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Bonecos de Estremoz não são “‘handicraftzinho’ turístico” e há um livro que o prova

07 set, 2018 - 16:14 • Rosário Silva

Património Cultural Imaterial pela UNESCO desde 2017, os Bonecos de Estremoz (uma arte popular com mais de 300 anos) são agora protagonistas de um livro da autoria do investigador Hugo Guerreiro, que a Renascença entrevistou.

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O livro chama-se “Figurado de Estremoz, Produção Património Imaterial da Humanidade” e é o resultado de incontáveis horas de trabalho de Hugo Guerreiro, diretor do Museu Municipal Professor Joaquim Vermelho e responsável técnico pela candidatura à UNESCO.

Património da cidade e da região, o figurado em barro foi classificado em 2017 como Património Cultural Imaterial por aquela organização das Nações Unidas. O livro pretende dar uma nova perspetiva sobre esta arte popular com mais de 300 anos.

Antes de mais, perguntar-lhe como surge esta obra

Olhe, este livro faz parte do Plano de Salvaguarda e Valorização do Figurado de Estremoz já apresentado à UNESCO e este é, digamos, o primeiro passo desse plano. O objetivo é possuir um instrumento – neste caso, o livro – que se constitua numa investigação sólida e consolidada sobre o figurado de Estremoz.

Houve aqui um trabalho muito grande para se abandonar a ideia de que o artesanato de Estremoz era um ‘handicraftzinho’ turístico e para que passasse a ser um objeto de estudo e, sobretudo, um objeto identitário, que é o que sempre foi.

Partindo desse pressuposto, surge o livro…

Sim, este livro é a súmula de todo o trabalho de investigação que foi feito durante um largo período, pegando em todos os autores que trabalharam esta área e tendo na base a investigação que fui fazendo no âmbito do museu municipal de Estremoz. Julgo que está um trabalho muito bem conseguido e que vai esclarecer muita gente sobre o figurado de Estremoz.

Suponho que tenha sido um trabalho de muitas horas…

Não consigo contabilizar. Aqui, no meio dos meus projetos, enquanto diretor do museu de Estremoz, cada vez que tinha tempo livre agarrava-me a esta investigação. São horas incontáveis, mas estou certo que valeu a pena pois conseguimos algo de muito interesse para os que conhecem, e os que não conhecem vão poder avaliar o passado do figurado. Creio que é um trabalho que responde a muitas questões, levantando outras, naturalmente.

No fundo, revisitou o passado até aos dias de hoje. Fica mais fácil perceber porque o figurado chegou a Património da Humanidade?

Sim. A arte popular, tal como tudo o que é do povo, é de muito difícil estudo pois o povo não deixa praticamente rasto na história. Nós conhecemos a história dos reis, a história da Igreja, apenas para dar alguns exemplos, porque está escrita. Ora, a história do figurado é quase inexistente, tem muito poucos vestígios nas bibliotecas. É uma arte que o povo agarrou na sua devoção, na sua espiritualidade, querendo ter os santinhos da sua devoção nas suas casas.

Depois, tínhamos os presépios que estavam nos grandes conventos, nas grandes casas, e as pessoas quiseram também ter o seu próprio presépio. Então, temos o povo a pegar na obra dos eruditos e transportá-la para as suas casas, por intermédio das suas próprias mãos. E isto não deixa rasto, ainda mais quando falamos de uma arte feita por mulheres, que eram totalmente desvalorizadas. São, de facto, escassas as fontes, embora vá aparecendo algo de surpreendente e é isso que está subjacente a este livro.

Já nos vai dizer o que podemos encontrar no livro, antes, porém, explique-nos o que distingue verdadeiramente os Bonecos de Estremoz

Então, estamos a falar de uma arte ancestral, realizada pelas mulheres de Estremoz e que teve início por volta do século XVII. Estava associada à espiritualidade do povo e caracteriza-se pela sua técnica e estética, únicas. Portanto, temos a técnica do rolo, placa e bola, dando origem a figuras que posteriormente são “vestidas” com a mestria dos artistas.

É uma arte facilmente identificável. São peças com membros muito alongados, peças muito coloridas, muito bonitas e tudo isso torna única esta arte. Foi, também, por isso que a UNESCO aceitou a nossa candidatura. Com muito orgulho, o Boneco de Estremoz é a primeira produção de figurado do mundo classificada como Património Cultural Imaterial da Humanidade.

