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Orçamento do Estado 2024

Modelo de jovem que o Governo apresentou existe? Muito pouco, mostram os dados

11 out, 2023 - 18:00 • Salomé Esteves

É trabalhador-estudante, mora em Lisboa, tem 22 anos e recebe 1100 euros brutos. Este jovem tem direito a todos os apoios do Estado para os jovens, como o IRS Jovem, o Porta 65 e o passe gratuito. Mas será que ele existe? E será que, existindo, tem condições para viver?

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Na apresentação do Orçamento do Estado para 2024, Fernando Medina, ministro das Finanças, deu como exemplo um caso-tipo de um jovem português que beneficiará de todas as medidas que o Governo preparou para os jovens.

No ecrã estava esquematizado o quadro de um jovem adulto de 22 anos que recebe um salário mensal de 1100 euros brutos. Como este é o seu primeiro emprego, este jovem está isento de IRS, poupando um total de 1417 euros por ano.

Mora em Lisboa, num apartamento com uma renda mensal de 600 euros, que lhe permite receber o apoio do Porta 65. Além do trabalho a tempo inteiro, é estudante de mestrado e recebe o apoio à formação de 697 euros pela licenciatura.

Como ainda não fez 23 anos e é estudante, também tem direito ao passe gratuito para os transportes.

Mas este jovem existe? Ou melhor: este jovem pode ser dado como um exemplo representativo do caso-tipo de um jovem português que beneficiará destas medidas?

Qual a probabilidade de este jovem existir?

Em 2022, segundo dados do INE, residiam em Portugal pouco mais de 108 mil jovens com 21 anos de idade e pouco mais de 117 mil jovens com 22 anos de idade. Este ano, ainda que as contas não estejam feitas, porque o ano ainda não acabou, pode estimar-se que este número seja semelhante e que ronde os 110 mil.

Um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), de 2021, concluiu que 14% dos jovens entre os 15 e os 34 anos recebiam um ordenado entre os 951 e os 1158 euros. Mas que a grande fatia, 72%, recebia menos de 950 euros.

O mesmo estudo concluiu que apenas 5% dos jovens dos 15 aos 34 anos moram sozinhos. Tendo em conta que, segundo o INE, cerca de dois milhões e 200 mil jovens deste grupo etário residiam em Portugal em 2021, estes 5% representam pouco mais de 110 mil jovens, distribuídos pelo continente e pelas ilhas.

Ainda que o estudo não especifique quantos jovens de 22 anos moravam sozinhos em 2021, a representatividade desta idade na faixa etária, cerca de 5%, pode indicar que este número rondaria os cinco mil.

Mas, assumindo que este jovem se inclui simultaneamente nestes 14% com salário entre 951 e os 1158 euros e nos 5% que moram sozinhos, para beneficiar do apoio máximo do Porta 65 e receber 50% do valor da renda, ele teria de arrendar um apartamento antes de se candidatar ao apoio. Segundo a apresentação do Governo, o jovem reside no município de Lisboa e paga 600 euros por mês de renda.

No dia da apresentação do Orçamento do Estado para 2024, a Renascença fez uma pesquisa em quatro portais de arrendamento imobiliário e encontrou apenas dois anúncios que cumpriam o requisito.

O primeiro é uma subcave, na Estrela, sem cozinha e com uma única janela. Nesta casa, há apenas um micro-ondas e a cama é um colchão no chão. Já o segundo é um T0+1 em Alfama, com 23 m2.

Ambos os apartamentos custam 500 euros por mês. As rendas dos restantes anúncios excediam os 700 euros.

Ainda que o jovem exista, consegue pagar as despesas?

Este jovem de 22 anos, recém-licenciado, aufere um salário mensal de 1100 euros brutos. Estando ao abrigo da medida do IRS Jovem no primeiro ano, está isento de IRS, mas ainda tem de fazer retenção na fonte. Além disso, deve contribuições à Segurança Social, de 11%. Estas despesas perfazem, respetivamente, 122 euros e 121 euros.

Com o apoio do Porta 65, o jovem recebe 50% do valor da renda no 1.º ano. Isto quer dizer que vai receber do Estado 300 euros por mês, mas que terá sempre de transferir 600 euros ao senhorio. Este apoio é sempre dado ao inquilino.

