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ENTREVISTA RENASCENÇA/ECCLESIA

“Ainda temos na Igreja muitas folhas secas que devem cair”

04 out, 2019 - 06:59 • Ângela Roque (Renascença), Paulo Rocha (Ecclesia)

O presidente dos Institutos Missionários Ad Gentes diz que a Igreja, como as árvores, precisa de um “abanão” para que caiam as folhas amarelas e surjam “novos rebentos”, valorizando mais os leigos e os jovens. E defende que é preciso refletir sobre “o muito” que ficou por fazer no Ano Missionário que está a chegar ao fim.

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Entrevista Renascença/Ecclesia a Adelino Ascenso
Clique na imagem acima para ouvir a entrevista

Antigo missionário no Japão, para onde espera regressar, o padre Adelino Ascenso é atualmente o superior-geral da Sociedade Missionária da Boa Nova em Portugal (*), e presidente dos Institutos Missionários Ad Gentes (IMAG). Em entrevista à Renascença e à Ecclesia, já em pleno Mês Missionário Extraordinário, decretado pelo Papa Francisco, e na contagem decrescente para o encerramento formal do Ano Missionário Especial (20 de outubro, em Fátima), considera importante que se faça uma “correta avaliação” desta iniciativa dos bispos portugueses, que “não se pode esgotar num ano, nem num único mês”.

Lembrando que partir em missão exige sempre “sair do conforto” para “descalçar as pantufas” e “calçar as sandálias”, Adelino Ascenso reconhece que não se está a valorizar devidamente o aumento do voluntariado missionário, nem o envolvimento dos jovens, mas que é mesmo preciso “dar lugar à rebeldia da juventude”, para que a Igreja não se torne “num autêntico museu”.

A chegada a Portugal de cada mais migrantes e refugiados também exige que a Igreja repense a missão cá dentro, indo até às “periferias culturais e religiosas”, como pede o Papa. E aplaude a decisão de Francisco visitar o Japão, em Novembro, com uma “mensagem de paz”.

Na abertura deste Mês Missionário Extraordinário, que já estamos a viver, o Papa afirmou que "a omissão é o contrário da missão". O que é que esta afirmação diz do Ano Missionário proposto pela Conferência Episcopal Portuguesa?

Concordo 100%. É um pouco o que eu denomino a ‘mística da avaliação’. Às vezes somos um pouco pobres na avaliação, e quando avaliamos, normalmente avaliamos aquilo que fizemos, mas esquecemo-nos de avaliar aquilo que não fizemos, e isso é - lá está - o ‘pecado por omissão’, aquilo que deixámos de fazer. E penso que isso é fundamental. Mais importante do que aquele pouco que se foi fazendo – e sublinho este pouco que se foi fazendo ao longo do Ano Missionário –, o mais importante, talvez, é aquele muito que deixamos de fazer.

E que ainda é possível fazer?

Ainda é possível fazer, porque o Ano Missionário e a nossa vida missionária não termina agora, somos batizados e enviados, e isso é para toda a nossa vida. Este ano 2018/2019 é apenas um sinal que deve transpor-nos para 2020, 2021, e por aí fora. Isto não se pode esgotar num ano, nem se pode esgotar num único mês. Portanto, sublinharia novamente a necessidade de fazermos uma correta avaliação, pormos o dedo na consciência e pensarmos, refletirmos sobre aquilo que cada um de nós deixou de fazer.

Na abertura deste Mês Missionário Extraordinário o Papa disse esperar que seja ocasião para anunciar o Evangelho "com ousadia e criatividade", e que haja uma “sacudidela que nos provoca a ser ativos no bem” e não "notários da fé”, mas “missionários". Até que ponto o Ano Missionário trouxe esta ousadia, esta criatividade e este espírito missionário?

Eu diria que no contexto da avaliação deveria ter trazido mais. Ainda esta manhã acordei, abri a janela e deparei-me com árvores que tinham muitas folhas, folhas secas, principalmente folhas amarelas, e comecei a refletir precisamente naquilo que o Papa Francisco disse, que é necessário abanar as comunidades católicas...

