Falemos agora um pouco do
papel do Papa Francisco. O seu "Motu Próprio" de 2019 sobre a proteção
de menores e pessoas vulneráveis marca, de algum modo, uma viragem na
forma como a própria Igreja olhava para a situação dos abusos?
Eu penso que, de facto, com o Papa Francisco tivemos um avanço
legislativo no que diz respeito a estas questões, mas isto é um processo
que já vinha de trás, que tem sido visto com outros olhos e com outro
cuidado. Passou a ser um crime reservado à Santa Sé, de modo a que,
possa ser a Santa Sé a julgar estes crimes. Ampliou-se a tipologia da
pessoa que pode ser julgada pelo crime. Deixou de ser só o sacerdote e
passaram a ser, basicamente, quase todos os batizados. Ampliou-se também
os prazos de prescrição, que eram mais reduzidos, e ampliou-se com a
possibilidade, como já disse, de nem sequer prescrever.
Portanto, tem havido todo um cuidado para que a Igreja possa
efetivamente tratar este cancro que existe dentro do seu seio, não é? E o
Papa Francisco, de facto, deu passos bastante significativos, inclusive
com a reforma de todo o Código Penal - o livro sexto - com a aplicação
de novas normas e o aumento da penalidade, o aumento dos prazos que
pode parecer insignificante, mas pode tornar eficaz este combate, e a
justiça, que é o que interessa, fundamentalmente.
Já aqui falamos da questão da
prescrição dos crimes e do alargamento dos prazos de prescrição, 20 anos
após o abusado fazer 18 anos. Mas há, por vezes, a impressão de que um
abusador pode ser sancionado sem que se saiba dessa sanção...
Os processos judiciais na Igreja, administrativas ou judiciais,
são públicos e, portanto, são, depois, conhecidos. É impossível remover
um pároco da paróquia e dizer que ele desapareceu do radar, não é?
Mas, por vezes, o sacerdote era removido da paróquia e não se dizia o motivo...
Sim, antigamente fazia-se isso. Não era dada desculpa credível: era o mau agir da Igreja.
Atualmente, isso é impossível?
Hoje em dia, isso não se passa. Ele é removido da paróquia, é
suspenso e, depois, se houver um crime, isso é tornado público, porque
os decretos são públicos. O que pode acontecer é, depois, haver
necessidade de articular isto com os outros ordenamentos ou com a
sociedade.
"Hoje em dia, ele [sacerdote] é removido da paróquia, é suspenso e, depois, se houver um crime, isso é tornado público."
Aquilo que sucedia era precisamente isso: escondia-se o
escândalo, evitava-se dar escândalo. O mesmo que acontecia em tempos
idos quando uma filha de boas famílias, engravidada. Ia para casa de uma
tia e voltava nove meses depois, aos dez, já sem a criança. Eu penso
que esse tipo de mentalidade também deve ser combatido, não é? Quanto
mais depressa nós, igreja, assumirmos o nosso erro, mais depressa as
vítimas podem pacificar o seu coração. Podem pacificar as suas vidas,
tanto quanto é possível ultrapassar um abuso desta magnitude e podem
perceber que efetivamente alguém se preocupa com elas e que se preocupa
com a sua justiça.
Ou seja, a sanção é pública...
Já era, já era pública. Só que ocultava-se, provavelmente, quando
havia sanção. O mal - e este grande escândalo, este grande cancro que
aconteceu - foi precisamente de não ter havido sanção. Removia-se daqui e
punha-se ali, e, portanto, espalhava-se o cancro, da paróquia A para a
paróquia B, do colégio A para o colégio B.