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Crónicas da América
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EUA

Depois de desvalorizar o coronavírus, Trump “descobre” que o perigo vem da Europa

12 mar, 2020 - 21:06 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

Na quarta-feira à noite, Trump decidiu reconhecer publicamente que havia um problema sério e veio a público anunciar uma proibição de viajar de e para a Europa nos próximos 30 dias.

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Até esta quarta-feira, Donald Trump andou semanas a desvalorizar a ameaça do coronavirus.

Disse que não havia perigo significativo para os cidadãos americanos; acusou os media e os democratas de empolarem a ameaça com o intuito de o combater politicamente; desmentiu os médicos e autoridades de saúde quanto à taxa de mortalidade do vírus; deu informações erradas ao público; aconselhou as pessoas a fazer a sua vida normal; garantiu que o vírus estaria debelado em abril quando o tempo aquecer; contrariou a ideia de que a economia iria sofrer com a crise; um dos seus filhos escreveu até que lhe parecia um bom momento para comprar ações na bolsa; os seus émulos na Fox News e noutros media chamaram mesmo ao vírus um embuste criado para evitar a reeleição de Trump.

Há algumas semanas criou uma “task force” para enfrentar o problema, liderada pelo vice-presidente Mike Pence. Uma das ideias surgidas era aconselhar os mais idosos a não andarem de avião como medida preventiva, mas inibiu-se de vir a público fazê-lo para não contradizer Trump, que tinha recomendado aos americanos que continuassem a fazer a vida normal. O clima criado pelo presidente em torno da questão do vírus foi de tal modo constrangedor que nem os principais encarregados de combater a epidemia tiveram margem de manobra para o fazer. Estiveram, pelo menos publicamente, em estado de negação, à semelhança do grande líder.

Este foi o panorama nos Estados Unidos até quarta-feira à noite. Ou melhor na administração Trump, porque nos locais onde o vírus se fez sentir as autoridades estaduais ou municipais tiveram de enfrentar o problema com os meios disponíveis. Mas na quarta-feira à noite, Trump decidiu reconhecer publicamente que havia um problema sério e veio a público anunciar uma proibição de viajar de e para a Europa nos próximos 30 dias, numa comunicação solene que nem por isso deixou de ter erros e omissões vários.

Chamou ao covid-19 “vírus estrangeiro” e “infeção horrível”, disse que o transporte de carga também estaria incluido na proibição, deixou implícito que os cidadãos americanos também estavam abrangidos pela medida, e garantiu que iam ser fornecidos tratamentos antivirais em tempo recorde.

Todos estes pontos tiveram de ser clarificados posteriormente. A carga não está incluída na proibição, o comércio de mercadorias pode continuar a fazer-se normalmente. Os cidadãos americanos que estejam na Europa e queiram regressar ao país podem fazê-lo, embora fiquem sujeitos a testes ao vírus à entrada e a eventual período de quarentena. O mesmo é válido para estrangeiros que vivam nos EUA. Não existem ainda quaisquer tratamento antivirais para o covid-19, ao contrário do que disse Trump.

Mas estas lacunas e imperfeições na comunicação não foram sequer o mais grave. O mais grave foi mesmo o anúncio de que os voos de ligação à Europa iam ser suspensos por 30 dias a partir de sexta-feira. Mas com uma exceção: o Reino Unido. É um anúncio com motivações políticas que nada tem a ver com o combate ao coronavirus. Abrange a Europa como um todo quando a situação é muito diversa de país para país, como sabemos.

Um anúncio feito de forma unilateral sem ter sido discutido com os aliados europeus, que aliás nem foram previamente avisados do mesmo. A Comissão Europeia criticou a decisão e a comunidade científica americana também. Algo que, obviamente, não preocupa Trump, que avançou com a medida para consumo interno. O que o preocupa é dar ao público americano — em particular ao seu eleitorado — a imagem de que é um presidente forte que protege o país contra todos os perigos, venham eles de onde vierem e tenham a forma que tiverem.

O carácter demagógico da medida fica bem patente quando se reflete sobre a isenção do Reino Unido. Porquê? Por ser o aliado histórico? Por ser governado agora pelo amigo Boris Johnson? Por ter saído da União Europeia? Por não pertencer a Schengen? Qualquer que seja a resposta, ela esbarra na realidade no terreno. O Reino Unido não é uma ilha isenta de coronavirus. Tem neste momento quase 600 casos de infeções registados, já houve 8 mortes e o próprio Boris Johnson admitiu que em breve atingirão os 10 mil casos.

Comparem-se estes números com os de Portugal, por exemplo. Em que medida podem os voos de Portugal para os EUA constituir maior perigo do que os voos do Reino Unido? E quem diz Portugal diz vários outros países europeus, naturalmente, onde a ameaça por ora é bem menor do que do outro lado da Mancha.

