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Violência doméstica

Vítimas silenciosas, testemunhas silenciadas. "As crianças são completamente esquecidas pelo Estado"

16 abr, 2019 - 08:00 • Joana Gonçalves

Nos últimos dez anos, cerca de mil crianças ficaram órfãs em Portugal em resultado de violência doméstica. Quase metade das vítimas acolhidas em casas de abrigo são menores e os últimos dados apontam para 590 crianças e jovens à guarda do Estado. Esta terça-feira, o Parlamento debate o estatuto de "vítima especialmente vulnerável" para crianças que testemunhem este crime que também é público.

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"Atrás de uma mãe em sofrimento está uma criança em sofrimento"
"Atrás de uma mãe em sofrimento está uma criança em sofrimento"

Aos 42 anos, Sónia é uma mulher “divertida, bem disposta, compreensiva e disponível”. É assim que se define e prefere começar a sua história pelo fim. O processo de recuperação foi longo e só dois anos depois de ter dado entrada numa casa de abrigo aceitou ajuda psicológica pela primeira vez.

Hoje deixa um conselho a todas as vítimas de violência doméstica que, como ela, passaram por um tormento que prefere não recordar em pormenor. "Não esperem esse tempo todo para aceitar a ajuda de alguém especializado para desconstruir toda essa fase. Não queiram fazer tudo sozinhas. É importante que isso aconteça o mais cedo possível. Não esperem dois anos como eu.”

Em 2002 surgiram os primeiros sinais de violência na relação de intimidade de Sónia com o ex-companheiro. “As agressões físicas, as agressões verbais, o insulto, a diminuição da autoestima e o retirar poder pessoal, tudo isso fez parte do meu processo, que durou cerca de 7 anos”, conta à Renascença.

Em 2009 Sónia “ganhou coragem” e pediu ajuda à APAV, Associação de Apoio à Vítima. Dois dias depois do primeiro contacto telefónico, a 15 de janeiro desse ano, foi informada de que existiam duas vagas numa casa de abrigo.

Uma década correu entretanto, mas o tempo não apagou a memória do momento em que teve de tomar a decisão. "Pensei 'Caramba, então eu tenho de largar tudo? Tenho de deixar as minhas coisas todas? Sou eu que estou a ser agredida, sou que estou neste processo e sou eu que tenho de abandonar tudo? Isto assusta-me."

Mais do que ser afetada pelo que lhe estava a acontecer, Sónia "tinha medo era de mudar". "Não sabia que situação ia ter a seguir. Trabalho, casa... como é que eu ia gerir as coisas para a educação da minha filha? Estava tudo muito vago, ou melhor estava tudo muito vazio. Não fazia a mínima ideia do que ia fazer a seguir."

Eram mais as dúvidas do que as certezas e, nesta equação por resolver, Sónia agarrou-se ao elemento decisivo: a filha, "na altura com três anos", recorda. Margarida era e é a prioridade para esta mãe; com ela permaneceu durante dois anos numa casa de abrigo.

O caso de Sónia e da filha Margarida não é uma exceção. É, antes, o exemplo que confirma a regra.

Em 2017, quase 50% das vítimas de violência doméstica acolhidas em casas de abrigo eram menores, um valor que se tem mantido estável ao longo dos anos, chegando até a ultrapassar a metade nalguns momentos.

No mesmo ano, de acordo com os dados disponibilizados no último relatório CASA, 590 crianças e jovens estavam à guarda do Estado na sequência de processos de violência doméstica.

“As crianças não estão a ser protegidas nestes processos”

Em 2009, Sónia Grilo avançou com uma queixa-crime contra o ex-companheiro por violência doméstica. Mas o inquérito acabaria por ser arquivado dois anos depois, por falta de provas – um cenário que se repetiu em mais de 75% dos inquéritos por violência doméstica findos em 2018.

“Quando aceitei ser acompanhada e receber ajuda comecei a ter mais confiança, mais autoestima, mais compreensão para comigo e mais compreensão para as coisas que estavam a acontecer à minha volta. Quando o tribunal me disse que o processo ia ser arquivado por falta de provas fiquei mesmo chateada”, recorda.

“O meu pensamento na altura foi, 'Então eu passei por aquilo tudo, sei o que senti na pele, sei o que o meu coração sentiu, e eles não acreditam.' Senti-me desvalorizada. Todo aquele trabalho de autoestima que eu andava a fazer foi por água abaixo.”

"Quando o tribunal me disse que o processo ia ser arquivado por falta de provas fiquei mesmo chateada"

Nos primeiros três meses a seguir à apresentação da queixa, Sónia e Margarida estiveram afastadas do agressor. Enquanto aguardavam a decisão do Tribunal Criminal, levantou-se uma segunda questão, a da guarda da criança.

O Tribunal de Família e Menores atribuiu a guarda partilhada e Margarida passou a ser entregue ao pai para visitas ao fim de semana na sede da APAV, em Lisboa. A criança era acompanhada por técnicos de apoio à vítima, de forma a garantir a segurança da mãe.

