"Um bispo não deve ter a palavra final sobre o que fazer quando há alegações de abuso sexual"

À Renascença, a líder da comissão de inquérito ao abuso sexual de menores em instituições britânicas diz que ainda há muito trabalho por fazer. "80% das recomendações foram aceites, mas só 50% foram implementadas. É sem dúvida uma falha no sistema que, após oito anos de trabalho e muito dinheiro investido, haja um corte abrupto", lamenta Alexis Jay.

09 fev, 2023 - 18:20 • António Fernandes , correspondente da Renascença em Londres



Foto: IICSA
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Em 2011 a morte de Jimmy Savile, um famoso apresentador de programas infantis da BBC, abriu a porta das acusações que estabeleceram Savile como um predador e lançaram o debate nacional sobe o abuso sexual de menores. Em 2015 foi criada uma comissão de inquérito - Independent Inquiry Child Sex Abuse ou IICSA - para fazer o retrato de abusos em Inglaterra e no País de Gales.

Espelho da multiculturalidade britânica, no que toca à religião foram analisadas a Igreja de Inglaterra (Anglicana) e a Igreja Católica, as duas principais religiões e 38 outras religiões com menor expressão. O relatório sobre a Igreja Católica, publicado em Agosto de 2022, acusa a Igreja de não apoiar as vítimas e de “varrer o abuso sexual de menores para debaixo do tapete”.

A professora Alexis Jay liderou o inquérito desde 2016 e, a poucos meses da dissolução da comissão, fala à Renascença sobre os abusos em contextos religiosos.

Nesta entrevista, pinta um cenário de mudança lenta e insuficiente, depois do silêncio imposto por aqueles que “protegeram a reputação da igreja e dos indivíduos em questão acima de tudo o resto”.


A comissão de inquérito analisa todas as áreas da sociedade. Há diferenças quando falamos em abuso religioso?

Observámos muitas características em comum em relação ao abuso em muitas instituições e a sua resposta, desde os colégios privados mais elitistas a instituições religiosas. No inquérito cobrimos 15 áreas diferentes institucionais onde foram verificados abusos, para ver como tinham respondido às acusações.

Tem décadas de experiência em lidar com questões de abuso sexual de menores. Considera que é pior quando isso acontece num contexto religioso?

Há paralelos com os outros contextos. O Catolicismo não está sozinho, porque nós analisámos o Anglicanismo e 38 religiões com menos expressão em Inglaterra e no País de Gales.

O que destaca os abusos religiosos é que as instituições têm um propósito moral explícito. Entre outras coisas, estão lá para apoiar crianças, os pobres e os vulneráveis contra abuso, e demonstrar a diferença entre o certo e o errado. Isso tem de ser um propósito moral de qualquer religião.

Como é que foi feita essa análise?

O Anglicanismo e o Catolicismo foram o principal foco, porque são as religiões mais seguidas no Reino Unido. Depois olhámos para 38 outras religiões que tinham menos membros e menos informação sobre abusos que as duas principais, e nesses casos analisámos o que estão a fazer neste momento para proteger crianças deste tipo de abuso e para lidar com acusações. Muitas delas têm os seus próprios colégios por exemplo, ou creches, portanto não é só o contexto de igreja que temos de analisar.

Num dos relatórios do inquérito diz-se que a Igreja de Inglaterra “falhou, ao longo de muitas décadas, em proteger crianças e jovens de agressores sexuais, facilitando em vez disso uma cultura onde os agressores se podiam esconder e onde as vítimas encontraram obstáculos para expôr o abuso que muitos não conseguiram ultrapassar”. O que está por detrás desse silêncio imposto?

Há muitas razões diferentes, mas a que há em comum entre estas instituições é que protegeram a reputação da igreja e dos indivíduos em questão acima de tudo o resto. Como resultado, negaram a existência de abuso sexual de menores e, na realidade, nas várias ocasiões em que sabiam o que estava a acontecer, eles encobriram a situação.


