Relatório Fundação AIS

Como lida um padre com violência contra católicos? "Tem de ser corajoso, é ser luz para muita gente"

21 nov, 2024 - 06:00 • Alexandre Abrantes Neves

Relatório da Fundação AIS mostra que a violência contra cristãos está a aumentar em muitos países africanos. A Renascença falou com um padre do Burkina Faso, que pede mais ajuda à Europa para responder a um cenário "desolador", onde metade das dioceses do país é alvo de ataques frequentes.

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O que faz um padre no meio de violência sobre católicos? "Tem de ser corajoso, é ser uma luz para muita gente"
Ouça aqui a reportagem da Renascença. Foto: D.R.

Afirma ter nascido na segunda ou terceira geração de cristãos no Burkina Faso, descobriu que queria ser padre sentado na cadeira de acólito e, agora, diz que esta vocação “ainda faz mais sentido” para combater a onda de violência. Jacques Arzouma Sawadogo foi ordenado padre faz esta semana 16 anos.

Desde 2022, Jacques vive em Frankfurt, na Alemanha, onde está a braços com uma especialização em Teologia Dogmática. As visitas à terra natal já não são tão frequentes, mas em todas depara-se com o cenário que é denunciado pelo relatório da Fundação Ajuda a Igreja que Sofre (AIS): um aumento da violência contra cristãos.

Mais de metade das dioceses são alvo de perseguição e um décimo da população já se viu obrigada a mudar-se. Eles chegam e matam as pessoas, raptam-nas, violam-nas também”, conta à Renascença, à margem da apresentação dos resultados do relatório da Fundação AIS.

A maioria dos ataques é feita por jihadistas, que se deslocaram do Médio Oriente para África e se aproveitam da instabilidade política e da vulnerabilidade das instituições: “Ameaçam as pessoas que não são muçulmanas a tornarem-se agressivas, forçam-nas a converterem-se.

Mas nem toda a população muçulmana é assim: “Não podemos cair em algo caricatural (….) só os extremistas são assim.” E, em alguns pontos do Burkina Faso, a boa convivência entre religiões não é a exceção.

“Há famílias que têm membros muçulmanos e católicos. Nas escolas católicas, a maioria dos alunos são muçulmanos. Quando vamos a enfermarias e hospitais católicos, temos muçulmanos a trabalhar lá. De forma geral, havia uma boa atmosfera lá”, esclarece o sacerdote que, por ter estudado Teologia no Gana, tem um “termo de comparação” com o resto de África.

Perante as conclusões do relatório da Fundação AIS, o padre Jacques Arzouma Sawadogo apela à Europa para reforçar a ajuda. O primeiro passo é “rezar, rezar, rezar” pelos cristãos violentados e também apelar à adesão e à doação de fundos a organizações como a Fundação AIS (a campanha de natal deste ano reverte a favor dos católicos no Burkina Faso).

As soluções não podem, contudo, depender apenas de espiritualidade e da solidariedade - o poder político também é chamado a intervir, diz quem sente o problema na pele.

“É preciso que também suportem os nossos governos [de África]. Não digam que são militarizados – não são. Precisam do apoio da Europa para ultrapassar esta situação, o mais rapidamente possível”, apela, deixando claro que, enquanto o apoio não chegar ao terreno, a Igreja vai continuar a lutar pela segurança das populações e das comunidades católicas.

O meu bispo já nos diz para não viajarmos para lá vestidos de padres, porque somos alvos (…). Tem de se ser corajoso para se ser padre. É ser uma luz para muitas pessoas porque olham para nós e nos admiram os padres por permanecermos nesses locais”, remata nestas declarações à Renascença.

Europa também em "crise de valores, principalmente na liberdade religiosa"

Apesar de considerar que a Europa devia aumentar a ajuda pública ao desenvolvimento para reduzir as taxas de violência em África, Jorge Bacelar Gouveia, professor catedrático em Direito, reconhece que o momento atual é “péssimo” devido à guerra na Ucrânia, para onde se estão a realocar verbas”.

Mas se na parte financeira há desculpa, na questão dos valores não há. Os países europeus “não podem querer incutir valores (…) quando não estão de boa saúde nisso”. E aqui é o Reino Unido que se destaca.

O meu bispo já nos diz para não viajarmos para lá vestidos de padres, proque somos alvos (...) mas nem todos os muçulmanos nos atacam, só os extremistas

"Há uma legislação que no Reino Unido proíbe as pessoas de rezarem silêncio junto às clínicas de aborto. Por enquanto, é apenas uma coima, mas o novo governo trabalhista quer mesmo criminalizar. Rezar em silêncio junto a clínicas de aborto, como se se fosse incriminar o pensamento ou oração”, critica, momentos antes de apresentar o relatório da Fundação AIS no Museu do Design (MUDE), em Lisboa, esta quarta-feira.

Em cada país, o caso muda de figura. No Burkina Faso, a preocupação é com os estados autoritários (como a Rússia, que se está “a reposicionar no panorama geopolíico e se pode aproveitar de presas fáceis”), que se “camuflam em organizações não governamentais (ONG).

Já em Moçambique, o pior é “o azar e a coincidência” de a instabilidade política se juntar ao “problema que se vive há muitos anos” em Cabo Delgado com os “ataques terroristas do jihadismo radical”.

Em qualquer um dos casos, o momento agora é de “combater o laicismo dominante e que não é burro” e distinguir quais são as “novas técnicas de perseguição, disfarçadas de neutralidade”.

O ideal seria “unir todas as religiões para protegerem a sua existência”. Mas perante essa impossibilidade, a primeira estratégia de autodefesa passa por mostrar que “não é justo” justificar ataques a católicos com a colonização passada de muitos países africanos.

“Muitas vezes, disfarça-se esse ataque como sendo um ataque à potência colonizadora. Há um certo aproveitamento também, de dizer que o ataque ao cristianismo é, no fundo, aquilo que se pode justificar entre aspas por ser um ataque a um certo neocolonialismo que as potências europeias estão a fazer nele dentro deste país. O que é um erro. (…) Este é, sim, um ataque que se faz aos valores universais”.

Por estar alinhado com esta perspetiva, e por Lisboa ter sido construíd através do “diálogo, presença multicontinental e diversidade”, o vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Filipe Anacoreta Correia, marcou presença na apresentação do relatório da AIS. O autarca compara a liberdade religiosa com outros problemas para mostrar como também o poder local deve ser chamado a intervir.

“Como sociedade, não podemos achar que o problema da perseguição religiosa só tem a ver com os religiosos, tal como nós não achamos que a perseguição de pessoas que são violentadas na sua liberdade e autodeterminação sexual. Nós não achamos que esse é um problema só deles. Ora também no caso da perseguição religiosa: temos de perceber que nos ofende a todos”, conclui.

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