"Esta é mesmo a prática nacional. É uma loucura", adianta Margarida Medina Martins, uma das fundadoras da Associação de Mulheres Contra a Violência, em declarações à Renascença.

De acordo com a dirigente, é comum nestes processos que o Tribunal de Família e Menores atribua guarda partilhada das crianças ao agressor, a quem foi decretada inibição de responsabilidades parentais pelo Tribunal Criminal, em resposta à queixa por violência doméstica.

"Não há comunicação entre o Tribunal Criminal e o Tribunal de Família e Menores nestas situações. Há uma desarticulação completa", defende Daniel Cotrim.

O psicólogo acrescenta ainda que, por várias vezes, as vítimas foram agredidas e, nalguns casos, até mortas no momento da entrega das crianças ao agressor. "As crianças não estão a ser protegidas nestes processos", garante.

"A prática é a de uma loucura generalizada, com os Tribunais de Família a adotar uma estratégia absolutamente cega, surda e muda", acrescenta Margarida Medina Martins. Isto, sublinha, "viola gravemente [os direitos das vítimas] e põe crianças e mulheres em risco. Deveriam ser responsabilizados por isso."

Cerca de mil crianças órfãs em Portugal em resultado de violência doméstica

Não há muito tempo nasceu a associação de familiares e amigos de vítimas de femicídio (ACF). Fundada em dezembro de 2018 por Cláudia Rosário, uma jovem que assistiu à morte da mãe às mãos do pai quando tinha apenas 12 anos, a ONG procura combater as elevadas taxas de homicídio de mulheres e apoiar todas as vítimas de violência de género.

Amélia Pereira dos Santos, vice-presidente da associação, perdeu dois filhos em contexto de violência doméstica. Hoje tem a seu cargo a educação e proteção dos netos.

A mãe de um deles, Carla Santos, apresentou queixa contra o pai da criança em 2010. O inquérito foi arquivado um ano mais tarde por falta de provas. A filha de Amélia Pereira dos Santos viria a ser assassinada pelo ex-companheiro em março de 2014, deixando órfã uma criança de 5 anos.

De acordo com a ACF, nos últimos dez anos cerca de mil crianças ficaram órfãs em Portugal em resultado de violência doméstica. "As crianças são completamente esquecidas pelo Estado", garante Amélia à Renascença.

Também Carla enfrentou a decisão da guarda partilhada do filho, depois de o Tribunal Criminal ter decretado inibição das responsabilidades parentais ao agressor.

"O sentimento desta mãe é sempre de grande terror", explica o psicólogo da APAV. "Pensam muitas vezes 'Então e se ele não entrega? E se ele não me devolve o filho?'"

Segundo Margarida Medina Martins, estas crianças são, muitas vezes, vítimas de chantagem e de coação. Os agressores tentam perceber onde está a vítima e é comum acontecerem casos em que nem as crianças nem as mães querem manter as visitas. O problema, aponta a vice-presidente da ACF, é que “se não o fizerem, a mãe corre o risco de perder a guarda dos filhos”.

“Temos de explicar que a visita tem de ser feita, caso contrário vai haver uma revisão das responsabilidades parentais e a mãe pode perder o direito a estar com os seus filhos", esclarece Daniel Cotrim. Isto "independentemente de o Tribunal Criminal ter decidido que há uma inibição de contactos com um dos progenitores.”

"Os tribunais são os segundos grandes agressores para as mulheres"

Para Margarida Martins, “os tribunais são os segundos grandes agressores para as mulheres, porque não validam o risco em que as mulheres se encontram, colocando-as em risco”.

“É por isso que eu chamo intervenção promotora de crime, porque ao não reconhecer e validar o risco, estão a colocar as mulheres e quem estiver à volta, até familiares, em risco de serem mortos. Arrastam aquele agregado familiar para situações absolutamente inaceitáveis de risco”, acrescenta.

“Vítimas diretas negligenciadas pela Justiça portuguesa”

As crianças e jovens, filhos do casal que mantém um relacionamento abusivo, são, em muitos casos, as únicas testemunhas do crime. Apesar de não receberem o estatuto de vítima, à semelhança do que acontece com as mãe ou os pais que apresentam queixa, a lei portuguesa prevê algumas medidas de proteção às crianças que testemunhem nestes processos.

A possibilidade de testemunhar numa sala sem a presença do agressor e acompanhada de um técnico de apoio à vítima, ou até a prestação de depoimentos via Skype, são algumas das alternativas que procuram proteger os direitos e o superior interesse das crianças.

Porém, de acordo com os três dirigentes ouvidos pela Renascença, o protocolo nem sempre é aplicado e as crianças raramente são ouvidas. Em duas décadas de experiência em trabalho com vítimas de violência doméstica, Daniel Cotrim recorda apenas duas situações em que um menor depôs em tribunal.

