Ansião. A casa de Arlinda ardeu, mas os filhos ainda não tiveram coragem de lhe contar

As chamas fustigaram Ansião e roubaram ao concelho perto de 2.500 hectares numa semana. Em Mogadouro, Arlinda perdeu a casa, mas ainda não sabe. “Quando ela souber, coitadita, fica ali no meio do chão”, diz Alice Simões, uma irmã. Sérgio Freire foi salvo das chamas por um vizinho, David Rodrigues sente que, “quando corre uma coisa mal, tudo corre mal.”

26 jul, 2022 - 06:56 • Fábio Monteiro (texto) , Inês Rocha (vídeo e fotografia)



Ansião. A casa de Arlinda ardeu, mas os filhos ainda não tiveram coragem de lhe contar
Reportagem. No meio das cinzas

Este é o último de quatro capítulos do especial "No meio das cinzas", sobre os incêndios que fustigaram o distrito de Leiria, entre 7 e 18 de julho.


A casa de Arlinda ardeu, mas a septuagenária ainda não sabe. Os filhos, com quem vive em Lisboa desde que perdeu a visão, até agora não tiveram coragem de lhe contar a tragédia: no dia 13 de julho, com os termómetros a marcar mais de 40 ºC, todas as suas posses – fotografias, móveis, eletrodomésticos, etc – foram varridas pelas chamas.

Da habitação, situada na ponta de uma rua sem saída na pequena aldeia de Mogadouro, freguesia de Santiago da Guarda, em Ansião, sobram agora algumas paredes e muitos destroços. “É muito, muito triste. Ela tinha uma casa recheadinha de tudo. E agora não tem nada. Não tem uma recordação”, diz Alice Simões, com a voz aos soluços. “Quando ela souber, coitadita. Fica ali no meio do chão.”

Alice é irmã e vizinha de Arlinda; está desolada e sente culpa pelo sucedido. “Nós cuidávamos daquilo como se fosse nosso, quando ela não está cá ou os filhos”, repete, mais do que uma vez. A realidade, contudo, é que não poderia ter feito nada. A sua casa, que fica a escassos 50 metros de distância, está rodeada por um manto negro.


A casa de Alice e Cesário Simões também esteve ameaçada pelas chamas. Foto: Inês Rocha/RR
A casa de Alice e Cesário Simões também esteve ameaçada pelas chamas. Foto: Inês Rocha/RR

Um operacional presente no local contou à Renascença que o combate às chamas foi caótico: o autotanque ficou sem água, as bocas de incêndio não tinham pressão e por pouco os bombeiros não foram flanqueados pelo fogo na rua sem saída.

No dia do incêndio, com o vento a instigá-las, as chamas viajaram quilómetros e apanharam os moradores de Mogadouro desprevenidos. Por volta das 14h, Alice e o marido, Cesário, saíram de casa para ir ao centro de saúde e dar um salto à mercearia. “Via-se um bocadinho de fumo acolá. Lá para baixo, muito longe”, recorda Cesário.

Ora, o casal já estava às compras quando um vizinho lhes ligou a dizer que “o fogo já andava nas redondezas”.

“Eu disse à minha mulher: ‘Se precisares de mais alguma coisa, vens cá noutro dia. Vamos embora que o fogo anda perto da nossa casa.’ E viemos. Mas chegámos ao centro da aldeia e a GNR já não nos deixou passar”, conta.

Perto das oito da noite, cerca de seis horas depois de ter saído de casa, o casal foi autorizado a regressar. Só aí souberam que a sua habitação não tinha ardido, pois até então o vale estivera coberto por uma cortina de fumo. Ao mesmo tempo, descobriram os estragos na casa de Arlinda.

Dos escombros ainda flamejantes vinha muito barulho. “Parecia sei lá o quê. Parecia uma bomba que tinha rebentado”, conta Cesário.

Passados sete dias do incêndio, ainda há troncos e raízes em volta da casa de Alice e Cesário a queimar, lentamente. Por vezes, vêem-se pequenos focos de fumo. O perigo continua a espreitar e, por isso, não é fácil dormir. “Só de há duas noites para cá é que a gente consegue [dormir] mais ou menos. De vez em quando, levantava-me. Acordava com aquele susto”, admite Cesário Simões.