Dar uma “sacudidela”…

Uma sacudidela, o que é mais forte ainda, sacudir as comunidades católicas. Eu olhei para aquelas árvores com folhas e pensei que podem ser encaradas como uma metáfora da Igreja. Há muitos animais, muitos seres vivos, muitos pássaros, que se recolhem nessa árvore, mas há muitas folhas amarelas e muitas folhas secas. Se a Igreja for abanada, se levar um abanão, então essas folhas secas cairão, e nós ainda temos na Igreja muitas folhas secas que devem cair. Sempre foi assim, mas esse 'sempre foi assim' já não funciona. É necessário darmos possibilidade a novos rebentos, e para isso é necessário que muitas folhas secas caiam.

Então permanecemos “notários da fé”, e não missionários?

Pois... é uma boa observação.

É do Papa Francisco…

Exatamente. Talvez ainda não sejamos verdadeiramente missionários, porque a nossa identidade de missão, essa consciência da nossa identidade, talvez ainda não esteja cinzelada no nosso coração. E enquanto não estiver cinzelada no nosso coração talvez não sejamos totalmente missionários.

O documento de lançamento deste Ano Missionário, da Conferência Episcopal Portuguesa, definiu vários objetivos. Um deles consistia em que todas as dioceses criassem centros missionários, que houvesse grupos missionários nas paróquias, laboratórios missionários e células paroquiais de evangelização. De tudo isto, o que é que foi feito, o que é que falhou mais?

Nalgumas dioceses já havia essas células missionárias, noutras foram criadas, e noutras não. Não me compete a mim criticar as razões pelas quais não terão sido criadas. Penso que a autocrítica é fundamental, e deve partir de mim próprio, 'o que é que eu deixei de fazer?', e depois cada um deve pôr o dedo na consciência, fazer uma autocrítica sobre o que é que deixou de fazer.

Realmente, para que haja essas células, tem de haver uma verdadeira reconfiguração da missão, e essa reconfiguração, esse ímpeto missionário, só pode sair do nosso interior se, primeiro, a missão em si, a identidade de missão, estiver cinzelada no nosso coração. Portanto, são de louvar as células missionárias que foram criadas. Não vou nomear ninguém para não estar aqui com favoritismos, mas há casos, lugares onde essas células foram criadas com bastante substância, e outros onde terão ainda de ser criadas.

D. António Couto, bispo de Lamego, e também missionário da Boa Nova, avaliando este Ano Missionário e os objetivos a que se propôs, disse que chumbaríamos todos…

Sim, talvez chumbássemos todos, até porque a missão, o sermos verdadeiramente missionários é algo muito exigente. O sermos cristãos é algo muito exigente.

E não é possível ser cristão sem ser missionário?

Não é possível.

Há uma mudança de paradigma que é necessário fazer?

Precisamente, porque aí está a nossa identidade de cristãos, a nossa identidade de missionários.

Dar testemunho também é muito importante. O documento da CEP para este Ano Missionário desafiou todos na Igreja - bispos, padres, diáconos, consagrados, leigos em geral - a fazerem a experiência da missão. Isso aconteceu em número suficiente?

Nunca é suficiente. Mas, também aqui é de louvar o grande entusiasmo de muitos leigos que partiram, que partem e que partirão em missão. Por vezes são experiências muito breves, mas uma experiência de missão, mesmo que seja breve, deixa sempre um sinal inapagável. E isso é muito bom, é algo que tem acontecido e que continuará a acontecer, espero eu, cada vez mais.

Quando falamos de missão, mesmo quem não é católico, pensa em saída, em partir para fora. Os dados oficiais apontam para um crescimento das missões, nomeadamente no exterior.

Sim. É muito importante, porque exige que descalcemos as pantufas e calcemos as sandálias, e é muito bom sairmos do nosso conforto. Mas, a missão é muito mais do que isso, a missão é a Igreja em saída, como não se cansa de apelar o Papa Francisco, que estejamos em atitude de saída, que fundamentalmente é sair de nós próprios, do nosso egoísmo, do nosso conforto, do nosso mundo pequenino. Porque o mundo é muito mais vasto, muito maior e mais fascinante do que por vezes imaginamos.

