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Entrevista Renascença/Ecclesia

O jornalismo “é muito mais importante hoje do que no passado”

24 jan, 2020 - 18:00 • Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

O diretor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa considera oportuno alerta do Papa para os perigos das “notícias falsas”. Para Nelson Ribeiro a responsabilidade não é apenas dos media, é preciso formar “cidadãos críticos e com capacidade de ler a realidade à sua volta”.

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Nelson Ribeiro é o diretor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, onde já se formaram em Comunicação Social e Cultural muitos dos jornalistas que hoje estão nas principais redações do país, ou – agora cada vez mais – em gabinetes de comunicação de empresas e instituições. Esta sexta-feira conversou com a Renascença e com a agência Ecclesia sobre os desafios e alertas renovados pelo Papa Francisco na mensagem para o próximo Dia Mundial das Comunicações Sociais (24 de maio).

Uma entrevista onde fala das mudanças que os “novos tempos” já obrigaram a fazer ao nível da formação dos futuros profissionais de comunicação. Considerando o atual contexto “desafiante” para todos os que trabalham na área, defende que o jornalismo é hoje mais relevante do que nunca, para ajudar a separar “o trigo do joio” no que respeita à fiabilidade das notícias, e distinguir quem as faz com rigor e com ética.

Esta mensagem do Papa desafia os media a contarem “histórias que edifiquem” e não “que destruam”, e renova o alerta para as “notícias falsas” e “devastadoras”, que só contribuem para “despojar o homem da sua dignidade”. São alertas e desafios importantes para os comunicadores em geral?

São alertas fundamentais que o Papa traz numa mensagem bastante profunda em que, por um lado, alerta para esta realidade que hoje em dia faz parte da cultura contemporânea, que é convivermos com informações verdadeiras, que simultaneamente são colocadas ao lado de informações falsas. Eu propositadamente prefiro sempre dizer “informações verdadeiras e falsas” e não “notícias falsas”, porque normalmente associamos sempre as “notícias” ao jornalismo, e ainda quero acreditar que o jornalismo é um reduto no qual ainda prevalecem critérios jornalísticos, e em que podemos ter um nível de confiança diferente de muita da informação que circula nos media sociais...

E há um trabalho de mediação dos profissionais sobre a informação propriamente dita.

Exatamente. Aliás, não é por acaso que hoje em dia muitos líderes populistas, um pouco por todo o mundo, aquilo que pretendem fazer é um bypass a esses mediadores, e serem eles próprios a falar diretamente com o seu público, para não serem escrutinados e porque isso lhes possibilita divulgarem informações falsas sem que ninguém os contradiga. Portanto, isso faz parte da realidade de hoje, e julgo que com esta mensagem o Papa Francisco mostra que a Igreja está preocupada com o mundo em que vivemos. Isso nota-se em várias passagens desta mensagem, nomeadamente quando o Papa fala, por exemplo, do “deepfake”, que não é algo que seja novo, mas que tem vindo a ganhar uma visibilidade maior nos últimos anos.

E podemos explicar no que consiste...

O “deepfake” é muito importante de ser explicado, até porque muitas vezes podemos estar a consumi-lo sem ter essa consciência. Acontece noutros formatos, mas hoje em dia é sobretudo no vídeo, há empresas e pessoas que são especializadas em manipulação de imagem, através da tecnologia. Por exemplo, vemos uma determinada pessoa a fazer um discurso, ou a falar sobre determinado assunto, mas aquela voz não é daquela pessoa. Um dos mais famosos que circulou recentemente era do antigo presidente americano Obama, em que é de facto ele que aparece nas imagens, e é a voz dele para um ouvinte desatento. Se virmos aquele vídeo no Facebook, ou no Instagram, achamos que é verdadeiro, mas efetivamente é manipulado artificialmente, tudo aquilo são palavras que ele nunca disse e que são recriadas, o que nos leva a esta situação: onde é que começa a realidade e acaba a ficção, e vice-versa? Hoje em dia é cada vez mais difícil, no nosso dia-a-dia, em que consumimos informação a correr...

"Vemos que o jornalismo provavelmente é muito mais importante hoje em dia do que era no passado"

E os próprios meios em que é partilhada, como as redes sociais, fazem este tipo de mensagens e notícias circularem a uma velocidade que não conseguimos controlar. E condicionando os próprios meios de comunicação na forma como depois tratam esse assunto, às vezes levados nessa mentira.

