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Lei da Liberdade Religiosa faz 20 anos. O que se conquistou e o que falta fazer

22 jun, 2021 - 06:36 • Filipe d'Avillez

De protestantes a hindus, todos agradecem a lei que veio permitir mais igualdade de tratamento para comunidades minoritárias, mas chamam também atenção para questões que devem ser salvaguardadas e conflitos que se avizinham.

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No dia em que a Lei da Liberdade Religiosa faz 20 anos, a Renascença falou com representantes de cinco das maiores comunidades religiosas em Portugal.

Católicos, evangélicos, muçulmanos, judeus e hindus falam de como a lei veio mudar a sua vida para melhor, mas também do que falta fazer e das novas ameaças que se colocam ou poderão vir a colocar-se no futuro próximo.

Liberdade religiosa é o desenvolvimento comunitário da liberdade de consciência

A Igreja Católica é coberta pela Concordata de 1940, que, por causa da Lei da Liberdade Religiosa, foi depois renegociada. Por isso, a Igreja não é, de facto, coberta pela lei da liberdade religiosa. Dito isso, parece-me que a lei é muito importante. A Liberdade Religiosa é um valor fundamental para o desenvolvimento de sociedades abertas e democráticas, sociedades em que as pessoas possam discutir valores e o sentido último da sua existência e notamos que os regimes autoritários têm dificuldade em lidar com a liberdade religiosa.

Notamos também que as tradições do liberalismo e do republicanismo só gradualmente é que se foram adaptando a esta noção da liberdade religiosa. Viam a religião como oposição às liberdades cívicas, portanto estamos num processo de desenvolvimento civilizacional que me parece importante, em que da parte das religiões, mas nomeadamente da Igreja Católica, evoluiu sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, com um novo entendimento de como se deve enquadrar a liberdade religiosa na vida da sociedade.

A liberdade religiosa é como que o desenvolvimento em termos comunitários da liberdade de consciência. São duas liberdades extremamente importantes para que haja capacidade de uma sociedade funcionar de forma plural, mas ao mesmo tempo respeitando os valores dos outros e procurando consensos, porque a sociedade não funciona sem consensos. Daí que a lei da liberdade religiosa e a pluralização das religiões em Portugal, e noutros países, traz como passo seguinte o diálogo entre essas comunidades, para que no seio da sociedade se vá gerando algum consenso sobre alguns valores que são comuns e que permita que a comunidade trabalhe como um corpo orgânico e criativo, e não com guerras entre fações.

Padre Peter Stilwell, responsável pelo diálogo inter-religioso do Patriarcado de Lisboa


Medo de conflitos entre liberdade de consciência e “novos direitos”

Uma das grandes vantagens que a lei trouxe para a nossa comunidade foi a nível da comunicação social. A nossa presença na RTP 2 tonou-se bastante efetiva, assim como o ensino da Educação Religiosa Evangélica nas escolas.

Na assistência espiritual nos hospitais houve uma boa evolução e a nossa comunidade tem estado muito envolvida, mas infelizmente neste ano e meio houve um grande retrocesso. As nossas autoridades de saúde não se aperceberam completamente da grande necessidade espiritual dos nossos doentes. Sei que há falta de equipamentos de proteção individual, mas isso devia ter evoluído rapidamente de outra maneira, que não evoluiu, com grandes consequências ao nível espiritual dos nossos doentes.

Uma área que nos preocupa é o conflito entre os chamados “novos direitos” e a liberdade religiosa, que já vemos em muitos países ocidentais. Acredito nuns certos brandos costumes que temos em Portugal, mas não posso deixar de estar atento a sinais de algum radicalismo e fundamentalismo de linhas de orientação radicais na nossa sociedade que tentam levar essas coisas ao extremo. Estou a falar da ideologia do género, que pretende agir como lei, sem estar aprovada e que na nossa sociedade pode levar a situações muito complicadas. Acredito que os nossos brandos costumes possam refrear algumas possíveis consequências da aplicação da lei.

Espero que assim como médico tenho o direito de poder usar o direito de objeção de consciência, possa também, como membro da Igreja de Cristo, ter o mesmo direito.

