Para lá da morte. Quando nem a família nem os amigos vão ao funeral

No ano passado morreram 233 pessoas na cidade de Lisboa, sem que houvesse alguém a reclamar o corpo ou a estar presente no enterro. São mais 51 casos do que em 2020. Um número recorde registado pela Irmandade de São Roque que, através de um grupo de voluntários, procura garantir que ninguém é levado sozinho à sepultura.

22 fev, 2022 - 06:33 • Ana Catarina André , Joana Bourgard (fotografia)



Dos 233 funerais que a Irmandade de São Roque acompanhou em 2021, 15 foram de crianças.
Dos 233 funerais que a Irmandade de São Roque acompanhou em 2021, 15 foram de crianças.

Ouça a reportagem da jornalista Ana Catarina André (sonorização: de André Peralta)

José Joaquim Martins, 79 anos, acompanha, em silêncio, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa, a derradeira descida à terra de um homem que nunca viu, nem sabe quem é. Ao seu lado estão o diácono que, minutos antes, presidira à celebração das exéquias, e os três funcionários da agência funerária que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa contratou para o enterro. Nenhum deles conhece a pessoa que jaz naquele caixão e que os quatro coveiros municipais devolvem agora à terra.

A pouca informação que lhes chegou resume-se ao nome (Casimiro Lopes), à idade (87 anos) e à provável data do óbito – anterior a novembro de 2021, uma vez que o corpo estava há mais de dois meses no Instituto de Medicina Legal. Não se sabe a causa da morte, nem as circunstâncias que terão conduzido àquele fim solitário.


José Joaquim Martins, 79 anos, é um dos voluntários da Irmandade de São Roque. Já acompanhou dezenas de funerais de pessoas que não conhecia.
José Joaquim Martins, 79 anos, é um dos voluntários da Irmandade de São Roque. Já acompanhou dezenas de funerais de pessoas que não conhecia.

O funeral decorre no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
O funeral decorre no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
O antigo comandante da Marinha anotou o nome do falecido.
O antigo comandante da Marinha anotou o nome do falecido.


“Não faço isto para obter alguma recompensa”, explicará, depois, José Joaquim Martins, antigo comandante da Marinha, que há vários anos se disponibiliza para acompanhar os funerais daqueles cujo corpo ninguém reclamou.

“Faço-o de boa vontade, na convicção de que estou a fazer alguma coisa de útil.” E explica: “[Enterrar os mortos] é uma das obras de misericórdia contidas nos evangelhos e, portanto, faço-o com gosto.”

Tal como acontece quase sempre, o reformado, de 79 anos, recebera na véspera um telefonema com um novo pedido da Irmandade de São Roque, associação de fiéis a que pertence há vários anos. Havia mais uma pessoa que morrera sozinha na cidade de Lisboa, cuja família não aparecera e a quem era preciso dar um enterro digno.


Em poucos minutos, os funcionários da agência funerária dizem as únicas informações disponíveis sobre o falecido: idade, nome e o local onde terá morrido.
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Em poucos minutos, os funcionários da agência funerária dizem as únicas informações disponíveis sobre o falecido: idade, nome e o local onde terá morrido.

“Sempre que tenho disponibilidade, estou presente”, assume, contando que tem uma rotina em dia de funeral.

Sai de casa com pelo menos 45 minutos de antecedência, bebe um café numas das pastelarias das imediações do cemitério e vai à florista buscar um ramo de flores que depositará, mais tarde, junto ao caixão.

“É a Irmandade quem suporta este custo”, refere, explicando que é, também, esta organização que coordena os voluntários deste serviço. O pagamento do funeral, esse, é feito pela Santa Casa da Misericórdia.


Os custos do funeral são suportados pela Santa Casa da Misericórdia. À Irmandade de São Roque cabe garantir o acompanhamento.
Os custos do funeral são suportados pela Santa Casa da Misericórdia. À Irmandade de São Roque cabe garantir o acompanhamento.

