02 ago, 2024 - 06:00 • Ana Catarina André
Há um ano, o cónego Francisco Crespo e a comunidade do Alto da Serafina, em Campolide, recebiam a visita do Papa Francisco, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em Lisboa. Para muitos moradores, foi um sinal de que as suas condições de vida poderiam mudar - a zona tem inúmeras casas degradadas, problemas de tráfico de droga e pobreza.
Doze meses depois, “continuou tudo na mesma”, constata o cónego Francisco Crespo, pároco da Igreja de São Vicente Paulo. “Há um problema enorme de habitação. [Há] situações dramáticas, casebres sem condições nenhumas”, refere.
Em entrevista à Renascença, o sacerdote afirma que, na sequência da JMJ, as autoridades que acompanhavam o Papa, entre as quais representantes da autarquia, prometeram “habitações dignas” para os moradores. “Pouco a pouco, parece que à força de insistir e de pedir, sempre estão a dar qualquer coisa. Agora, a renovação total de que o bairro precisa, isso nem pensar”, diz.
O que aumentou mesmo - sublinha - foi o número de pessoas que recorre ao Centro Social e Paroquial de São Vicente de Paulo. “Os casos agora vêm em catadupa.”
Um ano depois, o que é que a visita do Papa Francisco trouxe ao bairro da Serafina?
Para nós, foi uma alegria ter recebido aqui o Santo Padre. Ele também se sentiu muito feliz por nos ter visitado e tomado consciência daquilo que vivemos aqui, no Centro Social Paroquial de São Vicente de Paulo. Quando chegou a Roma, mandou-me uma carta simpática. Ficou impressionado, porque viu um bocado daquilo que também, como padre e como bispo, tinha na Argentina.
Todos devemos deixar uma marca. Foram as palavras que sublinhou muitas vezes: “todos, todos, todos, temos de deixar uma marca na vida, e aqui eu encontrei uma marca”. A visita do Papa, não só ao bairro da Liberdade, da Serafina, mas a Lisboa e a Portugal, deixa sempre um ar fresco de consolação e, ao mesmo tempo, de coragem para continuarmos o nosso trabalho. Não é que venha resolver tudo.
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Que outros impactos teve a visita?
O nosso país, a nossa cidade, estão cheios de tantos problemas, sobretudo no que diz respeito aos idosos, que nos vêm bater à porta aqui de todo lado. “Na Serafina está o lá padre Crespo. Foi lá o Papa. Ele pode ajudar”. Ontem, veio aqui uma senhora que mal se podia mexer, coitadinha. "Ah, disseram-me que o senhor era muito bom. O Papa esteve cá. O meu irmão foi despejado da Almirante Reis e foi para a minha casa. Tem 84 anos, já não funciona bem da cabeça, mas nós não temos espaço na nossa casa, em São Domingos de Rana". Disse-lhe: “Não posso dizer que posso ajudar hoje; sou capaz de poder ajudar amanhã ou depois, quando tiver alguma vaga”. Queria dar-me dinheiro, depois um perfume, mas eu não me deixo comprar. “Fique descansada que eu vou fazer todos os possíveis para dar resposta ao seu irmão.”
São casos que acontecem muitas vezes. Há muita gente em situações dramáticas. Os meus colegas quando sabem de alguma coisa, dizem: "Ah, vá ter com o padre Crespo, que ele resolve o problema". Mas eu não posso resolver os problemas todos. Temos aqui um lar para 120 idosos. Enquanto eles vivem – tenho aqui gente com 101 e 102 anos – não tenho lugar para outros. A nossa instituição, ao modo do São Vicente Paulo, e ao modo também do coração do Papa, é uma porta aberta para todos. Ninguém sai daqui sem resposta. Venha de onde vier.
[Lembro-me de] outro caso que veio do Bairro Padre Cruz, também enviado por um colega. A senhora é cancerosa. O marido anda à procura de trabalho. Têm uma criança de 3 anos, outra de 5. Enfiaram-se aqui no bairro, na Serafina, sem nada, nada. Vêm dos PALOP, da Guiné. A senhora, por mais que queira dar-lhe trabalho, não posso, porque ela é cancerosa. O marido não consegue encontrar trabalho. A única coisa que podemos fazer é apoiar, dando alimentação e dando resposta às crianças.
