Por quem os sinos dobram

Longe da arrogância de Biden, a chanceler alemã reconheceu os erros de avaliação sobre a situação no Afeganistão, a começar pelos seus. A humildade não está ao alcance de todos. Vamos ter saudades dela.

18 ago, 2021 - 17:00



Não é a primeira vez que os regimes caem como castelos de cartas. A União Soviética e os regimes comunistas do leste europeu ruíram, sem o estrondo que se imaginava. Em Portugal, o Estado Novo esboroou-se em poucas horas.

Quando regimes ditatoriais ou autoritários sucumbem, celebra-se a liberdade, porventura a democracia. No caso do Afeganistão é o inverso. A rendição aos talibãs faz temer o pior. O caminho mudou de direção. Em vez do acesso à democracia, voltou o retrocesso, cívico e cultural.

Não é a primeira vez que os talibãs sobrevivem militar e politicamente a potências estrangeiras. A extinta União Soviética que o diga. Agora são as forças da NATO, herdeiras da intervenção liderada por George W. Bush, a retirarem do Afeganistão com o sabor amargo de um dever, em grande parte não cumprido.

Joe Biden diz não estar arrependido, por ter feito o que acaba de fazer, na sequência dos acordos celebrados anteriormente pelo seu antecessor, Donald Trump. E com insinuante demagogia afirma que os americanos não podem combater guerras que os afegãos não querem travar. Como se as forças internacionais tivessem percebido que a sociedade afegã deseja novamente anichar-se na concha do antigo regime.

As imagens de pânico em Kabul desmentem Joe Biden. Naqueles rostos não vi festa nem júbilo, mas terror em estado puro. Aqueles milhares de pessoas antecipam o pior. Por vontade deles, os direitos conseguidos e as liberdades conquistadas nunca voltariam atrás.

Se pudessem escolher, a burka continuaria a ser uma opção e não uma obrigação. Se pudessem escolher, as mulheres que trabalham e circulam em liberdade pretenderiam certamente continuar a fazê-lo. Se pudessem escolher, as crianças do sexo feminino que frequentam a escola não desejariam ser agora fechadas em casa, a partir dos doze anos de idade.



Ao contrário do que Biden deixa subentender, boa parte da população afegã está disposta a lutar por uma sociedade diferente, sem o horizonte limitado e radical da tradição talibã. Há muitos e felizes exemplos dessa vontade. Nem se trata de impor aos afegãos um regime democrático, ignorando a vontade das pessoas e da sociedade. Essa é de resto, muitas vezes, a tentação americana: exportar um regime ‘made in America’, sem cuidar da cultura local.

Ninguém deseja que os Estados Unidos se substituam às escolhas que aos afegãos competem fazer. O problema é que a retirada internacional, tal como foi executada, inviabiliza essa capacidade de escolha. E a preparação da retirada, a que talvez se deva chamar abandono, não teve em conta esse aspeto crucial. A saída das forças internacionais volta a fechar as alternativas para milhares e milhares de pessoas.

Compreende-se por isso a frustração e o pavor de muitos afegãos que pressentem já o regresso a um futuro de violência bipolar: de um lado o poder das tribos e do outro, o radicalismo talibã. Muitos tentarão a fuga para o exterior, como última esperança de construírem um futuro diferente. Receio que a resposta da Europa aos refugiados não esteja à altura do momento que se vive. Já da Grã-Bretanha chegam sinais de disponibilidade para acolher refugiados do Afeganistão, encurralados por decisões que não puderam tomar.

De facto, os afegãos não ficaram agora entregues a eles próprios. Foram, isso sim, abandonados às mãos daqueles a quem nunca faltam as armas. E essa é a grande derrota para o mundo dito civilizado.



Os senhores da guerra do Afeganistão são seguramente bons militares e muito experientes na guerrilha que se converteu aliás no seu modo de vida. Porém, a quantidade de armamento que exibem e algum bem sofisticado, não nasce de geração espontânea.

Todas aquelas armas são compradas ou trocadas, fornecidas e negociadas, com dinheiro do tráfico do ópio ou com outros financiamentos. Sem quebrar as rotas do submundo do tráfico de droga e de armamento não faltarão armas no Afeganistão. Poderá haver fome, doenças, miséria, mas as armas não faltam. Nunca faltaram. Nem no Afeganistão nem em muitas outras paragens do mundo, convertidas em ‘terras de ninguém’, pela fraqueza dos Estados e pela cumplicidade moral da comunidade internacional. O terrorismo tem horror ao vazio e ocupa tais territórios, transformando-os em santuários das suas atividades.

O fracasso do Afeganistão acentua a necessidade de explicações, para um processo de retirada que o presidente Joe Biden continua a defender. Ainda no passado dia 8 de julho, numa conferência de imprensa para a qual me chamaram a atenção, o mesmo Biden elogiava o legado americano no Afeganistão. Quase tudo eram rosas. No terreno ficariam as forças de segurança afegãs: milhares de homens bem treinados, preparados e superequipados, com as últimas maravilhas da tecnologia militar.

Agora, com aquilo que se passou aos olhos do mundo, Biden não volta atrás e defende-se com uma narrativa indefensável. O discurso otimista do mês passado contrasta, no tom e na substância, com a justificação com a qual se apresentou ao mundo esta semana, sem direito a perguntas dos jornalistas, para justificar o desastre da retirada.

Angela Merkel (quem mais?...) fez o inverso. Longe da arrogância de Biden, a chanceler alemã reconheceu os erros de avaliação sobre a situação no Afeganistão, a começar pelos seus. A humildade não está ao alcance de todos. Vamos ter saudades dela.


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