Mas se este jovem não estiver no primeiro ano do apoio, a comparticipação diminui. Ou seja, o valor que vai receber do Porta 65 pode variar entre os 60 e os 240 euros. Entre os 24 e os 60 meses do programa, a renda pode ir dos 360 aos 540 euros, dependendo da pontuação que lhe for atribuída.

Acrescentando as despesas com água, luz, gás, internet e televisão, a soma facilmente atinge os 100 euros mensais. Pode ainda acrescentar-se aqui a mensalidade do telemóvel, que poderá rondar os 15 euros.

Para ter direito ao passe dos transportes gratuito, com o qual poupa 23 euros, este jovem tem de ser estudante. Segundo a apresentação do OE2024, ele está inscrito num mestrado.

Tendo em conta uma propina anual de 1500 euros de uma faculdade pública, o jovem terá ainda uma despesa de 150 euros mensais, durante dez meses do ano. Mas a esta mensalidade podem juntar-se outros emolumentos, como o seguro escolar ou outras despesas administrativas que não estão incluídas nas propinas.

Por outro lado, por ser licenciado e trabalhar em Portugal, este jovem tem direito a um apoio correspondente ao valor total anual da propina numa faculdade pública, atualmente de 697 euros, que se traduz num abono de 69,7 euros por mês.

E faltam ainda os custos com alimentação. Para uma dieta de 2200 calorias diárias, essencial para um jovem adulto de 22 anos, o custo mensal, ajustado aos preços de hoje, pode chegar aos 200 euros por mês.

Cumpridas todas as despesas essenciais, sobram a este jovem 161,7 euros para as despesas não essenciais ou imprevistas.

Mas, se este jovem não receber os 300 euros do primeiro ano do Porta 65, mas 180 euros que correspondem a um apoio de 30% da renda que se recebe no segundo ano, as despesas essenciais subiriam 120 euros, reduzindo o orçamento do jovem para eventualidades para 41,7 euros.

Tendo em conta os interesses de um jovem comum, podem acrescentar-se outras despesas regulares como ginásio, cerca de 20 euros por mês, ou serviços de streaming de vídeo, música ou videojogos, a partir de quatro euros por mês por serviço.

Além disso, podem surgir outros gastos relacionados com atividades, lazer ou viagens, caso o jovem não seja natural de Lisboa. Podem existir, ainda, gastos imprevistos com saúde (consultas e exames) ou educação (impressões de trabalhos e inscrições em exames de melhoria, por exemplo).

Se a estas despesas se acrescentar algum tipo de conta ou plano de poupança para o futuro, a margem que sobra ao jovem é praticamente nula.

Este jovem nunca come fora, entre outras improbabilidades

Este cenário apresentado pela Renascença é otimista. Parte do princípio que este jovem é saudável e não tem necessidade de fazer tratamentos, de receber acompanhamento ou de tomar medicação.

Este cenário também não prevê o uso regular de veículo próprio e não inclui todas as despesas associadas.

O orçamento para alimentação foi calculado para refeições feitas exclusivamente em casa e não contabiliza o preço de refeições no local de trabalho, na universidade ou em qualquer outro local.

A proprina do mestrado foi calculada consoante o valor que o Governo vai aplicar na medida do apoio à formação para o mestrado, 1500 euros. Mas nem todas as faculdades públicas têm propinas iguais para os seus mestrados e nem todas praticam os mesmos valores no primeiro e no segundo ano do curso. O que quer dizer que o valor da proprina deste jovem poderia ser mais alto.

Por fim, depreende-se que o jovem recebe o apoio do Porta 65 no primeiro ano, ou seja, no valor mais alto.

Contas feitas, é muito estreita a margem para um jovem conseguir viver sozinho em Lisboa, com uma remuneração de 1100 euros brutos, tendo em conta todas as despesas fixas e eventualidades. E é ainda menos provável que haja uma percentagem representativa de jovens a encaixar em todas as variáveis do perfil apresentado como exemplo esta terça-feira por Fernando Medina.

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