Um caixão numa capela vazia

O dia está cinzento e o piso apresenta, ainda, os vestígios da chuva que caiu há pouco. À medida que José Joaquim Martins se aproxima da entrada do cemitério, vai pensando na pessoa que levará ao túmulo. “Normalmente pergunto o nome”, conta, sentado à entrada, enquanto aguarda a chegada da agência funerária.

“Gosto de saber se morreu sozinho, se estava num lar ou se era sem-abrigo”, diz, enquanto retira do bolso um papelinho com o nome: “Casimiro Lopes”.

Em poucos minutos, e já à entrada da capela, que normalmente só é usada neste tipo de situações (na maioria das vezes, as celebrações realizam-se no local do velório), os funcionários da agência dão-lhe as únicas informações disponíveis sobre o falecido – além da idade e do nome, a documentação indica que terá morrido no hospital de Santa Marta, em Lisboa.


Em dezembro de 2021, os membros da Irmandade acompanharam 15 funerais.
Em dezembro de 2021, os membros da Irmandade acompanharam 15 funerais.
A agência funerária é contratada pela Santa Casa da Misericórdia.
A agência funerária é contratada pela Santa Casa da Misericórdia.


A Irmandade surgiu em tempo de pandemia, quando D. Manuel I pediu que trouxessem de Veneza as relíquias de São Roque.
A Irmandade surgiu em tempo de pandemia, quando D. Manuel I pediu que trouxessem de Veneza as relíquias de São Roque.

Lá dentro, o caixão, colocado ao centro, entre a assembleia e o altar, evidencia o vazio e a solidão do momento. José Joaquim Martins e o diácono que preside às exéquias aproximam-se. Rezam por Casimiro, antes de, em cortejo fúnebre, o levarem à campa.

“A morte é inevitável e natural”, dirá o reformado que, apesar de ter estado em dezenas de enterros, assume que não o confrontam com o dia em que, também ele, desaparecerá.

“Não fico a pensar: ‘qualquer dia sou eu’. Não gosto muito de pensar nisso. Gostava de viver mais uns anos.”

Novo máximo: 233 funerais de gente abandonada ou sozinha

Tal como José Joaquim Martins, há outros 20 voluntários da Irmandade de São Roque que acompanham pessoas que morrem sozinhas, na cidade de Lisboa, sem terem um familiar ou amigo que vá ao enterro.

O ano passado, esta associação de fiéis, com mais de 500 anos de história, registou o maior número de sempre deste tipo de funerais: 233. São mais 51 casos do que em 2020. Um aumento que evidencia a solidão do final da vida, e que Mário Pinto Coelho, provedor da Irmandade, atribui parcialmente à Covid-19. Na última década, a média anual de casos foi de 123.


Mais de metade das pessoas que foram sepultadas sem família ou amigos eram homens.
Mais de metade das pessoas que foram sepultadas sem família ou amigos eram homens.

Em alguns casos, não é possível identificar se se trata de um homem ou de uma mulher, tal é o estado de decomposição do corpo.
Em alguns casos, não é possível identificar se se trata de um homem ou de uma mulher, tal é o estado de decomposição do corpo.
Alguns corpos ficam meses no Instituto de Medicina Legal antes de serem enterrados.
Alguns corpos ficam meses no Instituto de Medicina Legal antes de serem enterrados.


“Ainda não conseguimos explicar totalmente o que está a acontecer”, refere. É que mesmo com a diminuição das mortes associadas à pandemia, o número de funerais deste tipo continua a aumentar.

“Em outubro houve 19, em novembro também 19 e em dezembro 15, quando, até então, havia 10 a 12 por mês. A tendência verificou-se também em janeiro”, declara Mário Pinto Coelho, contando que a Irmandade nascida em 1506 surgiu também em época de pandemia.