Essa é uma grande preocupação, aliás posso dizer que na Faculdade de Ciências Humanas é uma área em que investimos muito, para tentar formar os nossos alunos para esta nova realidade com a qual os jornalistas têm que efetivamente viver, que é: os jornalistas eles próprios são inundados por informação falsa, portanto, conseguirem ter critérios, ainda mais na rapidez que hoje em dia é exigida ao jornalismo, que muitas vezes é exagerada e é um problema. Muitas vezes o que é que vemos? Os próprios meios de comunicação ditos tradicionais - e quando digo tradicionais até podem ser digitais, é tradicionais no sentido em que são verdadeiros meios de comunicação, são profissionais que procuram efetivamente informar as pessoas...

E que cumprem as regras, confirmando e cruzando informações...

Cumprem as regras deontológicas. Mas, muitas vezes eles próprios acabam por colocar, ou poder colocar a sua credibilidade em causa, porque com a pressa de dar visibilidade a uma notícia que já está em todo lado, eles próprios dão também visibilidade e depois vem-se a verificar que essa informação, afinal, era falsa.

Este é um tempo muito desafiante, e para quem já estuda as questões da comunicação e do jornalismo há vários anos até há aqui uma certa ironia. É que há 10 anos nós discutíamos se o jornalismo tinha futuro! Uma das questões era: “bom, mas agora todos temos acesso a notícias, a informação, através das redes sociais, porque é que o jornalismo ainda é relevante?”. Bom, eu acho que – por um lado infelizmente – vemos que o jornalismo provavelmente é muito mais importante hoje em dia do que era no passado, não só pela capacidade de dar notícias, mas sobretudo pela capacidade nos ajudar a descobrir o que é que existe, de facto, de notícia no meio de tanta informação que circula, muita dela forjada, manipulada, e que obviamente serve sempre alguns interesses.

Uma questão tratada na mensagem do Papa, e que é pertinente para esta reflexão, é que há uma predisposição das pessoas para acreditarem naquilo que à partida já querem acreditar, independentemente do conteúdo que lhes é apresentado. Há trabalho a fazer nessa quase sensibilização para que se distinga o trigo do joio, e as pessoas não validem um produto que lhes é apresentado, apenas porque acreditam piamente que aquilo é verdade?

Acho que esse é um trabalho fundamental e que vai ao cerne daquilo que é a formação que uma sociedade dá às novas gerações. Porque essa questão também se cruza com outra, que é muito clássica na área dos estudos da comunicação, que é percebermos: afinal, quais é que são os efeitos dos meios de comunicação na opinião pública? Será que as pessoas alteram o seu comportamento por causa daquilo que ouvem e veem nos meios de comunicação?

Aquilo que sabemos é que existem muitas variáveis que induzem a isso, que esses efeitos podem ser maiores ou menores, mas também sabemos outra coisa: que é muito mais fácil as pessoas usarem a informação para reforçar aquilo que já pensam, do que para alterarem os seus comportamentos. E isso significa que aquilo que precisamos de fazer é, de facto, formar cidadãos críticos e com capacidade para ler a realidade à sua volta.

Há dois momentos da mensagem do Papa que eu acho particularmente interessantes neste aspeto: por um lado a questão da memória – que, aliás, é o título da mensagem, “Para que possas contar e fixar na memória”. Nós, como sociedade, também somos produto de uma memória, e de uma memória coletiva que vamos construindo – e o Papa, claro, fala do papel do que ele chama “a História das histórias” que é a Sagrada Escritura, mas também se refere a outras narrativas, da vida dos Santos, testemunhos de vida e da literatura. São eles que servem para manter viva na memória das novas gerações não só a História, mas o significado real da História, que nos interpela sobre o que é que é realmente o valor da vida humana e os valores em que nos acreditamos.

Por outro lado, também os meios de comunicação desempenham um papel central na criação da memória, porque se pensarmos em alguns eventos, muitos deles que não vivemos, nós temos uma memória desses eventos, criada pelos meios de comunicação. Hoje em dia já muito poucas pessoas se lembrarão de ter vivido o holocausto, mas todos temos uma memória do Holocausto, e essa memória foi criada – é memória mediada – através dos meios de comunicação, sejam eles meios de comunicação social, sejam livros, seja literatura. Esse papel da criação da memória é, de facto, aqui muito importante, pensarmos em como é fundamental criarmos uma sociedade que se reconhece em determinados valores, e que partilha determinados valores.

