08 jul, 2021 - 16:00 • Joana Gonçalves
As novas variantes do SARS-CoV-2 alteraram a meta estabelecida da imunidade de grupo e com ela a necessidade de vacinar os mais jovens.
Em entrevista à Renascença, Manuel Carmo Gomes, membro da Comissão Técnica de Vacinação da DGS, adianta que a vacinação contra a Covid-19 em idades pediátricas “tem sido objeto de discussão”, e não está ainda garantido que arranque em agosto –data apontada pela ministra da Sáude na passada segunda-feira.
O virologista Pedro Simas reforça a segurança e eficácia comprovadas do fármaco e defende que “vacinar as crianças é uma responsabilidade parental e cívica”.
No centro da discussão está uma questão ética que divide cientistas. A Renascença conversou com os dois especialistas para compreender o que está em causa.
Antes de qualquer discussão ética sobre o tema, importa clarificar que há já uma vacina aprovada pela Agência Europeia do Medicamento (EMA, na sigla inglesa), para administração em crianças com mais de 12 anos.
“Entre os 12 e os 18 anos já está aprovada uma vacina que é comprovadamente segura e eficaz: a da Pfizer”, confirma o epidemiologista Manuel Carmo Gomes. “Outras se seguirão. A Moderna já terminou ensaios em jovens entre os 12 e os 18 anos e a AstraZeneca está também a trabalhar nisso. Quase todas as farmacêuticas mais avançadas já estão a fazer ensaios em crianças, até já abaixo dos 12 anos”, acrescenta.
Também o virologista Pedro Simas partilha a confiança na segurança e eficácia do fármaco. “Do ponto de vista da virologia, patogénese e ciência, não há inconveniente nenhum, em termos de saúde, de vacinar uma criança contra a Covid-19. As vacinas são extremamente seguras”.
70% de portugueses imunizados já não são suficientes para interromper totalmente a circulação do SARS-CoV-2 em Portugal. A célebre meta da imunidade de grupo esticou e está agora perto dos 85%, adianta Manuel Carmo Gomes.
De acordo com o especialista, as variantes Alpha e Delta, com origem no Reino Unido e na Índia, respetivamente, são as reponsáveis pela “subida do valor percentual da população que tem de ser vacinada para atingirmos a imunidade de grupo”.
O R0, isto é, o número de novos casos gerados a partir de um único confirmado, está na base deste cálculo, como explica à Renascença o epidemiologista. “Diariamente ouvimos falar no Rt, que corresponde ao R0 quando a população adota medidas de proteção e já tem algum grau de imunização. O R0 é o Rt do vírus quando chegou a Portugal, numa altura em que tínhamos a guarda em baixo”, esclarece.
Pandemia
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O R0 inicialmente estimado em Portugal fixava-se entre 2,1 e 2,5. Com base nesse valor, os especialistas chegaram aos 70% de imunização necessária para controlar a circulação do vírus. É aqui que entram as novas variantes, mais contagiosas e, por isso, com um R0 mais alto.
“Quando nós fizemos as contas, chegámos à conclusão de que, neste momento, o R0 deste vírus que está cá seria de qualquer coisa entre 5 e 6, ou seja, já está no dobro”, conta Carmo Gomes. Depois de recalculada a imunidade de grupo com base no novo R0, “obtivemos valores que estão na ordem dos 85% de pessoas que teriam de estar inteiramente imunizadas contra qualquer tipo de infeção, mesmo que não causasse doença”.
Como a vacina não é 100% eficaz, para atingirmos 85% de pessoas totalmente protegidas, teremos que vacinar, pelo menos, 90% da população. É por este motivo que se coloca agora a questão da vacinação abaixo dos 18 anos. “Se nós ambicionamos interromper totalmente a circulação do vírus, é isso que é a imunidade de grupo, temos de equacionar a possibilidade de vacinar as crianças, senão não vamos lá”, afirma o professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
“O interesse que existe em proteger a população como um todo da circulação do vírus e tentar eliminá-lo exige a vacinação das crianças”, defende.