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“Lembro-me de uma pessoa que deu à costa e que, por ter estado tanto tempo no mar, não se sabia se era mulher ou homem. Se calhar, tinha família, mulher ou marido, filhos que andaram à sua procura e nós, aqui, é que o sepultámos, talvez a quilómetros de casa”

“O rei D. Manuel I não sabia o que fazer e mandou vir de Veneza as relíquias de São Roque, já nessa altura conhecido como santo protetor contra as pestes. O que é certo é que as relíquias vieram e a peste parou”, relata, dizendo que “desde essa altura, a Irmandade tem uma certa tradição de acompanhar funerais”, mas que, só mais recentemente, desde 2004, começou a promover esta atividade de forma mais organizada.

Uma realidade que é exclusiva da cidade de Lisboa. “É aqui que a situação é mais grave. Na província há sempre alguém que vai. Mesmo no Porto, que é a segunda cidade do País, há uma presença mais humana entre vizinhos”, considera Mário Pinto Coelho, explicando que os corpos têm de permanecer, pelo menos, um mês no Instituto de Medicina Legal para que as autoridades tentem encontrar a família.


José Joaquim Martins tem 79 anos e já acompanhou dezenas de funerais de pessoas que morreram sós
José Joaquim Martins tem 79 anos e já acompanhou dezenas de funerais de pessoas que morreram sós

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"É o sumo abandono, não ter ninguém no momento em que se desce à terra. Por isso, quando me propuseram este serviço, disse logo que sim.”

Mais homens do que mulheres

Dos 233 funerais que a Irmandade acompanhou o ano passado, mais de metade era de homens. Registaram-se também 88 casos de mulheres e 15 de crianças. Em nove situações foi impossível identificar o sexo, tal era o estado de decomposição dos corpos.

José Joaquim Martins esteve num desses enterros. “Lembro-me de uma pessoa que deu à costa e que, por ter estado tanto tempo no mar, não se sabia se era mulher ou homem. Se calhar, tinha família, mulher ou marido, filhos que andaram à sua procura e nós, aqui, é que o sepultámos, talvez a quilómetros de casa”.


Rui Sousa considera que os casos de crianças são sempre mais tocantes. "Este bebé não teve oportunidade de ser batizado, de viver", diz.
Rui Sousa considera que os casos de crianças são sempre mais tocantes. "Este bebé não teve oportunidade de ser batizado, de viver", diz.

Desde que o antigo comandante da Marinha soube que a Irmandade de são Roque tinha, entre as suas atividades, o acompanhamento dos mortos, não hesitou em fazer a sua parte.

Quando era miúdo, um dos meus primos, estudante de música, tinha uma estampa do funeral do Mozart: uma carreta com um cão atrás. Um génio como ele não teve ninguém que o acompanhasse!”, recorda José Joaquim. E sublinha: “Nunca mais me esqueci daquela imagem. É o sumo abandono, não ter ninguém no momento em que se desce à terra. Por isso, quando me propuseram este serviço, disse logo que sim.”


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"Antes havia 10, ou 11 funerais por mês. Nestes últimos meses, em outubro foram 19, novembro também 19 e em dezembro 15."

Bebés que não chegam sequer a ter nome

Para muitos voluntários, os funerais mais impressionantes são os das crianças. É o que considera o economista Rui Sousa, de 44 anos, que, num dia de sol de janeiro, se disponibilizou para tentar suprir a ausência da família de um bebé que morreu, ainda antes de nascer.

“Estas situações custam um pouco mais, mas há que ter sempre um olhar colocado em Deus”, afirma.


O economista Rui Sousa é um dos voluntários da Irmandade de São Roque. Os funerais de crianças são os mais difíceis, diz.
O economista Rui Sousa é um dos voluntários da Irmandade de São Roque. Os funerais de crianças são os mais difíceis, diz.

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“Estas pessoas têm uma história. Se calhar, tiverem uma vida estruturada e equilibrada. O que terá acontecido para chegaram a este ponto?”

“O importante é cumprir as obras de misericórdia, no caso, enterrar os mortos, e permitir que estas pessoas tenham alguma dignidade no derradeiro momento.” E acrescenta: “Não aceitar este serviço seria apenas uma questão de comodismo, já que tenho disponibilidade para o fazer”.