A Igreja de Inglaterra expressou a sua “vergonha em relação ao abuso”. Sente que tanto a Igreja Anglicana quanto a Católica mudaram a forma como estão a lidar com os abusos e como os comunicam?

Posso dizer com toda a segurança que, olhando para acusações já com 30 ou 40 anos, estas são organizações que mudam muito lentamente. Outros estudos já tinham sido realizados e as instituições pareceram aceitá-los, mas foram lentas a implementar as mudanças, particularmente a Igreja Católica. E uma coisa é dizer que se está a mudar, outra é fazê-lo. Por isso é importante ter uma organização independente que vá acompanhando a implementação dessas mudanças, e eu não posso fazê-lo com a minha comissão porque está a chegar ao fim depois de 62 relatórios.

Um desses relatórios, publicado em 2021, refere que é “altamente improvável que os números apresentados pelas instituições religiosas reflicta a imagem completa” dos abusos. Numa altura em que os abusos são parte da discussão pública, porquê a resistência em colaborar?

Isso não se aplica só às religiões, não há ninguém que trabalhe nesta área que acredite que os números apresentados pelas diversas instituições sejam fidedignos. Todos eles falham em identificar e em reportar casos. Isso pode não ser sempre intencional, mas porque não foram feitos registos, por exemplo. Isso continua a ser um problema nas religiões mais pequenas. Uma preocupação que ainda está presente nas instituições religiosas é um receio de falar com alguém numa posição de autoridade fora dessas instituições.

Uma das condições para ter um bom sistema de proteção infantil é fazer com que seja obrigatório reportar qualquer caso às autoridades.

Foi por isso que num dos nosso últimos relatórios recomendámos a obrigatoriedade de reportar casos, para que qualquer pessoa numa posição de confiança, como um padre, tenha de reportar qualquer indicação de abuso sexual de menores, com possíveis implicações na justiça se não se reportar. Isso é uma das nossas sugestões mais importantes, porque acontece em várias áreas, mas no contexto religioso em particular há uma relutância extrema em reportar ou envolver alguém do mundo exterior nestes casos.

E nos casos que foram reportados, o que aconteceu na Justiça?

Se olharmos para os números que temos da Igreja Católica em Inglaterra e no País de Gales, de 1970 a 2015, ao longo desses 45 anos houve 900 queixas envolvendo 3 mil incidentes de abuso sexual de menores. Durante esse tempo, houve 133 condenações. A partir de 2016, em cada ano houve mais de 100 alegações de abuso reportadas, mas não temos o número de condenações.

Este não é um problema que vai desaparecer, longe disso. Está subidentificado e subreportado. Não é levado suficientemente a sério.

Em paralelo com o inquérito, foi estabelecido o Truth Project, para dar voz às vítimas. Quão importante foi ouvir os seus testemunhos?

Incrivelmente importante. Desde o início que tentámos colocar as vítimas no coração do inquérito No nosso último relatório demos a primeira secção às vítimas, em que expõem como a sua vida adulta foi afectada pelo abuso que sofreram na infância, e também falam sobre a sua experiência com a justiça.


Dados sobre composição do grupo de vítimas de abusos que participaram no Truth Project. Fonte: IICSA
Dados sobre composição do grupo de vítimas de abusos que participaram no Truth Project. Fonte: IICSA

É absolutamente essencial envolver as vítimas. Mas durante todo o processo tivemos de ter a certeza que as apoiávamos, para garantir que não teriam um novo trauma causado pela experiência de testemunhar nas audiências públicas do inquérito.

É também importante destacar que, tanto em contexto religioso como noutros, é muito raro que haja um só incidente de violação, por exemplo. De acordo com os testemunhos que recolhemos no Truth Project, o abuso começou maioritariamente entre os 7 e os 11 anos e a duração média dos abusos foi de quatro anos.

Ficam muitos casos por identificar, porque o tempo médio que as vítimas demoraram a falar com alguém sobre isso é 26 anos.

Perante a dificuldade em falar sobre os abusos, saber que há um inquérito em curso, a incluir esses abusos no discurso público, ajuda as vítimas?