Até que ponto o diálogo inter-religioso é espaço para a Igreja sair, e espaço de encontro?

O diálogo inter-religioso começa precisamente pelo diálogo, pelo encontro entre pessoas de diversas religiões, e para que haja esse encontro é necessário que a pessoa saia de si própria.

Um destes dias estava a ler uma entrevista dada por um bispo indiano que dizia, relativamente aos problemas que tem havido entre hindus e cristãos na Índia: “a chave para uma relação amistosa entre nós é a escuta”. Quando entramos no campo do diálogo inter-religioso temos que ir predispostos à escuta, uma escuta com os ouvidos do coração. Isto nem sempre é fácil, porque por vezes, com a nossa sede de ensinarmos aquilo que sabemos, acabamos por calar o outro, por não escutar. Partir da escuta para o diálogo inter-religioso é fundamental.

A presença de cada vez mais estrangeiros em Portugal, turistas por um lado, mas também imigrantes e até refugiados, que temos acolhido, exige que a Igreja também repense a sua missão cá dentro?

Sim, terá de repensar. Entrando no mundo dessas pessoas, de quem vem de outras culturas, de outras religiões, estamos precisamente a ir às periferias culturais e religiosas, de que fala o Papa Francisco. E a Igreja tem de ir a essas periferias, não pode ficar fechada no seu casulo.

Quando eu era pequeno vivia numa aldeia. De manhã, quando me levantava, ia caminhar pelo campo e via os caracóis que arrastavam a sua casa por um muro ou um ramo. Ao brincar com eles tocava nas suas ‘antenas’, muito ao de leve. E o que é que acontecia? O caracol encolhia-se na sua casca, na sua ‘casa’. Nós somos assim muitas vezes: quando somos tocados nas nossas ‘antenas’ culturais e religiosas por algo que é completamente diferente, em vez de escutarmos, de irmos ao encontro dessa pessoa com o coração aberto, com as janelas e as portas abertas para que entre um vento e caiam as folhas secas, recolhemo-nos nas nossas denominadas seguranças, e isso impede qualquer tipo de diálogo.

Nas suas intenções de oração para outubro, o Papa pede que se reze pelas periferias culturais e religiosas. Pode ser um programa para este Mês Missionário Extraordinário?

Pode ser um programa não só para este mês de outubro, mas para toda a nossa vida.

É uma atitude?

É uma atitude! Se a Igreja não partir para essas periferias culturais e religiosas, acaba por se tornar num autêntico museu. O Papa Francisco usa esse termo, e diz em relação à juventude: “uma Igreja na defensiva, que perde a humildade, que deixa de escutar, que não permite ser questionada, perde a juventude e transforma-se num museu”. E nós não podemos permitir que isso aconteça! Por isso, trata-se de uma atitude para qualquer cristão.

Em Portugal, como já referimos, o voluntariado missionário tem crescido: há mais jovens e adultos a fazer missão, que até pedem licenças sem vencimento no local de trabalho, e há mais famílias a fazer missão, levando os filhos. Estes dados estão a ser valorizados pela Igreja Católica em Portugal?

É uma pergunta difícil… talvez não estejam a ser suficientemente valorizados...

Mas, são um sinal muito positivo...

Muito positivo, mas talvez ainda não suficientemente conhecido. Talvez seja necessário que esses dados, esses testemunhos sejam mais conhecidos ‘ad intra’ e ‘ad extra’, portanto, também dentro da própria Igreja. Mas são dados muito positivos, são um sinal de uma Igreja um pouco diferente, um pouco rejuvenescida.

E são sinal também de que ser missionário hoje é diferente?

Diria que a essência é a mesma. Mas, na prática tem de ser diferente, porque é necessário sempre um exercício de inculturação, particularmente quando nos encontramos com o outro, que é diferente de nós, e que naturalmente nos perturba nos nossos parâmetros culturais e religiosos.

