“Cabo Delgado não pode cair de novo no esquecimento”
10-05-2021 - 12:00
 • Ângela Roque

Coordenador dos projetos da Helpo em Moçambique, Carlos Almeida, expõe em Lisboa fotos e textos sobre a realidade dos deslocados que a violência jihadista já elevou a mais de 700 mil. Iniciativa assinala os 14 anos de trabalho desta ONGD portuguesa, e quer ser um “grito de alerta” para a crise humanitária que se vive naquele país africano.

“O princípio, o meio e o que resta - olhos nos olhos com Cabo Delgado”, assim se intitula a exposição de fotografias e textos da autoria de Carlos Almeida.

As imagens foram recolhidas nos locais onde a Helpo está a apoiar as famílias de deslocados, vítimas da perseguição dos radicais islâmicos.

O coordenador dos projetos que esta ONGD portuguesa desenvolve no norte de Moçambique – e que se diz um “fotógrafo amador, no sentido em que amo a fotografia” – espera que a exposição ajude a manter o tema presente.

A mostra pode ser vista a partir desta segunda-feira na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa, e tem um cariz solidário: cada foto tem um número restrito de cópias que podem ser adquiridas, revertendo o dinheiro para os projetos da Helpo no norte de Moçambique, onde assegura apoio alimentar, e agora também psicológico, mas a educação continua a ser a grande prioridade.

Onde e quando é que foram tiradas estas fotografias?

Foram tiradas durante os trabalhos de apoio aos deslocados internos, que a Helpo está a fazer. Algumas foram tiradas em agosto de 2020, quando começámos a ter um trabalho maior de apoio alimentar a estas comunidades de deslocados. Outras são mais recentes, foram tiradas no final de abril, algumas em Cabo Delgado, outras em Nampula, para onde estas pessoas estão a ir.


Qual é o principal objetivo desta exposição?

Posso dizer que tenho a grande honra de poder fazer uma exposição fotográfica, mas eu não sou fotógrafo profissional, sou amador, no sentido em que amo mesmo a fotografia! Mas, mais do um projeto pessoal, este é um projeto da Helpo. Não se trata se fotografar a desgraça alheia, mas estas 14 fotografias estão carregadas de outro simbolismo: são 14 para simbolizar os 14 anos que a Helpo está a trabalhar no norte de Moçambique, e todas as pessoas retratadas são nossas beneficiárias. Ou seja, não estivemos a tirar fotografias porque a imagem era bonita, é mesmo fruto do nosso trabalho.

Algumas pessoas, nomeadamente duas crianças que aparecem, são crianças com quem já trabalhamos desde 2011. Pertenciam à comunidade de Chinda, que fica no distrito de Mocimboa da Praia, que foi atacada e destruída, e as pessoas tiveram de fugir.

Estas fotografias surgiram neste contexto de andarmos à procura das crianças. Já conseguimos encontrar algumas delas, umas em Nampula - deslocaram-se 600 quilómetros, e agora estão em porto seguro -, outras em Montepuez, outras na cidade de Pemba e arredores.

Mas, todas estas 14 fotografias foram tiradas no âmbito do nosso trabalho, com exceção de uma que foi tirada no campo de deslocados 25 de Junho, em Metuge, onde não estamos a trabalhar, mas temos lá parceiros que trabalham connosco.

Todas estas fotografias têm um toque de esperança e de otimismo, apesar dos textos também serem pesados, porque efetivamente refletem uma situação que é dramática, mas acreditamos que com o nosso trabalho podemos minimizar estas situações que estão a ocorrer e permitir que estas pessoas consigam aos poucos recomeçar as suas vidas.

Um dos objetivos da exposição é darem a conhecer o vosso trabalho?

E é impedir que isto caia no esquecimento. Este último ataque a Palma foi o mais mediático de todos, e também teve esse dom de trazer a palco uma situação que já era grave e dramática, mas que não estava a ter a atenção devida. Mas, agora receamos - por vezes isso acontece – que depois de um grande pico de atenção as coisas passem ao esquecimento, e evitar isso é um dos objetivos desta exposição: é não deixar cair esta situação no esquecimento. Porque o número de deslocados continua a aumentar.

