23 nov, 2024 - 23:35 • Alexandre Abrantes Neves
Ainda a marcha estava longe de arrancar, quando surgiu a primeira imagem que prometia capitalizar atenções. Três máscaras a imitar focinhos de vacas entraram na praça Paiva Couceiro, em Lisboa, e, estivessem ali montados holofotes, tinham-se virado todos para elas. Fotografias, perguntas de jornalistas, abraços de outros manifestantes, palmas por ali estarem.
Um deles é Emanuel Dias, membro da organização Animal Save Portugal, dedicada a defender os direitos dos animais. Daí, o uniforme para o protesto deste sábado – crise climática e hábitos alimentares. “Isto está tudo ligado”, assinala à Renascença.
“A carne também está a matar o nosso planeta e a carne bovina não só tem uma pegada [carbónica] completamente catastrófica, como os cientistas mostram que é um produto cancerígeno”, defende. Pede uma mudança de hábitos, que vá desde a boca até à mente: “Não precisamos já de consumir carne em qualquer sentido, nem em termos éticos. Estamos a contribuir a extinção de espécies em massa”.
Associou-se ao protesto “Parar enquanto podemos” do coletivo Climáximo por estar contra todos os que “continuam a negar” as alterações climáticas: “Não veem que estamos em novembro, devíamos estar a entrar no inverno e no frio e muitos estamos aqui de t-shirt?”.
De t-shirt e pincel na mão, às três da tarde, hora em que devia arrancar a marcha Rua Morais Soares abaixo, os manifestantes ainda não chegam ao limiar da centena. Vão-se ultimando os cartazes (num deles, cola-se a imagem de Luís Montenegro de quando foi atingido com tinta verde), afinam-se os tambores (tocados por uma banda farda a cor-de-rosa) e aproveita-se o teste do sistema de som para fazer um pedido: “boa tarde a todos, vamos fazer o nosso primeiro plenário, juntem-se os delegados”.
COP29
Ao abrigo desta proposta, as nações desenvolvidas (...)
Primeiro na Paiva Couceiro, depois no Chile, as duas praças lisboetas foram palco de “assembleias populares”, onde representantes de pequenos grupos a participar no protesto votaram e decidiram novas ações de luta.
Orlando Cohen não participa diretamente em nenhuma, mas vai seguindo atentamente os passos de quem está aos comandos do protesto e acenando positivamente com a cabeça sempre que se liga um megafone. Não estar presente na manifestação nem sequer esteve em cima da mesa – “óbvio que vim”. Porquê? Para “gritar” como é hora de acabar com os combustíveis fósseis, até nos pequenos hábitos.
“O petróleo e esse ‘business’ todo do pessoal que anda aí. Às vezes, nem é por mal: o pessoal tem um carro e nem se apercebe (…) Toda a gente gosta muito de ir fazer viagens em cruzeiros, por exemplo. Sabem que é uma poluição enorme, mas não deixam de fazer: ‘ah, não nos vai afetar agora a nós’”, critica, enquanto atrás de si começam a ser levantados os primeiros cartazes onde se pode ler: “Esta normalidade não nos serve”.
E por não os servir, rapidamente fecham a assembleia popular e demoram pouco a arrancar com o desfile. Já a sombra provocada pelas copas das árvores da Praça Paiva Couceiro estava ultrapassada, quando as colunas de som lançam o tiro de partida habitual dos protestos climáticos: o tema “Bella Ciao”, numa versão alterada para uma mensagem climática. É hora de zarpar, com a praça do Chile já no ponto de fuga.
Uma hora nos preparativos, outra hora a descer. A marcha pela rua Morais Soares foi bem mais calma do que outros protestos organizados pela Climáximo: não houve vidros partidos nem tinta arremessada contra montras e todo o spray utilizado foi para os cartazes artesanais que pintavam o pelotão de cerca de 100 pessoas.
Também na chegada à praça do Chile, e apesar dos cânticos ecoados contra a polícia, não houve registo de tensão maior com as cinco dezenas de elementos do Corpo Especial da Polícia de Segurança Pública – e o bloqueio de mais de duas horas ao trânsito acabou interrompido por decisão dos ativistas.
Antes disso, os gritos ritmados, como “abaixo a indústria fóssil que vai cair, que vai cair”, trouxeram, ao longo do percurso, alguns curiosos às janelas e às portas das lojas. Muitos deles foram os primeiros a serem interpelados por membros do Climáximo para se juntarem ao protesto, durante as duas pausas da marcha.
Nestes momentos, e sentados no chão, os manifestantes ouviam discursos ou testemunhos por áudio de pessoas de todo o mundo “cujas vidas foram fustigadas pelas alterações climáticas”. A culpa aqui é atribuída rapidamente: “os governos e as empresas que declararam guerra à Humanidade e ao planeta”, como diz uma das faixas da manifestação. E a COP 29 não promete ajudar.
“Há 30 anos que vemos conferências do clima que estão manchadas, desenhadas para falhar”, aponta Inês Teles, uma das porta-vozes do Climáximo. Critica os governos “do mundo ocidental” que marcam presença na COP 29, mas que “se sentam à mesa com milhares de lobistas das indústrias fósseis” e que permitem que “desastres climáticos extremos como as cheias de Valência se tornem inescapáveis”.
O objetivo da ação de sábado é criar uma “mobiliza(...)
Esta ativista acha, por isso, “normal” que os países do Sul Global tenham abandonado a sala das negociações durante a tarde.
“Vai ser uma declaração final injusta. É necessário um plano concreto que permita fazer a transição necessária, assente na justiça social e para travar o colapso climático. Essas medidas passam por desmantelar a indústria fóssil, medidas para atingir a naturalidade carbónica até 2030, medidas que assegurem a segurança de todas as pessoas perante os desastres climáticos”, enumera.
A posição sobre a cimeira do clima parece ser consensual entre os manifestantes: “nem consigo falar disso sem me rir”, confessa António Cunha. Vegan “há muitos anos”, diz já “fazer tudo o que pode fazer” e que agora é hora de “todos os outros” se mobilizarem para a defesa do clima. Mas também é “franco”: isso não valerá de nada se o problema não for atacado “por quem manda”.
“A primeira coisa a fazer para combater as alterações climáticas é reestruturar tudo aquilo que nós sabemos sobre transportes, sobre a indústria da aviação. Se nós não lidarmos com estes assuntos, tudo o resto não interessa: a reciclagem, o lixo… Tudo isso é irrelevante”, sublinha. E por se recusar a que a luta de tantos e tantas “volte a cair na irrelevância”, António segue Morais Soares abaixo, em plenos pulmões: “agora, agora, agora que sim nos veem”.