"Conseguir esta independência e saber ler onde é que vêm estes grandes fenómenos de manipulação e distorção é algo que é fundamental"

Nesta questão da memória… Nos últimos anos, nomeadamente aqui em Portugal, muitas redações têm sido decapitadas da sua memória, dos seus jornalistas mais velhos, que fazem essa ponte. Nesta mensagem, o Papa faz um alerta para a importância da História. No jornalismo que fazemos hoje, em geral, a História é descuidada?

É difícil generalizar, porque julgo que – como em todas as áreas, em todas as profissões – encontramos excelentes exemplos no jornalismo e também encontramos exemplos menos bons. A tendência, que não é só do jornalismo, desta voragem, da rapidez em que nós vivemos, é para o contexto perder espaço: as notícias são-nos transmitidas, mas não temos o contexto. E nós, sem o contexto, até poderíamos perguntar-nos “para que é que serve determinada notícia?”. Porque se não entendemos o contexto em que ela nasce, nós, na verdade, vamos criar perceções que estão completamente desligadas da realidade. Isso relaciona-se muito com esta necessidade de ser muito rápido, sem espaço para esse contexto, e também com isto: nós precisamos que os contadores de histórias sejam pessoas que tenham memória e que saibam contar histórias. Porque isto também acontece na nossa vida pessoal. Muitas das histórias que nos marcam para a vida, e das quais jamais nos vamos esquecer, são histórias que nos foram contadas pelos nossos avós, pelos nossos pais, quando éramos crianças.

E são as que ficam, que permanecem.

São as que ficam, por mais que depois digamos “são histórias infantis”, como se não tivessem uma grande importância… Mas, esse tipo de histórias e de experiências de vida que são narradas pelos avós, pelos pais, chega um momento da vida em que nos damos conta de como elas foram e são fundamentais para moldar quem somos. Porque nós, efetivamente, somos produto desta memória: de uma memória que nos é transmitida pelas nossas relações diárias, familiares, mas também muito pela memória que nos é transmitida pelos meios de comunicação. Ainda há pouco dei o exemplo do Holocausto, mas outro evento de que todos nos lembramos: o atentado do 11 de setembro, nos Estados Unidos. Assim que pensamos nesse acontecimento, todos imediatamente estamos a visualizar a mesma imagem, porque essa imagem foi gravada na nossa memória pela ação dos meios de comunicação.

Isso tem consequências: sempre que pensamos em terrorismo, em determinados conceitos, essas imagens estão presentes e não conseguimos que elas saiam da nossa cabeça. Portanto, este papel da memória é fundamental nesta área do jornalismo e da comunicação, em geral.

A mensagem do Papa diz que muitas vezes a forma como determinamos o que é certo e errado, bom e mau, tem a ver com as histórias que temos dentro de nós, mesmo inconscientemente… Seria importante que o espaço mediático soubesse valorizar mais as histórias boas, em vez de procurar o sensacionalismo e os cliques?

No espaço mediático faltam muitas histórias que edifiquem, e o Papa chama a atenção para isso. Não gostaria de colocar apenas o ónus sobre os meios de comunicação, porque acho que estes têm a sua responsabilidade, mas hoje em dia estão muito pressionados, por questões financeiras, pela rapidez, pelas medições ao minuto que permitem saber quantos cliques está a ter determinada notícia… Há um papel que os meios de comunicação deveriam fazer e que lhes compete, caso contrário também deixam de ser uma instituição social, que dá um contributo real para uma sociedade democrática e uma sociedade melhor. Mas, também há um papel que cabe aos cidadãos, e que é mais difícil, porque no dia a dia todos somos muito ocupados e temos, às vezes, pouco tempo para pensar sobre estas coisas. Mas é preciso valorizar estas histórias que edificam, como diz o Papa, e histórias que acrescentam algo à nossa vida e que contribuem para a sociedade. Aliás, há uma passagem da mensagem que destacaria, que é quando o Papa fala sobre o oposto, as histórias que nos “narcotizam”, “convencendo-nos de que, para ser felizes, precisamos continuamente de ter, possuir, consumir”. Este efeito narcotizante dos media – e aí vamos ao encontro do sensacionalismo que estava a ser referido – é algo que muitos meios de comunicação exploram, porque tem efeitos…