Tudo começou há mais de três anos, no dia 5 de outubro de 2017, quando Mocímboa da Praia foi atacada pela primeira vez. Desde essa altura têm ocorrido ataques que causaram, primeiro pequenas movimentações, deslocações, e desde há um ano números bem maiores, agora já existem mais de 700 mil deslocados.

Diariamente, recebemos a atualização do número de deslocados da vila de Palma, que neste momento já são mais de 30 mil. As indicações que tínhamos quando foram os ataques de 24 de março, era que estariam cerca de 60 mil pessoas na vila de Palma.

E depois da notícia do ataque a Palma, em março, ter corrido mundo, o que é que já mudou. Há mais ajuda?

Há vários atores no terreno, as agências das Nações Unidas, ONGDs internacionais e portuguesas, como a Helpo e a Oikos. A própria sociedade civil moçambicana está muito empenhada, os empresários de Pemba e outras organizações, estão muito empenhados em tentar minimizar os problemas, que são muito grandes.

E a Igreja, continua a ter um papel importante?

Sim, sem dúvida, mesmo após a saída do antigo bispo D. Luiz Lisboa, com o novo bispo Juliasse Sandramo as coisas continuam a evoluir. A Cáritas está muito presente e continua a prestar ajuda a estas pessoas de uma forma transversal, sem dúvida nenhuma.

A vossa ajuda no terreno modificou-se? Que apoio prestam no norte de Moçambique?

O principal foco do trabalho da Helpo, desse o início, tem sido a educação. Começámos no ensino primário, depois estas crianças passaram para o ensino secundário, e criámos um programa de bolsas de estudo, que tem sido um grande sucesso. Neste momento já temos alguns dos nossos alunos apoiados a querer entrar na universidade, e estamos a tentar reinventar-nos para termos apoios ao nível do ensino superior.

À parte disso, começámos mais recentemente um trabalho ao nível da nutrição materno-infantil, e também o apoio psicossocial. Todas estas famílias vêm muito traumatizadas, em especial as crianças, grande parte delas saiu das suas aldeias em fuga, por causa dos ataques, e viram grandes atrocidades serem cometidas.

Estes são os três grandes focos do apoio que estamos a dar, neste momento, a estas famílias: em primeiro lugar, e de base, o apoio alimentar, que é muito necessário, há famílias a passar fome; a questão dos rastreios nutricionais às grávidas e crianças, para poder encaminhar situações que sejam preocupantes; o apoio psicossocial, porque as pessoas estão traumatizadas e nem sequer sabem que têm um problema que pode ser resolvido; e, finalmente a questão destas crianças voltarem à escola.

Muitas das crianças não trazem sequer documentos de identificação, estão numa situação muito precária, de quase perda de identidade, por isso é muito importante que esse trabalho seja feito, de fazer com que as crianças tenham documentação, que voltem à escola, que possam ter material escolar e que as suas vidas aos poucos possam voltar ao normal.

Está há mais de 10 anos em Moçambique. Continua a sentir-se motivado?

Em 2010, assim que cheguei, tive a honra de conhecer um padre italiano, o padre Pietro, que me disse uma frase que eu nunca mais esqueci: “o nosso objetivo é tornarmo-nos inúteis”. E neste momento o nosso objetivo é mesmo esse, é chegar a um dia em que não faça sentido a nossa presença, e que a nossa ajuda não seja necessária. E esse vai ser o dia em que sentir-me inútil será sentir-me feliz.

Infelizmente acho que, mesmo sendo uma pessoa muito otimista, esse dia ainda está longe e há um longo caminho a percorrer. Há muito trabalho a ser feito e a Helpo conta com ajuda de todos os portugueses. Somos uma organização de confiança e as pessoas depositam em nós esse voto e, de certa forma sentem que estão connosco lá em Cabo Delgado, a ajudar-nos.

A inauguração desta exposição será limitada, não podemos receber todos os amigos que gostariam de estar connosco, por causa da pandemia, mas vai estar aberta ao público na Ordem dos Médicos, e espero que permaneça durante algum tempo.