A vacinação contra a Covid-19 em idades pediátricas “tem sido objeto de discussão” na comunidade científica. Segundo Carmo Gomes, o tema “levanta questões éticas”.
Em causa está o facto de a vacinação contra o SARS-CoV-2 em jovens entre os 12 e 18 anos ser possivelmente mais benéfica para a sociedade do que para a criança que recebe o fármaco.
“Normalmente, quando administramos um medicamento ou um tratamento a uma pessoa estamos a pensar no seu interesse. Ou é para curar a pessoa ou é para protegê-la individualmente de qualquer coisa que pode ser perigosa para ela”, começa por explicar o especialista, que integra a Comissão Técnica de Vacinação da DGS. “É isso, por exemplo, que acontece nas vacinas da infância, porque estamos a administrar vacinas contra doenças que se a criança contrair são de facto bastante perigosas para ela – como uma poliomielite, uma hepatite, uma meningite”.
Neste caso, não é bem assim, diz. “Nós estamos a administrar vacinas a pessoas que, embora não tenham risco zero, têm risco muito diminuto de contrair infeção. Isso é o que está num dos lados da balança. Seria estar a administrar um medicamento que não é claro que seja do interesse individual da pessoa. Do outro lado da balança temos o bem comum, o interesse coletivo, o bem maior”.
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Já para Pedro Simas, a resposta é clara. “Não sou especialista em ética, mas há uma coisa que eu sei, que é o bem comum. Não é por serem jovens ou deixarem de ser jovens, a prioridade é a meta de vacinação”, diz. “Vacinar as crianças é uma responsabilidade parental e cívica”, afirma.
O virologista adianta, contudo, que “se conseguíssemos vacinar 100% da população acima dos 40 anos, teríamos 70% da população vacinada e não precisaríamos de ir muito mais abaixo dessa faixa etária”.
As novas variantes e a resistência de alguns portugueses em aderir à vacinação pesam nestas contas.
Para contrariar a baixa adesão das gerações mais jovens à vacinação, alguns países adotaram soluções criativas. Na Grécia, o Governo vai oferecer aos jovens vacinados um cartão pré-pago no valor de 150 euros, que podem ser gastos em viagens, alojamento, cinemas, teatros e museus.
No Chipre, os mais novos vão receber um subsídio para as férias de verão depois de vacinados. E o estado norte-americano do Ohio adotou um sistema de lotaria entre os residentes que passem pelo centro de vacinação. Serão oferecidos um milhão de dólares a cinco pessoas vacinadas.
Por cá, não estão planeadas estratégias semelhantes e campanhas. Na opinião de Carmo Gomes, campanhas de incentivo deste género “abrem um precedente que, se for levado nas suas consequência, pode culminar em discussões sobre o que vamos dar ao jovens para não consumirem álcool em excesso ou aos fumadores para deixarem de fumar”.
“Sou absolutamente contra. Mesmo nos EUA não existe evidência de que isso tenha diminuído a hesitação vacinal. Um estudo publicado há cerca de uma semana comparou o efeito de uma lotaria introduzida no estado do Ohio e não encontraram mudanças estatisticamente significativas na adesão da vacinação por parte dos jovens, comparativamente com outros estados”, explica.
Apesar de não haver ainda garantias de que Portugal consiga obter a imunidade grupo, o especialista acredita que também é cedo para “dizer que não conseguimos. Ninguém tem ainda a certeza sobre isso”.
“Os melhores dados que temos até agora sugerem que com 90% a 95% das pessoas vacinadas, que é uma coisa que está ao alcance de Portugal – nem todos os países conseguem isso, mas Portugal consegue se nos empenharmos – ainda está no horizonte a possibilidade de imunidade de grupo e, portanto, interromper a circulação do vírus no país”.