Ainda à porta da capela do cemitério do Alto de São João – de vez em quando, também há funerais noutros locais da cidade, como Benfica e os Olivais –, Rui Sousa não esconde o espanto ao olhar para o caixão.

“Meu Deus, tão pequenino”, desabafa, enquanto vê os agentes funerários transportarem a urna entre as palmas das mãos. “É sempre tocante. Este bebé não teve oportunidade de ser batizado, de viver. É sepultado sem o pai, a mãe, um tio ou uma tia…”


Na última década, 15 nados mortos foram abandonados pela família.
Na última década, 15 nados mortos foram abandonados pela família.
Em muitos casos, a família não tem como pagar as despesas do enterro.
Em muitos casos, a família não tem como pagar as despesas do enterro.


Não chegou sequer a ter nome. Quando assim é, os membros da Irmandade fazem questão de lhe dar um, muitas vezes o do santo do dia. É uma forma de dignificar a pessoa que se está a sepultar, ainda que para efeitos legais não tenha qualquer valor.


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“Já assisti a funerais de crianças em que ninguém acompanha, mas ao longe vê-se um casal novo ou uma senhora. Desconfiamos que sejam familiares ou até a mãe ou o pai.”

Ao bebé que Rui Sousa acompanhou à sepultura, naquele dia de sol de janeiro, foi dado o nome de Ângelo. “Penso em particular nestas pessoas no dia do funeral. Além da cerimónia, incluo-as nas minhas orações do dia.”


Quando as crianças não tem nome, é-lhes dado um.
Quando as crianças não tem nome, é-lhes dado um.
Os agentes funerários transportam a pequena urna entre as mãos.
Os agentes funerários transportam a pequena urna entre as mãos.


Das 15 crianças que, em 2021, foram sepultadas sem a presença de família ou amigos, 6 eram meninos, 8 meninas e um deles um nado morto. O provedor da Irmandade de São Roque diz que, em muitos destes casos, a família as abandona para não pagar o funeral.

“Muitas vezes, as mães dão uma morada errada no hospital, aquando do parto, para não haver possibilidade de contacto. Talvez tenham medo”, diz Mário Pinto Coelho.

“Já assisti a funerais de crianças em que ninguém acompanha, mas ao longe vê-se um casal novo ou uma senhora. Desconfiamos que sejam familiares ou até a mãe ou o pai”, declara o provedor, explicando que nos casos em que não há possibilidade financeira de pagar o funeral, a Santa Casa da Misericórdia suporta a despesa e os familiares podem estar presentes.


“Penso em particular nestas pessoas no dia do funeral. Além da cerimónia, incluo-as nas minhas orações do dia.”
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“Penso em particular nestas pessoas no dia do funeral. Além da cerimónia, incluo-as nas minhas orações do dia.”

"Penso em particular nestas pessoas no dia do funeral. Além da cerimónia, incluo-as nas minhas orações", diz Rui Sousa.
"Penso em particular nestas pessoas no dia do funeral. Além da cerimónia, incluo-as nas minhas orações", diz Rui Sousa.
Na última década, a média anual de enterros de corpos não reclamados foi de 123.
Na última década, a média anual de enterros de corpos não reclamados foi de 123.


Um serviço que ajuda a ter os pés na terra

Ainda que alguns amigos e familiares fiquem surpreendidos com este tipo de voluntariado – muitos dizem que não seriam capazes de fazê-lo –, Rui Sousa diz que estar presente no enterro destas pessoas, o ajuda a ter os pés na terra.

“Obriga-nos a ter noção da vulnerabilidade de muitas pessoas que, apesar de viverem na mesma cidade do que nós, estão numa situação de total exclusão e solidão.”

E acrescenta: “Estas pessoas têm uma história. Se calhar tiveram uma vida estruturada e equilibrada. O que terá acontecido para chegaram a este ponto?”


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