E algumas forças de poder também exploram…

Sim, claro. Costumo partilhar estas ideias com os meus alunos, de uma forma mais informal: enquanto todos estivermos muito entretidos a ver vídeos e fotografias, no Instagram e no Facebook, do que é que os nossos amigos almoçaram, se calhar não estamos a pensar noutras coisas mais importantes para a nossa felicidade, pessoal e da comunidade. Quando pensamos na realidade dos media sociais, sabemos que a esmagadora maioria dos temas que são discutidos e partilhados têm a ver com a devassa da vida privada de outras pessoas e com esta veia voyeurista: as pessoas querem representar-se de determinada maneira, para que os amigos pensem que têm determinado estilo de vida, mas sabemos que tudo aquilo é muito artificial.

O Papa chama-nos a ser mais do que isso e a ir à essência do que somos, procurando histórias que nos possam ajudar a ser melhores, enquanto cidadãos e enquanto comunidade cristã.

Um dos cursos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica é o curso em Comunicação Social e Cultural, que nos últimos anos tem fornecido vários profissionais ao mercado dos media em Portugal. Estas novas realidades e os alertas sucessivos do Papa – nesta mensagem e noutras anteriores – já obrigaram a mudar alguma coisa, em termos de formação?

A resposta rápida seria “sim”. Nós, de facto, na Católica, temos um curso em Comunicação Social e Cultural que procura conjugar coisas que são, de facto, difíceis. É um curso em construção – aliás, a nossa reitora habitualmente diz que a Universidade é projeto e risco, porque está sempre em construção, nunca chegamos ao estádio final. E isso também acontece com o curso de comunicação.

Procuramos, por um lado, dar a estes alunos um alicerce, diria, de memória, de cultura geral e de pensamento crítico. Estimular o pensamento crítico é fundamental em qualquer sociedade, sobretudo nas que temos hoje. Ao mesmo tempo procuramos introduzir no currículo questões que há 10 anos não eram importantes e que hoje em dia são essenciais.

Tem de haver essa atualização.

Sim. Há 10 anos já discutíamos o papel do jornalismo nas redes sociais, mas era uma lógica completamente diferente. A grande discussão era: “bom, mas qual é que vai ser o papel do jornalista no século XXI, quando toda a gente tem acesso a informação em todo o lado?”.

Como se o papel fosse apenas trazer informação e não traduzi-la?

Exatamente. E tentar apetrechar os alunos para estarem atentos a estas tentativas de manipulação, distorção, é de facto fundamental, porque como também já referiram aqui, obviamente toda a informação que circula no espaço público, as grandes forças económicas, políticas, sociais, claro, procuram condicionar a discussão que se faz na opinião pública e, portanto, os jornalistas em particular não têm aqui uma função facilitada até, porque, muitas vezes, estão dependentes dessas forças económicas, sociais e políticas para fazer o seu trabalho.

Conseguir esta independência e saber ler onde é que vêm estes grandes fenómenos de manipulação e distorção é algo que é fundamental quando pensamos na formação de novos profissionais de comunicação, quer seja para trabalhar no jornalismo, quer seja para trabalhar noutras áreas da comunicação.

Temos de criar novas profissões neste setor, quase mediadores e intérpretes, tradutores do que é a informação, e do que é real ou não?

Julgo que na verdade já estamos a criar. Muitas vezes podemos não nos aperceber disso. Costumo dizer isto também: hoje em dia a esmagadora maioria dos alunos de Comunicação Social e Cultural da Universidade Católica não vão ser jornalistas.

Muitos vão trabalhar na gestão de media sociais, outros vão trabalhar para gabinetes de comunicação e empresas, mas mesmo aí, esta questão da valorização da formação ética, é preciso perceber que quando sou um profissional de comunicação – não sou jornalista, não tenho carteira profissional, mas sou um profissional de comunicação – estou ao serviço de uma grande empresa, mas também ai, obviamente, há limites éticos que a minha consciência e minha profissão não me devem permitir ultrapassar.

Isso é muito importante numa altura em que vemos que o mercado de trabalho da comunicação se está a expandir largamente, mas para profissões que muitas vezes são fora dos meios de comunicação, seja em gabinetes de comunicação de empresas, de instituições públicas, de instituições muitas vezes a nível internacional, no terceiro setor. Hoje em dia os profissionais de comunicação estão em todo o lado, e tem de haver regras éticas que têm de começar a ser trabalhadas de uma forma mais profunda para toda essa panóplia de profissões.

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