Sem dúvida. Muitas, muitas vítimas querem justiça, querem que não aconteça a outras crianças, e querem perceber porque é que ninguém fez nada em relação isso. Pessoas que não percebem acham que isto é tudo sobre compensação, sobre dinheiro. As vítimas têm todo direito a isso, mas não é o caso.

Como é que vê a reação pública aos casos de abuso sexual de menores?

Nem sempre teve a atenção que devia. Mas através do meu inquérito e de outros grupos semelhantes, que têm produzido relatórios que são verdadeiramente chocantes para os leitores e que tiveram cobertura mediática, é menos tabu do que era. Contudo, o secretismo à volta do abuso sexual de menores e a relutância em falar sobre isso abertamente, mais do que sobre outros crimes horríveis, continua.

No nosso último relatório falamos sobre isso, sobre o facto de as pessoas nem sequer usarem as palavras: violação, abuso anal, masturbação. Não usam as palavras que são os termos corretos para as coisas que aconteceram a crianças. Essa dificuldade em usar as palavras é parte da ausência de discussão. Há até o caso de, em certas línguas de religiões que analisámos, nem sequer existirem palavras para aquilo que acabei de descrever.

Num dos relatórios são referidos certos impedimentos internos, mesmo que impostos inconscientemente, em contextos religiosos. A natureza dessas organizações constrói uma barreira de comunicação?

Há algumas barreiras que são típicas do contexto religioso. Posso referir algumas: culpar a vítima; conceitos de pureza sexual e de estatuto social familiar que podem fazer com que seja mais difícil reportar o abuso por ser um tabu; abuso de poder por líderes religiosos, até pela deferência que as comunidades podem ter face a um padre ou um bispo, por exemplo.

Disparidade de género, pela presença maioritária de homens em posições de liderança religiosa e que pode ser um impedimento, porque não dá opções às crianças sobre com quem falar, só podem falar com homens; desconfiança em relação às autoridades e, finalmente, o uso errado do conceito de perdão, que pode ser utilizado tanto para colocar pressão sobre as crianças para não relatar o abuso, como para justificar os falhanços dos líderes religiosos em atuar quando há alegações.

Que tipo de recomendações fez a comissão para lidar com a situação e proteger as crianças?

Uma das coisas que referimos é que, por exemplo, um bispo não deve ter a palavra final sobre o que fazer quando há alegações de abuso sexual. Primeiro tem de ser referido à polícia, mas mesmo isso não devia ser decidido por um bispo, mas sim por pessoas treinadas na área e que trabalhem para Igreja, porque tanto a Igreja Católica como a Anglicana têm muitos recursos de prevenção agora, como psicólogos. Mas não devem ser parte do clérigo porque, lamento dizê-lo, não se pode confiar que não protejam a instituição primeiro.

Referiu os recursos que essas duas principais igrejas têm em lidar com esta realidade. Está satisfeita com as medidas tomadas para evitar mais casos?

Não, não, não. Tanto os anglicanos como os católicos têm investido valores elevados, mas precisamos de ver que estão a fazê-lo não porque nós lhes pedimos, mas porque é a coisa certa a fazer para as crianças.

Vimos demasiadas vezes uma atitude pouco empática, que considera que as vítimas só querem dinheiro. Neste momento não estamos completamente satisfeitos e queremos ver que progresso será feito.

Agora que o inquérito vai chegar ao fim, que mecanismos há para comprovar esse progresso?

Essa é, sem dúvida, uma falha no sistema. Por lei, o inquérito acaba quando chegamos às nossas conclusões e fazemos recomendações. Haverá outras organizações, como os grupos de sobreviventes, que querem uma resposta na sequência do relatório final e já falámos com o ministro da Administração Interna sobre a necessidade de implementar as recomendações feitas. 80% das recomendações foram aceites, mas só 50% foram implementadas. É sem dúvida uma falha no sistema que, depois de oito anos de trabalho e muito dinheiro investido, haja um corte abrupto. Eu vou certamente continuar a seguir o assunto.


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