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Com a visita do Papa, aumentaram, portanto, os pedidos de ajuda à instituição.
É isso. Os casos agora vêm em catadupa. As pessoas sabem que aqui existe uma resposta. O Papa veio cá, deu-nos a sua bênção. Ficou aqui marcada a sua passagem. Deu mais propaganda à instituição, e mais nos veio exigir, para que nós vivamos, de facto, aquilo que é a ação socio-caritativa da Igreja, que é pôr em prática a caridade. Procurar responder e corresponder na medida em que as pessoas vão tendo necessidades.
Só podemos contar com as nossas forças. O Estado tem as suas contas, a sua forma de contribuir para as instituições. Já tivemos, graças a Deus, bons benfeitores que me ajudaram na construção desta obra, mas agora cada vez há menos. Às vezes, pedimos o contributo da família [dos utentes] – só podemos cobrar aquilo que vem da pensão – e dizem-nos que não podem. Hoje toda a gente está a lutar para se manter.
Parece que à força de insistir e de pedir, sempre estão a dar qualquer coisa. Agora, a renovação total de que o bairro precisa, isso nem pensar
Com esta propaganda que o Papa deu à instituição, o Governo e as autarquias disponibilizaram-se para ajudar na altura? Isso concretizou-se?
Houve duas ou três pessoas que colaboraram com mais alguma coisa. Agora, a nível económico, não houve mais nada. O Bairro da Liberdade é todo clandestino. Há um problema enorme de habitação. As televisões filmaram situações dramáticas, casebres sem condições nenhumas para as pessoas viverem. Continuou tudo na mesma. É claro que, na altura, quem acompanhava o Papa, desde o presidente da Câmara a uma outra deputada, nos disseram: “Vamos tratar do assunto; fique descansado. Vamos renovar tudo, para dar habitações dignas e condignas a esta gente”. Foram promessas que acabaram.
O Governo mudou, vieram outras pessoas que não conhecem [a situação]. Temos feito reuniões, encontros, de quando em quando, com a junta da freguesia e com a câmara. Temos apresentado estas situações. Pouco a pouco, vamos vendo aquilo que se pode fazer, fazendo o levantamento das situações, da habitação, dos esgotos. Pouco a pouco, parece que à força de insistir e de pedir, sempre estão a dar qualquer coisa. Agora, a renovação total de que o bairro precisa, isso nem pensar.
É a clandestinidade o grande problema?
Isto é clandestino. Os senhorios querem somas dramáticas para poder vender o espaço onde têm a sua habitação. Aqui não há lei nenhuma que impeça que as pessoas possam pedir aquilo que quiserem para arrendar as casas, mesmo não havendo licença da câmara. As pessoas estão a viver mal. Há muita gente no mesmo espaço, pequeno, sem condições, às vezes sem casa de banho. Quando alguém encontra solução fora, o espaço não fica vazio, porque imediatamente vêm outros ocupá-lo.
O nosso grande drama é ver resultados negativos, quando fizemos todo o esforço para que tivessem alguma coisa de positivo
A visita do Papa contribuiu para a mobilização das pessoas no sentido de quererem transformar o contexto em que estão?
As pessoas ficaram com uma imagem e com um desejo: vem o Papa e o Estado vai ajudar-nos. Foi uma ilusão que, com o tempo, se esvaneceu. Quando houve uma reabilitação de barracas, aqui há anos, pensei que o barro ficasse incluído. Mas não. Não é terreno camarário. Não sendo terreno camarário, nem o Estado, nem a câmara têm poder para intervir. Portanto, é tudo clandestino, mas é tudo de proprietários. Os proprietários querem enriquecer.
Era necessário que houvesse um subsídio extraordinário vindo não sei de onde, do PRR ou de quem venha, que subsidiasse todos estes proprietários e os desalojasse, para depois se ir construindo, pouco a pouco, novas habitações. Mas não há boa vontade política, nem há desejo, certamente, para se meterem a fazer alguma coisa destas. Por isso, esta situação dá-nos bastante tristeza, porque o nosso trabalho, muitas vezes, não tem resultado positivo. As crianças, os jovens estão connosco, mas quando deixamos de ter mão neles, e ficam entregues a si ou às famílias, alguns vão por outros caminhos.
É também uma questão de educação?
