É absolutamente essencial envolver as vítimas. Mas durante todo o processo tivemos de ter a certeza que as apoiávamos, para garantir que não teriam um novo trauma causado pela experiência de testemunhar nas audiências públicas do inquérito.
É também importante destacar que, tanto em contexto religioso como noutros, é muito raro que haja um só incidente de violação, por exemplo. De acordo com os testemunhos que recolhemos no Truth Project, o abuso começou maioritariamente entre os 7 e os 11 anos e a duração média dos abusos foi de quatro anos.
Ficam muitos casos por identificar, porque o tempo médio que as vítimas demoraram a falar com alguém sobre isso é 26 anos.
Perante a dificuldade em falar sobre os abusos, saber que há um inquérito em curso, a incluir esses abusos no discurso público, ajuda as vítimas?
Sem dúvida. Muitas, muitas vítimas querem justiça, querem que não aconteça a outras crianças, e querem perceber porque é que ninguém fez nada em relação isso. Pessoas que não percebem acham que isto é tudo sobre compensação, sobre dinheiro. As vítimas têm todo direito a isso, mas não é o caso.
Como é que vê a reação pública aos casos de abuso sexual de menores?
Nem sempre teve a atenção que devia. Mas através do meu inquérito e de outros grupos semelhantes, que têm produzido relatórios que são verdadeiramente chocantes para os leitores e que tiveram cobertura mediática, é menos tabu do que era. Contudo, o secretismo à volta do abuso sexual de menores e a relutância em falar sobre isso abertamente, mais do que sobre outros crimes horríveis, continua.
No nosso último relatório falamos sobre isso, sobre o facto de as pessoas nem sequer usarem as palavras: violação, abuso anal, masturbação. Não usam as palavras que são os termos corretos para as coisas que aconteceram a crianças. Essa dificuldade em usar as palavras é parte da ausência de discussão. Há até o caso de, em certas línguas de religiões que analisámos, nem sequer existirem palavras para aquilo que acabei de descrever.
Num dos relatórios são referidos certos impedimentos internos, mesmo que impostos inconscientemente, em contextos religiosos. A natureza dessas organizações constrói uma barreira de comunicação?
Há algumas barreiras que são típicas do contexto religioso. Posso referir algumas: culpar a vítima; conceitos de pureza sexual e de estatuto social familiar que podem fazer com que seja mais difícil reportar o abuso por ser um tabu; abuso de poder por líderes religiosos, até pela deferência que as comunidades podem ter face a um padre ou um bispo, por exemplo.
Disparidade de género, pela presença maioritária de homens em posições de liderança religiosa e que pode ser um impedimento, porque não dá opções às crianças sobre com quem falar, só podem falar com homens; desconfiança em relação às autoridades e, finalmente, o uso errado do conceito de perdão, que pode ser utilizado tanto para colocar pressão sobre as crianças para não relatar o abuso, como para justificar os falhanços dos líderes religiosos em atuar quando há alegações.
Que tipo de recomendações fez a comissão para lidar com a situação e proteger as crianças?
Uma das coisas que referimos é que, por exemplo, um bispo não deve ter a palavra final sobre o que fazer quando há alegações de abuso sexual. Primeiro tem de ser referido à polícia, mas mesmo isso não devia ser decidido por um bispo, mas sim por pessoas treinadas na área e que trabalhem para Igreja, porque tanto a Igreja Católica como a Anglicana têm muitos recursos de prevenção agora, como psicólogos. Mas não devem ser parte do clérigo porque, lamento dizê-lo, não se pode confiar que não protejam a instituição primeiro.
Referiu os recursos que essas duas principais igrejas têm em lidar com esta realidade. Está satisfeita com as medidas tomadas para evitar mais casos?
Não, não, não. Tanto os anglicanos como os católicos têm investido valores elevados, mas precisamos de ver que estão a fazê-lo não porque nós lhes pedimos, mas porque é a coisa certa a fazer para as crianças.
Vimos demasiadas vezes uma atitude pouco empática, que considera que as vítimas só querem dinheiro. Neste momento não estamos completamente satisfeitos e queremos ver que progresso será feito.
Agora que o inquérito vai chegar ao fim, que mecanismos há para comprovar esse progresso?
Essa é, sem dúvida, uma falha no sistema. Por lei, o inquérito acaba quando chegamos às nossas conclusões e fazemos recomendações. Haverá outras organizações, como os grupos de sobreviventes, que querem uma resposta na sequência do relatório final e já falámos com o ministro da Administração Interna sobre a necessidade de implementar as recomendações feitas. 80% das recomendações foram aceites, mas só 50% foram implementadas. É sem dúvida uma falha no sistema que, depois de oito anos de trabalho e muito dinheiro investido, haja um corte abrupto. Eu vou certamente continuar a seguir o assunto.