falar sobre problemas de que normalmente não falariam.”

“O meio desportivo é um meio muito competitivo e onde não é muito habitual mostrar alguma fragilidade e alguma vulnerabilidade. Abriu-se também um pouco a porta para as questões da saúde mental, que existem entre os atletas, se calhar até há pouco tempo muitos deles sofriam em silêncio, mas agora como há esta maior abertura começam a sentir essa liberdade para poderem falar.”

“Mais importante que falar é sentirem e poderem perceber que há pessoas que as podem ajudar, neste caso os psicólogos do desporto, que podem ajudas a ultrapassar estas dificuldades”, assegura Jorge Silvério.