E esse é um dos aspetos focados no seu livro, seguramente. Quem o folhear, o que vai poder encontrar?

Vai poder encontrar a história da arte e os produtores do boneco de Estremoz. Há, também, um capítulo referente à estética e técnica e outro sobre a questão da identidade. Uma parte do livro é preenchida com as 90 peças que fazem parte do figurado de Estremoz, com as respetivas fotografias, a sua descrição e as origens históricas de cada um dessas peças tradicionais.

Depois temos capítulos referentes aos artesãos do passado e do presente, aqueles que conhecemos, com apontamentos biográficos, e colocamos também as marcas desses autores. Posso dizer-lhe que fizemos o levantamento de 50 marcas (há mais), permitindo às pessoas efetuarem o reconhecimento do seu boneco. Depois, temos um pequeno capítulo sobre o histórico da candidatura e sobre o plano de salvaguarda que está a ser colocado em marcha e que tem o seu primeiro momento, como lhe disse, neste livro.

E há, certamente, lugar à surpresa. Durante esta sua investigação descobriu algo que o tenha surpreendido?

Já tinha o livro feito e estava na editora, quando um amigo, o Dr. Carmelo Aires, me contactou para dizer que tinha encontrado uma fonte de 1837 que falava dos bonecos. Fomos ao arquivo e, surpreendentemente, algo que ninguém estava à espera, em 1837, eram dadas como existentes 26 oficinas que faziam figurado de Estremoz, contra 24 de olaria. Ou seja, todos nós, investigadores, sempre pensámos que existiam mais oleiros do que figureiros, em Estremoz.

Afinal, era um número superior e já numa fase de decadência, o que levanta a hipótese de terem sido muitos mais. Esta foi a maior surpresa e uma descoberta fantástica. O Boneco de Estremoz, antes de ser declarado Património da Humanidade já o era, pois já estava espalhado pelo mundo.

E, por falar em mundo, creio que foi no século XVIII que se registou uma grande expansão do figurado de Estremoz, por causa dos presépios. Afinal, para onde iam estes bonecos?

E, acrescento, seriam milhares os bonecos produzidos por ano. Para onde iam? Temos descoberto o nosso figurado em igrejas e sabemos que existiam em casas particulares.

No Brasil aparecem bonecos de Estremoz. Em África, foi-me dito, em São Tomé e Príncipe, os negros, nas roças, adoravam imagens de santos, os nossos bonecos, porque eram as figuras mais baratas. Há toda uma série de questões que se levantam e um mundo de hipóteses para avaliar. Por exemplo, se a independência do Brasil terá contribuído para a decadência do Boneco de Estremoz, já que parte da produção se destinava a esse país.

Recordo-lhe que até apareceram aquelas “paulistinhas”, no Vale do Paraíba, em São Paulo e que todos os investigadores colocam a possibilidade de terem sido inspiradas no nosso figurado. Parece-me que se abre, aqui, um campo de possibilidades que vai fazer as delícias dos investigadores, de um e do outro lado do Atlântico.

Certamente que o seu livro vai ser um belíssimo instrumento de trabalho. Para terminar, Hugo Guerreiro, apesar de não ter feito ainda um ano da classificação, na prática, este estatuto mudou alguma coisa para a cidade alentejana?

Penso que sim. Por exemplo, o número de visitantes cresceu. Os nossos barristas não têm mãos a medir e também já temos conhecimento de jovens interessados pela arte e à espera que abra algum curso para frequentarem. E vai acontecer, a médio prazo.

Há um reconhecimento a nível internacional que não havia. As pessoas têm um outro olhar sobre o figurado de Estremoz. É um outro reconhecimento, uma outra valorização desta arte. As pessoas que tinham bonecos antigos estão a procurar os barristas para recuperarem os seus bonecos, muitos já desprezados e que, agora, voltaram a despertar interesse.

Sinto, naturalmente, um grande orgulho e as pessoas de Estremoz estão muito orgulhosas de terem algo que é único no mundo e que é considerado Património da Humanidade. Isso superou todas as minhas expetativas.

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