“Não me lembro de mais. E estas duas situações estão associadas a tentativas de homicídio, que foram vistas, neste caso, por dois adolescentes. Eles estavam lá e era importante o testemunho deles, porque não havia mais ninguém.”

Crianças a depor, sim ou não?

A possibilidade de aceitar o testemunho de um menor em tribunal não é consensual.

Para o psicólogo da APAV as crianças que vivem em situações de violência doméstica, tal como as mães, são “peritas em violência doméstica”. É por isso que acredita que quanto mais cedo forem retiradas deste contexto abusivo e puderem reconstruir factualmente as experiências vividas, “mais fácil será evitar novos traumas”.

“É óbvio que a situação traumática já está instalada", adianta. "Estas crianças devem ser ouvidas.”

Ainda assim, o psicólogo ressalva que é necessário ter em conta as condições em que é feita a audição, "porque para uma criança aquela pessoa nunca é o agressor, aquela pessoa é o pai ou é a mãe”.

“As declarações devem ser feitas num espaço bem pensado, adequado, na presença de profissionais especializados e preparados para fazer esse trabalho, com um guião bem construído, não fugindo ao que tem de ser perguntado do ponto de vista judicial, mas de forma a garantir a segurança das próprias crianças”, explica.

Margarida Medina Martins tem outra visão sobre o tema, lembrando nesse contexto o papel decisivo que as escolas devem desempenhar.

“Ouvir uma criança como testemunha apenas porque de facto é a única testemunha que existe pode ter um preço muito alto”, afirma. “Pôr numa criança a responsabilidade de condenar um pai, de o pôr numa prisão, pode ser absolutamente devastador para aquela criança. Muitas delas optam pelo silêncio.”

A solução, defende, passa por incentivar as escolas a desempenharem um papel ativo nestes processos, porque são muitas vezes as primeiras a receber indicadores de que algo não está bem com os menores.

"Os direitos humanos das crianças estão absolutamente dependentes de pessoas sensíveis em dias de sorte"

A cofundadora da Associação de Mulheres Contra a Violência denuncia ainda aquilo que diz ser “um problema grave em Portugal".

“Ouvir uma criança implica profissionais especializados na audição das crianças e com gravação", garante. "Algumas crianças podem até ter essa sorte, mas essa não é a regra. Os direitos das crianças estão absolutamente dependentes de pessoas sensíveis e com dia de sorte.”

Para a vice-presidente da ACF, estas crianças "são vítimas diretas e a Justiça está a negligenciá-las”. É preciso que elas tenham "um estatuto" específico, apela, até "porque são inclusivamente usadas muitas vezes como testemunhas na presença do agressor ou do homicida".

"Isto não pode acontecer, as crianças têm de ser protegidas."

Esta terça-feira, 16 de abril, o tema da violência doméstica volta ao Parlamento. Quinze projetos-lei vão a debate, entre eles um apresentado pelo Bloco de Esquerda que pretende alterar o regime jurídico deste crime, para inlcuir na categoria de "vítima especialmente vulnerável" as "crianças que vivam nesse contexto de violência doméstica ou o testemunhem".

Para Catarina Martins, dirigente bloquista, a mudança na lei permitirá que, "quando o tribunal de família tiver de tomar decisões sobre a guarda de crianças, compreenda que aquelas crianças são vítimas e que, se há um agressor, elas devem ser afastadas desse agressor".

O mesmo projeto de lei propõe ainda a obrigação de recolha imediata de testemunho das vítimas para "memória futura", visando "proteger as crianças na forma como são ouvidas" e evitando que sejam sujeitas a reviver as situações de violência em sucessivas audiências judiciais.

Margarida Martins reconhece na proposta apresentada pelo BE um passo na direção certa. “Esse progresso de serem consideradas vítimas diretas e com estatuto de vítima vai, pensamos nós, permitir uma valorização da criança enquanto alvo deste agressor", defende. "Acho que é positivo.”

Já Daniel Cotrim considera que as alterações têm de ir mais longe. “O estatuto de vítima, por si só, não é uma grande defesa, mas é um grande instrumento para poder auxiliar as crianças e os jovens a atuar e a agir, mecanismos para a sua própria proteção e, muitas vezes, até para o afastamento dos agressores”, explica.

"O Estado tem de ser responsabilizado por esta tragédia, para que outras não aconteçam"

Amélia Pereira dos Santos perdeu uma filha em contexto de violência doméstica. O mesmo homicida é suspeito de ter morto o seu filho, irmão da vítima.

O inquérito de Carla Santos foi arquivado um ano depois da queixa e três anos antes da tragédia. O luto para esta família é um processo infindável e nada trará as vítimas de volta. Três crianças ficaram órfãs na sequência deste caso.

Amélia é agora uma ativista contra o femicído e, enquanto mãe de duas vítimas e avó de três outras, que não são reconhecidas como tal, deixa um apelo: "O Estado tem de ser responsabilizado por esta tragédia, para que outras não aconteçam. Não é preciso ser jurista para perceber a realidade portuguesa."

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