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No futuro, os fósseis da pandemia vão falar por nós. Que história vão contar?

07 abr, 2021 - 09:30 • Fábio Monteiro

Daqui a 100 mil anos, “vai existir uma camada de resíduos da pandemia no arquivo fóssil”, diz David Farrier, autor de “Pegadas – Em Busca dos Fósseis Futuros”, à Renascença. Máscaras descartáveis e luvas de plástico vão ser “mumificadas” em aterros; a redução das emissões de dióxido de carbono de 2020 ficará gravada nos calotes polares. Como ficará a humanidade na fotografia?

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Até ao início dos anos 70, o arqueólogo William L. Rathje, doutorado em Harvard e docente na Universidade do Arizona, fez carreira a procurar pistas da civilização Maia em Cozumel, uma ilha mexicana no meio do mar das Caraíbas. Contudo, algures pelo caminho, decidiu mudar de objeto de estudo. Em vez peneirar restos, pedras e areias, à procura de vestígios milenares, longe do seu país natal, começou a escavar, juntamente com um grupo de alunos, o aterro da cidade de Tucson, no estado do Arizona. “O Projeto do Lixo”, assim foi batizado em 1973, abriu uma caixa de Pandora social e criou mesmo um novo campo de estudo académico, a “Garbology” (“Lixologia”, numa tradução livre.) (Em 1976, a revista Time dedicou um longo artigo – com o título sugestivo “A Verdade no Lixo” - ao projeto do arqueólogo, que continuou, até 2012, ano em que faleceu, a trabalhar sobre o mesmo tema.)

Com base nos resíduos escavados, utilizando as mesmas técnicas que usava para interpretar culturas ancestrais, Rathje elaborou vários artigos científicos. E eis algumas das conclusões a que chegou: os habitantes de Tucson desperdiçavam cerca de 10% da comida que compravam; e as famílias de classe média eram aquelas que mais esbanjavam bens. Mas a surpresa do arqueólogo não se limitou ao tipo de resíduos, mas também ao estado de decomposição dos mesmos: encontrou hamburgers, por exemplo, como que preservados no vácuo. Apesar de terem mais de 30 anos, em alguns casos, ainda pareciam quase comestíveis, viria a contar.

Daqui 100 mil anos (ou porventura mais), quando futuros arqueólogos andarem a escavar os escombros das nossas cidades atuais e dos resíduos que enviamos para aterro, muito provavelmente não vão encontrar hamburgers – esses já se terão decomposto há muito -, mas é bem provável que “encontrem pilhas de máscaras, luvas de plástico, ou, pelo menos, decalques destes bens descartáveis no solo”, por outras palavras, “fósseis da pandemia”, diz David Farrier, autor do livro “Pegadas – Em Busca dos Fósseis Futuros” (ed. Elsinore), em declarações à Renascença.

Os aterros modernos “são desenhados para evitar fugas”, “criam as condições perfeitas para mumificar os conteúdos”, por isso o professor universitário está confiante que, quem quer que venha a explorar esses filões, vá encontrar “uma camada de resíduos da pandemia no futuro arquivo fóssil”.

“É provável que em algumas partes do mundo existam aterros que criem esse tipo de vestígio duradouro”, diz, lembrando que há ainda outras dimensões que podem, mais tarde, dar pistas para decifrar o momento: o caso do dióxido de carbono.

De acordo com um estudo publicado em março na revista científica Nature, as emissões de gases de efeito de estufa (GEE), como o dióxido de carbono, caíram globalmente 6,4% em 2020. “Essa descida de carbono na atmosfera vai ficar gravada em bolhas nos calotes de gelo”, nota.

“Teoricamente, vai ser possível tirar uma amostra de um aterro, onde tenhas uma luva de plástico, uma máscara fossilizada, e ligar isso aos registos atmosféricos. Perceber que houve uma súbita mudança de comportamento na forma como as pessoas interagiam. Subentender que sentiram que tinham que se proteger contra o toque das outras”, explica.

Resíduos, do outro lado do espelho

Dizer que os resíduos que produzimos são um espelho de quem somos é uma tautologia, mas imaginar que esses mesmos resíduos vão ser o nosso espelho, a nossa memória, é pensar noutra dimensão. Um dia, alguém poderá muito bem escavar “traços de plástico fossilizado, restos das nossas cidades ou resíduos nucleares. Imagino todos estes vestígios como histórias”, explica Farrier.

“Que tipo de mitos podem emergir no futuro, se uma nova civilização, distante da nossa no tempo, possa descobrir os restos de uma cidade como Xangai, ou possa encontrar o nosso lixo nuclear e o trabalho a que nos demos para que permanecesse enterrado?” Com os nossos resíduos, “estamos a contar uma história para o futuro. Os nossos vestígios ainda vão cá estar, muito depois de desaparecermos, e vão dizer algo sobre quem éramos”.

“Pegadas” é um livro sobre o “tempo profundo”, as marcas que os seres humanos foram deixando no planeta, ao longo de milhares de anos, e o impacto das alterações climáticas. David Farrier está sempre a lançar as questões: “No futuro, que história é que queremos que os nossos antepassados contem sobre nós? Que fósseis vamos deixar?”

Se estas perguntas já eram prementes há um ano, quando livro foi lançado internacionalmente – em Portugal, chegou às livrarias em outubro -, enquanto se atravessa uma pandemia são ainda mais, admite o professor de Literatura na Universidade de Edimburgo e especialista em questões ambientais. “Temos de tomar decisões. Temos de trabalhar para criar o mundo que queremos. Ou alguém irá fazer essas escolhas por nós”, avisa.

