"Guerreiros" sobreviventes de cancro pediátrico são pilotos por um dia

Estamos no Mês Internacional de Sensibilização para o Cancro Pediátrico “Setembro Dourado”. 400 novos casos de cancro infantil são diagnosticados por ano em Portugal, tendo uma elevada taxa de cura a rondar os 80%, mas para a Liga Portuguesa Contra o Cancro todos os esforços são poucos para que se investigue mais. Em sintonia com a iniciativa da Força Aérea “Piloto por um dia”, convidou sete jovens sobreviventes de cancro e, por um dia, o pensamento voou para longe da rotina.

20 set, 2022 - 20:45 • Liliana Carona



Voar para esquecer - Reportagem de Liliana Carona
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Voar para esquecer - Reportagem de Liliana Carona

Sem hesitações, sete jovens sobreviventes de cancro pediátrico disseram “sim” ao desafio da Força Aérea Portuguesa para serem pilotos por um dia.

Falam com uma maturidade que ultrapassa a idade do Cartão de Cidadão e o olhar, apesar do sorriso, não esconde o passado.

O ponto de encontro é a Base Aérea n.º5, em Monte Real, no concelho de Leiria. O coronel João Vicente, comandante da base e piloto aviador, avança com o plano.

“O que é que vamos fazer agora? Vou vos dar duas hipóteses? Querem ir ver os aviões descolar ou ir para uma sala fechada ver os slides de powerpoint? [risos]” A escolha é fácil. “Depois de verem isto aqui, vão ver o filme Top Gun, que está muito bem feito e realista. Vamos para fora ver os aviões descolar. Tenho ali um sítio que só eu conheço, mais perto do que isto impossível…”, garante o comandante da Base Aérea nº 5.

João Vicente acrescenta que a Base de Monte Real existe desde 1959 e sempre teve aviões em reação com motor a jato. “Já tivemos vários tipos de aeronave e desde 1994 temos o F16, que é das máquinas mais evoluídas, vão ao simulador, vão poder sentar-se no cockpit”, salienta.

Mas antes, adverte: “vamos fazer já uma coisa essencial, uma foto com os pilotos que vão fazer o voo da manhã. Temos a esquadra dos Falcões, 201 e a 301, Jaguares e 18 pilotos qualificados, três em treino que estão a acabar a qualificação e depois temos pilotos mais idosos, que gostamos que eles continuem a vir cá, até para que se mantenham qualificados, e depois tomamos o café da manhã”, descreveu acerca do dia de atividades previsto.


Coronel João Vicente deu as boas-vindas ao grupo de sete jovens. Foto: Liliana Carona/RR
Coronel João Vicente deu as boas-vindas ao grupo de sete jovens. Foto: Liliana Carona/RR

"Vocês são guerreiros da vida, estes são guerreiros do ar"

No dia 9 de setembro, os participantes da iniciativa “Piloto por um Dia” perceberam que estava a decorrer um treino especial: o reabastecimento das aeronaves com o motor ainda a trabalhar.

Quatro F16 descolam da pista ao mesmo tempo que os olhos de Francisca Santos, de 11 anos, se enchem de brilho. “Estou a gostar, os aviões são tão diferentes do que costumamos ver, são mais pequenos. É fixe estar com o capacete”, assume.

Há cinco anos, Francisca lutou contra um tumor cerebral e hoje está cá para contar a história na companhia do pai, João Paulo, de 45 anos.

Vieram de Coimbra. “Há cinco anos, foi muito complicado. É uma coisa que nunca se espera. Um tumor cerebral aos seis anos de idade. Começou a arrastar uma perna. Fizeram exames, não foi detetado nada, mas o facto de uma sapatilha nova estar descolada, pelo arrastar do pé, chamou novamente a atenção, o sistema neurológico não estava a responder. Fez uma cirurgia, fez quimioterapia, radioterapia”, recorda o pai João.