O homem de 79 anos encolhe os ombros, não usa a palavra trauma para descrever a experiência. Mas aponta nessa direção: “Os nossos cérebros ainda não estão bem… isto ainda vai demorar uns tempos.”


Foto: Inês Rocha/RR
Foto: Inês Rocha/RR

Viver depois de arder

A semana que se sobrepôs ao período de situação de contingência decretado pelo Governo foi “aterrorizante”, atesta David Rodrigues, presidente da junta de Santiago da Guarda, à Renascença.

A vegetação estava “toda seca”, já “não chovia há bastante tempo”, o que justifica – pelo menos em parte - que tenham ardido perto de 2.500 hectares só no concelho de Ansião, no distrito de Leiria.

Diante das ruínas da casa de Arlinda, o autarca de 52 anos simula com as mãos os movimentos das labaredas; relata como muitas famílias perderam os animais que tinham e algumas localidades ficaram isoladas, por momentos, devido à velocidade de propagação das chamas. No meio da confusão, os telefones deixaram de funcionar.

“A eletricidade já foi reposta. O que não temos ainda é telecomunicações em algumas zonas. A rede ficou muito danificada. Arderam centenas ou se calhar até alguns milhares de postes de telefone, que são em madeira, como sabemos. E essa recuperação é que está a ser mais lenta.”

Os dias não foram fáceis para os soldados da paz nem para os habitantes da pequena comunidade. “Quando corre uma coisa mal, corre tudo mal. Queremos ajudar e não conseguimos. E depois é muito complicado viver com isto. Foram dias e noites exigentes em que não deu para descansar”, assume o autarca.


Sérgio Freire, 45 anos, perdeu o que tinha guardado no armazém. Foto: Inês Rocha/RR
Sérgio Freire, 45 anos, perdeu o que tinha guardado no armazém. Foto: Inês Rocha/RR

Salvo pelo vizinho

Não fosse a intervenção de um vizinho, Sérgio Freire teria morrido. O empreiteiro de 45 anos estava em casa quando as chamas chegaram à localidade. Mas assim que o incêndio passou pelo seu teto sem deixar marcas, a primeira coisa que lhe ocorreu foi correr para o estaleiro de materiais de construção, onde tinha um armazém.

Em pânico, Sérgio saiu de casa com uma “dor no peito”. E mesmo com o armazém em chamas, abriu a porta. Levou, então, com uma onda de fumo que o deixou intoxicado e perdeu os sentidos. Por acaso, Carlos, um vizinho, viu-o tombado no chão, tirou-o do alcance das chamas e alertou os bombeiros e o INEM.

“Quando aqui cheguei, isto já tinha ardido tudo. Vou a abrir o portão e desmaiei. E não me lembro de mais nada”, conta, enquanto aponta para o que sobrou do pavilhão: praticamente nada. O teto desabou, os materiais que tinha vindo a comprar e a acumular nos últimos meses, para acautelar a subida da inflação, ficaram em cinzas.


Sérgio Freire perdeu perto de 400 mil euros no incêndio. Foto: Inês Rocha/RR
Sérgio Freire perdeu perto de 400 mil euros no incêndio. Foto: Inês Rocha/RR

O empreiteiro foi levado para o hospital de Pombal e só no dia seguinte regressou a casa. O primeiro sítio que visitou quando teve alta? O armazém. “Tive sorte mesmo. Podia ficar com mazelas e agora não conseguia continuar a trabalhar. Mas estou impecável, pronto. Não baixo os braços.”

À semelhança dos materiais com que trabalha, Sérgio é resiliente; não procura a compaixão de ninguém. O incêndio custou-lhe “300 ou 400 mil euros”, mas há oito famílias dependentes da sua empresa e é preciso pôr mãos à obra. “Tenho trabalho. Vou ter sempre. Se não for aqui nos concelhos mais próximos, vai ser nos concelhos mais distantes. Ou nos países próximos. Não há medo de ir a França, Espanha...”

Com o apoio dos seus trabalhadores, já pôs mãos à obra e limpou o pavilhão. Uns já estão mesmo a colocar cimento nas paredes, para voltar a fortificá-las. Por isso, diz: “Espero pôr a cobertura, só que é muito caro. Aos anos que foi feita, hoje está quatro vezes mais cara. Se vier algum apoio, constrói-se mais rápido. Se não vier, temos que ir fazendo.”


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