Segundo o escritor, “o que é urgente não está assim tão distante.” O dióxido de carbono que estamos a emitir hoje vai permanecer na atmosfera talvez até 100 mil anos. “Pode aparecer um aspeto muito distante da crise climática, que irá desenrolar-se no espaço temporal de milhares de anos, mas é uma preocupação muito presente e urgente. Temos a responsabilidade de deixar um planeta habitável para aqueles que nos vão suceder”, diz.

David Farrier usa o músculo da ficção científica para conjurar cenários, reconstruir o passado e imaginar o futuro. As obras de J. G. Ballard, autor de “Arranha-Céus”, servem de inspiração quando escreve sobre o futuro de alguns mega edifícios; o desaparecer de “Frankenstein”, de Mary Shelley, ilustram a memória que fica gravada no gelo dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera; “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, são o mote para pensar urbes assentes em terrenos pouco ajustados como Xangai.

“Foi uma grande inspiração para pensar sobre os futuros vestígios das nossas cidades. Calvino conjura espaços fantásticos, muitos dos quais têm paralelo com o mundo atual, e que nos podem ajudar, por exemplo, a tornar as nossas cidades resilientes às alterações climáticas”, conta.

Plástico invisível

Em tempos de pandemia, o plástico é tanto um elemento salva-vidas (literalmente) como uma bigorna atada aos pés de gerações futuras. Máscaras cirúrgicas, luvas de plástico, passaram a ser bens essências para sobreviver, controlar o vírus. “Muito cedo, logo depois do início do confinamento [em março do ano passado], comecei a ver luvas de plástico e máscaras em todo o lado, no chão, uma espécie de emblema deste momento”, diz David Farrier.

Com esta imagem em mente, o professor de Literatura na Universidade de Edimburgo e especialista em questões ambientais, escreveu para a revista Orion, em setembro do ano passado, o ensaio “Hand in Glove” (“Assentar como uma luva”, tradução livre para português.), uma reflexão sobre as origens do plástico e toque. “O plástico medeia tanta da nossa interação com o ambiente, com o mundo. Dá-nos a falsa promessa que o mundo está na nossa ponta dos dedos, que pode ser dobrado, limpo e perfeito”, diz.

O plástico promete “ações livres de consequências”, o que é falso. O plástico descartado – que não vai para aterro ou inceneração - irá decompor-se, poluir os oceanos, e entrar na cadeia alimentar.

“As luvas vão circular no ambiente durante muitos, muitos anos, após serem descartadas. Criando vários problemas e perigos, toxicidade.” De acordo com um estudo da Universidade de Newcastle, na Austrália, de 2019, cada pessoa ingere em média cerca de cinco gramas de plástico por semana - por via de alimentos, como peixe, em particular -, o equivalente a um cartão de crédito.

Além do plástico, outro bote salva-vidas da pandemia foi a internet, conta Farrier. “Foi uma bênção, seria errado apenas ver as coisas de forma negativa.” Mas o professor universitário lembra: cerca de três por cento das emissões mundiais de dióxido de carbono mundiais estão diretamente associadas aos servidores, empresas, que permitem a internet funcionar. “Não precisamos de viver sem internet, quero acreditar, para atingirmos a neutralidade carbónica. Será possível recorrer às energias renováveis”, diz.

Em todo o caso, conforme lembra Farrier no livro, muitos dos centros cibernéticos mais ativos encontram-se em cidades costeiras como Nova Iorque, Londres, Amsterdão e Tóquio: “a conetividade da internet depende da segurança de cidades que estão precariamente perto do nível do mar ou em terreno reclamado ao mar. À medida que a nossa busca por mais dados contribuiu para o aquecimento do planeta, as cheias que representam o fim de um arquivo também prenunciam a eliminação de outro”.

Um portal para depois da pandemia

No ano passado, a escritora indiana Arundhati Roy escreveu um ensaio no jornal “Financial Times” em que descrevia a pandemia como “um portal” para algo diferente, uma realidade mais consciente das alterações climáticas. Farrier tem esse texto em mente quando diz: “Estamos a atravessar algo, mas temos a oportunidade de dizer o que novo será.”

“Até agora, não temos estado a contar uma história em que fiquemos bem na fotografia. E as futuras gerações vão julgar-nos. Mas não tem que terminar dessa forma”, afirma. Dito isto, não é garantido que o futuro seja apocalíptico, acrescenta.

A pandemia irá deixar marcas no planeta – disso, não há dúvida. “Mas o que acho mais interessante é o legado que pode deixar em nós. Pode ser esta a centelha que todos vamos sentir para mudar, como vivemos, como comemos, como viajamos. O que vai ter várias ramificações.” É possível fazer escolhas melhores, “sermos antepassados melhores”. Para tal, talvez possamos pensar e tratar a memória como algumas tribos aborígenes fazem na Austrália, onde o Último Máximo Glacial, há 21 mil anos, ainda faz parte da narrativa oral.

Os aborígenes pensam a terra como um “legado de origem perpétua de vida”, “uma corrente intergeracional”. No Ocidente, vivemos “na imersão do tempo industrializado, do capitalismo, é tudo sobre a coisa nova, a coisa seguinte”. E foi assim que nos “colocámos num beco sem saída temporal”.

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  • Bruno
    08 abr, 2021 aqui 06:09
    Acho graça ao optimismo destas pessoas por acharem que daqui a 100 mil anos haverá arqueólogos a escavar o lixo. Daqui a 100 mil anos a Humanidade estará extinta se continuar a comportar-se como tem feito até agora.

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