Francisca deixa-se encantar pela Base Aérea nº5. “Hoje vou conhecer muitas coisas novas sobre a Força Aérea, gostava de saber como se pilota um avião”, afirma, perante as explicações do coronel João Vicente. “Vão perceber qual é a rotina, como se prepara para as missões. É um gosto ter-vos aqui, vocês são guerreiros da vida, estes são guerreiros do ar, vamos encontrar sinergias e pontos de encontro”, afirma o comandante da Base de Monte Real.


João Paulo incentivou a filha Francisca a participar nos Pilotos por um Dia. Foto: Liliana Carona/RR
João Paulo incentivou a filha Francisca a participar nos Pilotos por um Dia. Foto: Liliana Carona/RR

Mãe cria associação de apoio às famílias afetadas pelo cancro pediátrico

O ruído da descolagem faz estremecer o coração e são distribuídos protetores auditivos, para que as sete crianças e jovens possam estar o mais próximo possível das aeronaves, que também atraem a atenção dos pais que acompanham os filhos na iniciativa da Força Aérea Portuguesa, “Piloto por um dia”.

Por um dia, esquece-se tudo. Um verdadeiro sonho, para Anabela Figueiredo, de 52 anos, mãe de André, de 18, que ainda trava batalha contra um sarcoma.

“Isto é radicalmente diferente, normalmente acompanho-o ao hospital, às máquinas da ressonância magnética”, sublinha, desvendando que enquanto mãe decidiu criar há dois anos um projeto de apoio a outros pais que passam pelo mesmo.

“Eu própria criei em Coimbra, há dois anos, uma associação de apoio às famílias afetadas pelo cancro pediátrico: a Associação Calioásis, que tem um espaço no Hospital Pediátrico de Coimbra. Já tem 150 associados."

E sobre a iniciativa da Força Aérea, em parceria com a Liga Portuguesa Contra o Cancro (com quem colabora desde 2018), Anabela conclui que “quaisquer cinco minutos de alívio proporcionado fora do pensamento na doença, nos tratamentos e nas consequências, são ouro".


André enfrentou um cancro e a mãe Anabela Figueiredo criou uma associação. Foto: Liliana Carona/RR
André enfrentou um cancro e a mãe Anabela Figueiredo criou uma associação. Foto: Liliana Carona/RR

Mas não foi só para ver as aeronaves descolarem que estavam ali os sete “guerreiros” sobreviventes de cancro pediátrico. O major Nuno Cardoso, chefe do núcleo de operações aéreas da Base de Monte Real, abre a porta de entrada no simulador de voo.

“Devem deixar smartwatches, smartphones, aqui é informação secreta, é um simulador de voo, para os pilotos de F16 que passam por rigorosos testes de qualificação, os jornalistas não podem entrar com equipamentos”, informa o major Nuno Cardoso, também chefe do gabinete de ação social da Base Aérea nº5.

“Temos muitas atividades, muitas missões, ‘Alcança, quem não cansa, é o nosso lema’, a resiliência é um dos valores que nos apraz, nunca desistir, e isso é que nos levou a esta iniciativa em parceria com a Liga Portuguesa Contra o Cancro”, diz a respeito da ideia de convidar os jovens para passarem um dia diferente.

“Só vimos isto nos filmes, é um espetáculo”

Não foi permitido captar imagem ou som no simulador de voo. Mas Francisca e André tentam descrever o que viveram. “Foi uma sensação muito boa. Ainda não tenho muita experiência, achei agradável e emocionante. Os pés acho que não era preciso muito, mas as mãos sim. Fiquei com vontade de ser piloto”, diz Francisca, que sonha um dia ser médica anestesista.

André Almeida, de 18 anos, admite ter ficado “um bocadinho nervoso”. “Parecia que aquilo não andava, parecia que não saía do sítio. Eu não sabia o que estava a fazer. Foi tranquilo, foi o que mais gostei da visita, andar no simulador”, revela.

