Prazos de prescrição dos abusos sexuais na Igreja "são superiores" aos da lei civil

João Pedro Bizarro, sacerdote e professor de Direito Canónico, diz à Renascença que "em determinado tipo de crimes”, a Santa Sé pode entender que um crime deve ser julgado mesmo depois de ter perscrito. O especialista não tem, contudo, dúvidas de que Igreja "falhou ao não dar o valor que deveria ter dado à vítima".

09 fev, 2023 - 15:27 • Henrique Cunha



Foto: Joana Bourgard/RR
Foto: Joana Bourgard/RR

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O padre João Pedro Bizarro, professor de Direito Canónico na Universidade Católica, no Porto, diz que em matéria de abusos de menores "os prazos de prescrição na Igreja são superiores aos do ordenamento jurídico civil”, rejeitando a ideia de que as penas são brandas.

“Em determinado tipo de crimes”, a Santa Sé pode entender que um crime deve ser julgado, “apesar do prazo de prescrição dos 20 anos”, sublinha o jurista, em entrevista à Renascença.

João Pedro Bizarro admite que “a Igreja falhou ao não dar o valor correto que deveria ter dado à vítima”, mas rejeita que o Código de Direito Canónico não considere as vítimas de abusos.

"O Direito Canônico Penal foi idealizado para reparar precisamente um dano e o dano é feito sempre à vítima”, argumenta.

"O objetivo é reparar o dano realizado à vítima, seja ela uma vítima que nunca se sentiu lesada ou uma vítima que até não sabe que é vítima”, reforça.

O Direito Canónico não considera as vítimas, apenas o pecado e abusador?

Quando o Direito Canónico, neste caso o Direito Canónico Penal foi idealizado, foi para reparar, precisamente, um dano e o dano é feito sempre à vítima. Portanto, o objetivo é reparar o dano realizado à vítima, seja ela uma vítima que nunca se sentiu lesada ou uma vítima que até não sabe que é vítima, mas que o próprio Direito percebe, antevê que aquela situação é de crime/pecado e, portanto, tem que ser corrigida.

Não tem lógica estarmos a pensar "vamos corrigir um pecado só por causa do pecado". Essa mentalidade - medieval, penso eu - já está ultrapassada. As penas existem e o Direito Penal existe para reparar o dano e para salvar também aquele que cometeu o erro. Tem esta segunda vertente, como, de resto, todo o Direito Penal, que é o de poder corrigir a atuação e o criminoso/pecador poder voltar a participar plenamente da comunhão da sociedade.

"Não tem lógica estarmos a pensar "vamos corrigir um pecado só por causa do pecado". Essa mentalidade - medieval, penso eu - já está ultrapassada"

É uma questão do passado, esta de não se valorizar a vítima?

Sim, a Igreja também falhou nisso, ao não dar o valor correto que deveria ter dado à vítima, na medida em que descaracterizou, desconsiderou e, se calhar, até não valorizou a própria situação. Uma vez que falou dos abusos, isso é, de facto, uma das grandes feridas, não só pela magnitude do pecado e do crime. Falemos em crime em Direito Penal, não só pela magnitude do crime, mas também por um modo pouco pastoral e caridoso com que se trataram as vítimas.


O Código de Direito Canónico não prevê a indemnização da vítima?

A indemnização é da responsabilidade do réu, pode ser decretada em julgamento. Responsabilidade dita " civil" da Igreja não existe no sentido do direito anglo-saxónico.

Uma das críticas que se faz à Igreja está relacionada com as penas aos abusadores. São, de facto, brandas?

Eu penso que é importante contextualizar, porque a Igreja não tem mecanismos de coação. As nossas penas são muitas vezes as penas espirituais. Nós não temos cadeias, não temos modo de fazer impor pena. Quero dizer: eu, se o proibir de participar da Eucaristia, o senhor vai a outra Igreja qualquer. Não traz um letreiro a dizer "excomungado" ou fora da comunhão plena da Igreja ou interdito de poder participar da Eucaristia.

Para um cristão que viva a sua fé, ser impedido de comungar deveria ser uma pena gravíssima, porque é quase uma excomunhão, "in extremis", privá-lo dos sacramentos. Depois, há as outras penas: chamemos-lhe as penas físicas.

Espero que me entendam porque não estamos a falar de castigos corporais. Penas físicas, como, por exemplo, a privação da liberdade, nós [Igreja] não temos. Temos um lugar paralelo que seria a proibição ou obrigação de residir em determinados lugares e, depois, a pena máxima que se pode dar, por exemplo, a um sacerdote: a recondução ao estado laical, que seria, depois, a perda total do seu ministério no seu ofício sacerdotal.

"A Igreja não tem mecanismos de coação. As nossas penas são muitas vezes as penas espirituais. Não temos cadeias, não temos modo de fazer impor pena."

Estas penas, efetivamente, existem e são aplicadas. Mas não sei se a sociedade consideraria isto brando ou não. Todavia, dentro do ordenamento jurídico, é aquilo que está ao nosso alcance. Como disse, não temos cadeias e já não temos os mecanismos de apoio estaduais, como existia na Idade Média ou na Idade Moderna, quando o Estado, ou seja, a Coroa ou o rei, impunha as sanções que a Igreja decretava. Como aconteceu na triste história da Inquisição, chamando o triste episódio da cooperação Igreja-Estado.