Essas diferenças e mudanças culturais estão na origem de um processo de reconfiguração das congregações missionárias, incluindo das vocações leigas, tendo em conta que o número de vocações está a diminuir. Na Sociedade Missionária da Boa Nova, e noutras congregações, que reconfiguração está em curso?

Terá de haver uma reconfiguração quase radical. Nós não podemos ‘chorar as cebolas do Egipto’! As vocações são o que são: em Portugal praticamente não temos vocações, e falo agora pela Sociedade Missionária da Boa Nova. Mas, a Igreja não se esgota na Sociedade Missionária da Boa Nova...

Para o bem e para o mal, diríamos...

Para o bem e para o mal!

Mas, requer-se uma nova configuração. Também os institutos têm de ser abanados! Também muitas folhas secas têm de cair e temos de avançar noutras direções: temos de valorizar muito mais as vocações leigas, as vocações temporárias, e outros tipos de vocação diferentes daquele tradicional, do sacerdote missionário ou da consagrada.

O padre Adelino Ascenso já falou por duas vezes na necessidade de abanar as ‘folhas secas’ que existem no interior da Igreja. Que folhas secas são essas? Estamos no outono...

Uma é a que o Papa Francisco refere na expressão “sempre foi assim”. É muito difícil tomar novas atitudes, é muito difícil darmos lugar aos novos rebentos que querem ocupar o lugar dessas folhas secas.

Estamos a valorizar muito a juventude, e bem! Mas, por vezes temos medo de dar lugar à juventude, à sua rebeldia. Penso que aí devemos ser muito bem abanados, sacudidos, para que possamos dar lugar à rebeldia da juventude. A juventude tem de ser rebelde, a juventude é exigente! E quando nós não exigimos e transformamos um evento em algo soft para atrair a juventude, a juventude vem, sim, mas o que é que fica? Não fica nada.

A juventude exige que nós lhe dêmos côdea, não miolo, porque eles têm bons dentes! Necessitam de côdea! E nós precisamos de ser fortemente abanados para que tenhamos a coragem de dar côdea aos jovens, respeitar a sua rebeldia, mas avançarmos para onde o Espírito já está à nossa espera.

Também quando se pensa a missão?

Também na missão. Por vezes corremos o grande risco de deixar o Espírito, porque o Espírito já lá está à nossa espera. E os nossos medos impedem-nos de ir ao encontro do Espírito, que está à espera...

O padre Adelino foi missionário no Japão e temos de falar, a fechar a nossa conversa, da visita que o Papa vai fazer a esse país, em novembro deste ano. Considera importante esta visita do Papa?

Considero muito importante! Não será só um estímulo para os católicos japoneses, que são 0,34% da população de 128 milhões (mais ou menos 440 mil), mas também para os cerca de 400 mil católicos de outras nacionalidades, para os bispos das 16 dioceses, para os outros cristãos (que são 1% da população, na totalidade) e para o país em si. Porque o Papa vai com uma mensagem de paz, e sabemos que felizmente este Papa também é muito apreciado e muito respeitado por gente que não está ligada à Igreja, e isso é um fator muito importante. Portanto, estou muito feliz pelo Papa ir finalmente ao Japão, porque já se falava nisso há vários anos. Penso estar lá, numa viagem muito curta, mas quero ver se vou a Nagasaki.

Há missionários portugueses da Sociedade Missionária Boa Nova no Japão?

Neste momento temos três missionários: dois portugueses e um moçambicano. O moçambicano foi para o Japão há dois anos e meio, teve dois anos de estudo de japonês e no segundo ano de estudo já tinha um trabalho pastoral.



(*) Os Missionários da Boa Nova constituem uma Sociedade Missionária de padres e Irmãos, fundada em Portugal em 1930 pelo Papa Pio XI. Trabalham em Moçambique desde 1937, em Angola e no Brasil desde 1970 e no Japão desde 1998.

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