As crianças têm creche e jardim de infância connosco. Depois, entram no primeiro ciclo, têm de sair daqui para apanhar um autocarro às sete da manhã e vão para a [Escola Básica Mestre] Querubim, ali em Campolide. Ficam lá até às seis da tarde e voltam a casa por volta das seis e meia, sete horas. Falta uma escola que dê resposta a isto, pelo menos no primeiro ciclo. No segundo ciclo, vão ainda vão para mais longe, para a Marquesa da Alorna. As crianças fazem esse sacrifício, esse esforço, todos os dias.
Quem é que os acompanha? Alguns pais são analfabetos. Outros não se importam muito. Falta dedicação, formação, apoio familiar, tanta coisa. Algumas pessoas saem daqui e vão para outro lado – muitas vezes é melhor. Muitos ficam aqui e depois podem enveredar pelo caminho da droga, da delinquência e coisas parecidas. O nosso grande drama é ver resultados negativos, quando fizemos todo o esforço para que tivessem alguma coisa de positivo. No domingo passado, um comentador da SIC disse que a percentagem de adolescentes e jovens na delinquência está a aumentar. Estava a ver isso, aqui, na minha paróquia, concretamente aqui no Bairro da Liberdade.
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Gostava muito de pagar mais alto aos nossos funcionários. É uma injustiça
Nos últimos tempos, há cada vez mais instituições sufocadas do ponto de vista financeiro, na sequência do aumento do custo de vida e dos apoios limitados por parte do Estado. Passa-se o mesmo neste centro?
Estou aqui desde 1977. Fui construindo, fazendo, alargando, apoiado pelo Estado, pelos benfeitores, pela própria comunidade. Não devo nada a ninguém. Não obstante todas as fragilidades e as dificuldades que temos a nível dos utentes, que podem muitas vezes contribuir com pouco, continuamos a ter possibilidades de aguentar e de pagar. Claro: gostava muito de pagar mais alto aos nossos funcionários, aqueles que mais ficam sacrificados no meio disto tudo. Às vezes vêm de longe para manter pouco mais do que o ordenado no mínimo nacional. É pouco demais. É uma injustiça. Há alguns ecos de que este governo tem intenções de fazer um levantamento concreto do custo real dos utentes nas instituições, para a partir daí apoiar mais, ver se aquilo que está a apoiar é suficiente ou não é. Até agora, tem havido um subsídio que nunca chega àquilo que necessitamos. Para uma instituição poder sobreviver, tem de ter pelo menos 50% de apoio do Estado. Com os meus colaboradores, estudamos concretamente cada situação, e temos aguentado a barca. Agora, o que pesa nas instituições é o pessoal. Há uma injustiça. E depois, sobretudo, está a ideia de que o Estado nunca pensa nas instituições, na ação social do país. Já estive à frente da CNIS [Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade] e sei muito bem o que a casa gasta. É preciso lutar para termos alguma coisa para as instituições. Não é justo. Nós estamos a fazer aquilo que o Estado havia de fazer. Só que o Estado o que faz, faz mal. Veja a Misericórdia de Lisboa. Tinha a ação social toda de Lisboa. Agora zero.
É uma questão de gestão?
Não sei. Uma empresa tem de ter coração. Quem se mete neste tipo de instituições não pode simplesmente pensar no lucro, nem no dinheiro, venha do Estado, dos utentes ou de quem quer que seja. Como diz o Papa, temos de ter coração. Eu coloco-me sempre no papel daquele que vai bater à minha porta. Precisa de comer? Nós damos-lhe de comer. Querem apoio em casa para o pai ou para a mãe? Apoiamos. Se calhar muitas instituições não folgam assim, mas para a instituição folgar, também trabalho.
Estou aqui desde manhã, das 9h00 até às 17h00 – qualquer coisa que acontece é aqui que vêm bater à porta. É preciso alguém que se dedique totalmente. Achei que, como padre, além do serviço religioso que tenho de fazer na paróquia – batizados, casamentos, pregação, catequese, missas –, o meu trabalho é de caridade, de ajuda ao próximo. Quando me ordenei, a única frase que escolhi foi "Por Amor”. Aqui procuro pôr em prática aquilo que foi o meu ideal, aquilo que projetei no dia em que me consagrei ao Senhor.