No grupo de participantes está Leonor Passagem, de 17 anos. “Estou na área de ciências e a parte da aerodinâmica falámos na escola, e vir aqui perceber como os aviões funcionam, era algo que me interessava. Já estava à espera do ruído, vivo aqui perto, sou de Casal Novo”.

Ricardo Falcão, de 20 anos, estudante de Biotecnologia, veio de Coimbra. “Estou a gostar, está a ser interessante, acho que não é qualquer pessoa que vê assim um avião tão perto a arrancar. Por esta porta passam os falcões mais ferozes do mundo”, lê na porta de entrada para a sala de planeamento da esquadra 201.


 

Gonçalo Li-xia, de 14 anos, de Oliveira do Hospital, garante que já não tem recordações da leucemia que o afetou há sete anos. "Não pensamos mais nisso. Não nos recordamos do passado. Olhar para a frente. Nós só vimos isto nos filmes, é um espetáculo”, admite, sobre a visita ao simulador de voo.

“Quando o cancro surge num filho é traumatizante para o próprio como para os pais”

Esta viagem só foi possível com o apoio da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Sónia Silva, de 40 anos, é psicóloga do núcleo regional do Centro.

“São cerca de 400 novos casos de cancro pediátrico anualmente em Portugal, a taxa de sobrevivência é muito elevada, devido a tratamentos inovadores, a mortalidade é muito baixa. Mas todos os esforços para estimular e sensibilizar à inovação e tratamento são sempre poucos e o ‘Setembro Dourado’ tem essa importância. Sabemos que o estilo de vida não se relaciona com o cancro pediátrico, mas a genética acaba por ter um contributo maior”, afirma a responsável pela área do voluntariado e da psico-oncologia da Liga Portuguesa Contra o Cancro, do núcleo regional do Centro.

Para Sónia Silva, são situações traumáticas, inesperadas na vida, para as quais as pessoas não têm preparação prévia nem percepcionam recursos imediatos para lhe fazer face e por isso causam desespero, pânico.

E quando o cancro surge num filho é traumatizante para o próprio como para os pais. “Penso que a maioria das pessoas se fosse confrontada com a questão: preferia ter cancro, ou um filho seu? optaria pela primeira resposta”, destaca.

A psicóloga identifica alterações nos adolescentes que passam pela experiência de cancro. “Limitações ao nível da socialização, tão importante nesta fase da adolescência, todas as oportunidades, a construção de identidade, os progressos académicos, podem ser comprometidos pela experiência de cancro, pelo tempo investido nos tratamentos, o distanciamento físico”, enumera, apressando-se a garantir que “as famílias de uma criança com cancro podem usufruir de apoio psicológico, jurídico, financeiro na Liga Portuguesa Contra o Cancro.


Gonçalo Li-xia lutou contra o cancro aos sete anos de idade. Foto: Liliana Carona/RR
Gonçalo Li-xia lutou contra o cancro aos sete anos de idade. Foto: Liliana Carona/RR

“Sentia que todos olhavam para mim, não queria morrer”

O trauma causado pela experiência de cancro e o pânico associado foi sentido por Leonor Aparício, hoje com 15 anos, quando a 31 de novembro de 2020 descobriu o que era linfoma de Hodgkin.

“Foi um choque no início, não queria ir para o hospital, não parava de chorar, mas depois fui, porque não queria… morrer. Tive medo de…”, respira fundo.

“Depois quando a médica me disse que o cabelo ia cair, caiu-me tudo. Eu quando entrei na escola, foi um bocado atrofiante, sentia que todos olhavam para mim, o coração andava a mil”, relembra, apontando estratégias a quem passe pelo mesmo. “Se alguém passar por algo assim, não fique assustado, leve como se nada fosse, e que se alguém estiver a olhar para ela, é super normal que as pessoas olhem. Fiquei inchada e não parecia eu, comprei a peruca, mas quase que não a usei, levei isto como uma coisa normal da vida. Dava ‘bué’ comichão a peruca, não vou usar isto (pensei), às vezes usava lenços. Mas maquilhei-me sempre, até nos internamentos”, conta à Renascença.