António Calaím, presidente da Aliança Evangélica

Tememos tentativas de proibir a circuncisão ou abate ritual, mas confiamos no bom senso

As grandes diferenças desde o início da existência da lei foram o reconhecimento civil dos casamentos na sinagoga e a questão fiscal, que foi alterada, temos agora os mesmos benefícios que existem na Igreja Católica. Também a questão das visitas a hospitais e prisões, que já eram possíveis antes, foi oficializada com a lei da liberdade religiosa.

Por outro lado, tememos que possam chegar a Portugal algumas tentativas de proibir a circuncisão religiosa ou o abate de animais segundo as normas religiosas, como já aconteceu noutros países na Europa, embora acreditemos no bom-senso dos nossos governantes e na nossa Constituição, que explicitamente protege as minorias religiosas e outras. Confiamos que isso não venha a acontecer aqui.

Gostávamos de ver a lei alterada nesse sentido, de dar uma garantia maior, embora isso esteja previsto na Constituição, na proteção às minorias.

José Carp, presidente da Comunidade Israelita de Lisboa

Preocupação com a educação religiosa e abate ritual de animais para alimentação

A Comunidade Islâmica faz um balanço naturalmente positivo, essencialmente porque nós, sendo uma minoria em Portugal, com entre 50 e 60 mil membros, tínhamos dificuldade em ter uma equiparação em relação aos direitos de outras comunidades, designadamente da maioria católica.

Contudo, há aqui dois pontos que são absolutamente cruciais. Um é em relação à educação religiosa nas escolas. Eu ouvi professores queixarem-se que os nossos manuais de história dizem que o Islão é a religião do Alá, e isso para mim é reflexo ainda de alguma ignorância em relação aos temas religiosos, especialmente no que toca ao Islão, e depois são criadores de preconceitos que visam rotular uma religião com fins menos positivos, e o outro é em relação à carne halal. Ainda há uma certa ignorância, e muitas vezes confunde-se rituais de abate, que resultam de uma convicção religiosa, com outro tipo de rituais bárbaros e de outra natureza que nada têm a ver com o caso.

Portanto, embora Portugal seja um país que pela sua dimensão, e pelo facto de as suas comunidades – seja judaica ou islâmica – não terem estatisticamente um número de membros que justifique uma menção específica na lei, acho que seria muito importante que não sigamos o exemplo de outras comunidades europeias em que o legislador decidiu num sentido claramente desfavorável às comunidades religiosas, ultrapassando mesmo os seus direitos.

Khalid Jamal, senior advisor do presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa

Graças à lei já podemos cumprir os nossos rituais funerários

Com a Lei da Liberdade Religiosa pudemos ter mais divulgação das nossas vivências e estilos de vida. Houve ainda vantagens com a nossa assistência espiritual nos hospitais e o direito à alimentação, nos hospitais e nas prisões. A nível das escolas, naquelas em que existem refeições, podemos exigir as refeições que nos são permitidas e, finalmente, os estudantes, ou os trabalhadores, poderem ter direito a ausência do trabalho nos dias das festas.

Recentemente tivemos uma grande vitória, que só foi possível graças à lei e à mediação da Comissão da Liberdade Religiosa. A nossa religião ordena que os nossos mortos sejam cremados e depois as cinzas sejam lançadas ao rio, para irem para o mar. Tivemos sérias dificuldades logo desde que chegámos a Portugal, nos anos 70, porque não tínhamos onde cremar. Foi preciso explicar o ritual e ao final de uns tempos e de negociações com câmaras e com o estado conseguimos que nos fosse cedido um espaço no Alto de São João onde fazíamos a cremação ao ar livre, porque o crematório precisava de obras. Depois fizeram-se as obras e ficou apto e começámos a usufruir disso. Agora já há vários cemitérios que têm estatuto de cremação e, portanto, é muito mais fácil.

Depois sobrou-nos o problema do que fazer depois da cremação, porque as cinzas têm de ir para o mar. Isto implicava, segundo as autoridades, poluir o rio e por isso tivemos de explicar porquê e agora, finalmente, há dois meses conseguimos ultrapassar isto e já podemos oficialmente deitar as cinzas ao rio.

Suryakala Chhaganlal, da Comunidade Hindu Portuguesa

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