Poderia justificar-se uma medida do género para Itália, como decidiram vários governos, mas já não para muitos outros países onde a situação é completamente diferente. Pelo contrário, a haver precauções a tomar nos voos transatlânticos elas justificavam-se mais do lado de alguns países europeus em relação aos EUA, onde a situação poderá escalar rapidamente em termos de perigo social.

Além disso, visar a Europa como um todo neste caso é ainda contraditório com a própria situação vivida nos EUA, onde a maior incidência do coronavírus até agora se verifica na costa Oeste, sobretudo no estado de Washington. Provavelmente causada por voos provenientes da Ásia, onde o vírus teve origem, como se sabe.

Nesta quinta-feira havia registo de 1300 casos nos EUA, espalhados por 44 estados, e 37 mortes a lamentar. Mas algumas horas após a comunicação de Donald Trump, o vice-presidente Mike Pence disse que o país tinha de se preparar para “milhares de casos”. Finalmente à vontade para revelar o que a “task force” tenciona fazer, Pence já não receou desmentir o presidente porque ele próprio veio admitir a existência de uma crise. É assim que funciona a administração Trump. Ninguém ousa contradizer o grande líder até ao momento em que ele próprio muda de posição sobre um assunto e só então se soltam as línguas.

Na comunicação de quarta-feira, Trump disse que os EUA estão mais bem preparados para combater a crise do que qualquer outro país. Na verdade, é exatamente ao contrário, pelo menos no que toca aos países europeus. Qualquer um deles dispõe de um sistema de saúde mais eficiente do que o americano. E isso é decisivo para combater uma epidemia como a do coronavirus. Nos EUA são vários os fatores que concorrem para que esta crise possa vir a ter efeitos devastadores na população. Mas todos vão bater ao mesmo ponto: dinheiro.

Com milhões de pessoas ainda sem acesso a seguros de saúde, e com os custos exorbitantes praticados por qualquer hospital ou clínica, os primeiros obstáculos começaram já a ser noticiados um pouco por todo o lado. Respeitam ao acesso ao próprio teste para detetar o vírus. Alguns responsáveis da saúde já reconheceram que há uma enorme escassez de kits para detetar o vírus e há casos de pessoas que tentaram ser testadas e não conseguiram.

Além disso, a simples admissão num hospital para testar o vírus e verificar se a pessoa tem condições para prosseguir a sua vida social pode custar muitas centenas ou até alguns milhares de dólares. Há por isso uma gigantesca camada da população que não tem condições financeiras para apurar sequer se está infectada. E não estamos a incluir os mais pobres, indigentes ou sem-abrigo, cujo acesso a cuidados de saúde ou a simples consultas médicas é nulo.

A menos que sejam tomadas medidas muito excecionais em relação a estes segmentos populacionais mais vulneráveis, a contaminação poderá facilmente espalhar-se entre eles muito antes de ser detetada e tratada. Sobretudo nas grandes cidades, onde a densidade populacional é muito alta. Para dar apenas um exemplo: só em Nova Iorque há 60 mil sem-abrigo (homeless) para quem o contacto com alguma estrutura de saúde é uma absoluta quimera.

Próximo da cidade, numa pequena comunidade chamada New Rochelle, foi detetado um surto do vírus e o governador decretou o isolamento da cidade, a mobilização da Guarda Nacional para ajudar os habitantes e o completo rastreio da situação. Mas isso são medidas impossíveis de tomar na Big Apple onde circulam diariamente cerca de 8,5 milhões de pessoas. Muitas das quais de Metro, um eficaz meio de transporte, mas também de contágio de doenças.

São por isso fundados os receios de que uma eventual disseminação do coronavirus nos EUA, sobretudo em grandes concentrações urbanas, possa ter um efeito muito mais letal do que em qualquer país europeu. Mas essa é uma preocupação que Donald Trump não tem. A sua verdadeira preocupação é política e prende-se agora com a reeleição que se avizinha.

O grande líder, de que ninguém na administração ousa discordar, tem de mostrar aos seus súbditos de que não vacila nos momentos difíceis e protege o seu povo em qualquer circunstância e de qualquer inimigo — seja ele um grupo terrorista, um Estado pária, um país hostil, uma vaga de imigrantes ou um vírus “estrangeiro”. Fechem-se as fronteiras, mantenham-se os perigos à distância e punam-se aqueles de onde vem a ameaça. Mesmo que eles sejam países aliados em situação bem menos difícil do que os próprios EUA.

Coerente com o que tem feito até hoje, Trump aposta no isolacionismo, nas decisões unilaterais, e na visão de que o mundo é constituído por inimigos e/ou rivais contra os quais é preciso retaliar mesmo que se invente um pretexto para tal. É isso que rende votos, pensa. E talvez tenha razão. Em novembro se verá.

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