O medo transformou-se em mudança de vida, assume Leonor, que quer ser hospedeira.

Acompanhada da mãe, Elisa Santos, de 45 anos, vieram de Viseu para ter um dia diferente na Base Aérea de Monte Real. “Vai fazer dois anos que ela foi uma valente, sempre bem-disposta, a Leonor, sempre levou o tratamento com tranquilidade, foi uma guerreira, nunca pensei que ultrapassasse assim”.

“Ela tinha um caroço no pescoço. Foi um susto muito grande, mas depois de dois meses de tratamento, ela respondeu muito bem, fez meio ano de quimioterapia e está em vigilância no Pediátrico de Coimbra”, revela.


Leonor Aparício e a mãe Elisa Santos. Foto: Liliana Carona/RR
Leonor Aparício e a mãe Elisa Santos. Foto: Liliana Carona/RR

Já Leonor “não tem dúvidas de que é outra pessoa”. "É uma coisa má, mas que traz uma coisa boa depois. Ao início, fiquei com autoestima muito baixa, mas depois trouxe coisas boas. Mudei muito. Fiquei uma boa pessoa, mais atinada e muito mais ligada aos meus pais. E fico mais em casa, em vez de sair, só pensava em mim, era um bocado egoísta e não via o lado das doenças. Não tinha o sentido de compaixão, opá, não ligava para nada”, resume.

“Não ligava para nada” e hoje está atenta às palavras do tenente Tiago Santos, de 28 anos, na sala de planeamento da esquadra 201.

“Isto é um saco de voo, temos o arnês com colete de salva-vida, fato anti-G". E para que é que servem estas calças esquisitas?”, questiona a curiosa plateia.

“Quando um piloto voa numa aeronave de alta performance, já viram as caretas que faz o Tom Cruise no filme Top Gun? Num F16, se puxarmos o avião para cima, somos empurrados para o fundo da cadeira, e todo o nosso sangue vai para as pernas, e pode em casos extremos, provocar desmaio, e então levamos estas calças, e tem esta mangueira que liga ao ar condicionado do avião e insufla o fato, quando sente essa força G”, explica o piloto aviador Tiago Santos, que há 10 anos entrou para a Força Aérea Portuguesa, ambição que tinha já na adolescência.


Foto: Liliana Carona/RR
Foto: Liliana Carona/RR

“Admiro bastante a dedicação e resiliência destas crianças, é um bocadinho do nosso dia que podemos dar e talvez inspirar estas crianças a continuar com a motivação. Gostava muito que seguissem o meu exemplo, com dedicação e esforço podem atingir o que quiserem, este era o meu sonho de vida, desde os meus 15 anos. Não é preciso ser um super-homem para aqui chegar, mas é preciso gostar e por o trabalho acima de outras coisas”, realçou.

Assenta que nem uma luva o lema da Base Aérea de Monte Real: “Alcança quem não cansa”, lema levado a sério pelos sete sobreviventes de cancro pediátrico e pelos pais e mães que vivem tão intensamente cada segundo de sofrimento e alegria como os filhos.

“Eu acho que, quando se fala em cancro, ainda tem que se desmistificar. As pessoas pensam que não há esperança nenhuma. E foi isso que aprendi, e sou enfermeira”, desabafa Elisa Santos, deixando um conselho. “Há pais que dizem que não se deve dar muita liberdade aos filhos, mas depois disto houve um grande medo de perda, devemos dar o máximo de oportunidades aos filhos e já não penso no dia de amanhã. Não vamos cá estar definitivamente. Por isso é que ela está aqui hoje”.

“Agora consigo falar sem chorar, já passou ano e meio, sinto que ultrapassei”, assume Leonor, em olhar cúmplice, dirigido à mãe.


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