Isto revela a necessidade de uma maior cooperação Igreja/Estado no tratamento das situações de abusos?

Sim. Neste momento, é a indicação que a Santa Sé dá. A Igreja Universal fala para todos os países do mundo, dá indicação aos bispos e não só aos bispos, a toda a gente, desde o batizado que vive numa paróquia do interior ao próprio bispo.

Havendo notícia de um crime de abuso sexual de menores ou de pessoas frágeis ou mentalmente incapazes, somos convidados, e este convidado é sem aspas: somos mesmo obrigados a participar a quem de direito.

Havendo notícia de um crime de abuso sexual de menores (...), somos convidados, e este convidado é sem aspas: somos mesmo obrigados a participar a quem de direito."

A obrigatoriedade dessa denúncia às autoridades civis é relativamente recente...

Sim, isto também é um processo. Tem estado a ser alterado gradualmente e há muito trabalho a fazer dentro da Igreja e dentro dos ordenamentos civis. Por exemplo, a questão da prescrição da pena. Enquanto no ordenamento civil a prescrição é muito mais reduzida e ao fim de muito poucos anos este crime prescreve, no ordenamento jurídico da Igreja o crime prescreve ao fim de 20 anos, depois da maioridade da vítima e pode, inclusivamente, não prescrever, no caso em que o tipo de crime cometido for entendido pela Santa Sé como um crime que deve ser julgado, apesar do prazo de prescrição.

Isto provoca um confronto difícil com a sociedade civil. Por exemplo: pode dar-se o caso de uma pessoa receber uma pena canónica por um crime de abuso sexual de menores em situações em que, aos olhos do ordenamento jurídico canónico ,é crime, mas no ordenamento jurídico civil não é. A questão dos 16 anos: dentro da Igreja, o crime de abuso sexual de menores ou de frágeis vai até aos 18 anos da vítima. No ordenamento civil, aos 16, com consentimento, já não é crime. No nosso ordenamento é crime.


Falemos agora um pouco do papel do Papa Francisco. O seu "Motu Próprio" de 2019 sobre a proteção de menores e pessoas vulneráveis marca, de algum modo, uma viragem na forma como a própria Igreja olhava para a situação dos abusos?

Eu penso que, de facto, com o Papa Francisco tivemos um avanço legislativo no que diz respeito a estas questões, mas isto é um processo que já vinha de trás, que tem sido visto com outros olhos e com outro cuidado. Passou a ser um crime reservado à Santa Sé, de modo a que, possa ser a Santa Sé a julgar estes crimes. Ampliou-se a tipologia da pessoa que pode ser julgada pelo crime. Deixou de ser só o sacerdote e passaram a ser, basicamente, quase todos os batizados. Ampliou-se também os prazos de prescrição, que eram mais reduzidos, e ampliou-se com a possibilidade, como já disse, de nem sequer prescrever.

Portanto, tem havido todo um cuidado para que a Igreja possa efetivamente tratar este cancro que existe dentro do seu seio, não é? E o Papa Francisco, de facto, deu passos bastante significativos, inclusive com a reforma de todo o Código Penal - o livro sexto - com a aplicação de novas normas e o aumento da penalidade, o aumento dos prazos que pode parecer insignificante, mas pode tornar eficaz este combate, e a justiça, que é o que interessa, fundamentalmente.

Já aqui falamos da questão da prescrição dos crimes e do alargamento dos prazos de prescrição, 20 anos após o abusado fazer 18 anos. Mas há, por vezes, a impressão de que um abusador pode ser sancionado sem que se saiba dessa sanção...

Os processos judiciais na Igreja, administrativas ou judiciais, são públicos e, portanto, são, depois, conhecidos. É impossível remover um pároco da paróquia e dizer que ele desapareceu do radar, não é?

Mas, por vezes, o sacerdote era removido da paróquia e não se dizia o motivo...

Sim, antigamente fazia-se isso. Não era dada desculpa credível: era o mau agir da Igreja.

Atualmente, isso é impossível?

Hoje em dia, isso não se passa. Ele é removido da paróquia, é suspenso e, depois, se houver um crime, isso é tornado público, porque os decretos são públicos. O que pode acontecer é, depois, haver necessidade de articular isto com os outros ordenamentos ou com a sociedade.

"Hoje em dia, ele [sacerdote] é removido da paróquia, é suspenso e, depois, se houver um crime, isso é tornado público."

Aquilo que sucedia era precisamente isso: escondia-se o escândalo, evitava-se dar escândalo. O mesmo que acontecia em tempos idos quando uma filha de boas famílias, engravidada. Ia para casa de uma tia e voltava nove meses depois, aos dez, já sem a criança. Eu penso que esse tipo de mentalidade também deve ser combatido, não é? Quanto mais depressa nós, igreja, assumirmos o nosso erro, mais depressa as vítimas podem pacificar o seu coração. Podem pacificar as suas vidas, tanto quanto é possível ultrapassar um abuso desta magnitude e podem perceber que efetivamente alguém se preocupa com elas e que se preocupa com a sua justiça.

Ou seja, a sanção é pública...

Já era, já era pública. Só que ocultava-se, provavelmente, quando havia sanção. O mal - e este grande escândalo, este grande cancro que aconteceu - foi precisamente de não ter havido sanção. Removia-se daqui e punha-se ali, e, portanto, espalhava-se o cancro, da paróquia A para a paróquia B, do colégio A para o colégio B.


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