03 mar, 2021 - 11:30 • Fábio Monteiro
Um país desfigurado, mais pobre, emagrecido à força: este o quadro traçado pelo relatório “Portugal, Balanço Social 2020 – Um cenário do país e dos efeitos da pandemia”, elaborado pelos economistas Susana Peralta, Bruno P. Carvalho e Mariana Esteves, do Nova SBE Economics for Policy Knowledge Center, divulgado esta quarta-feira.
A mortalidade aumentou; a pressão sobre o SNS levou ao cancelamento de consultas e cirurgias; a saúde mental dos portugueses “sofreu consideravelmente”; o fecho das escolas deixou “cicatrizes” nos alunos e professores; a trabalho invadiu a esfera privada dos portugueses; o endividamento das empresas e famílias portuguesas aumentou.
E o relatório, comissariado pela Nova SBE, a Fundação “la Caixa” e o BPI, analisa apenas a primeira fase da pandemia de Covid-19, ou seja, o período de março a setembro de 2020.
No ano passado, com o ensino a distância, o acesso a computador e internet tornaram-se ferramentas essenciais. E trouxeram à superfície outros problemas. No ano letivo 2017/2018, 71% dos alunos sem Serviços de Ação Social Escolar (SASE) tinham acesso às duas ferramentas, mas apenas 62% dos alunos SASE A (escalão a que pertencem os alunos de famílias mais pobres) tinham acesso a um computador e 52% acesso à internet.
Para complementar o ensino à distância, o Governo lançou, a 20 de abril do ano passado, o programa televisivo Estudo em Casa, em sinal aberto na RTP Memória.
Dados da GfK Portugal mostram que as audiências do canal aumentaram 60% em termos homólogos.
Ora, o aumento das audiências do canal coincide com o lançamento do programa, mas é entre as classes sociais mais ricas (A e B) que o aumento é maior. De acordo com o relatório, este aumento é menos expressivo nas classes mais pobres (D e E) porque estas já viam mais televisão a priori — em média, a classe E (a mais baixa de todos) viu 156 minutos de televisão por dia em 2019, enquanto as classes A e B viram apenas cerca de 100 minutos.
O lançamento do Estudo em Casa, em abril de 2020, levou a classe A a passar, em média, três vezes mais tempo a ver a RTP Memória, face a abril de 2019.
“A evidência sugere que a telescola foi sobretudo utilizada como instrumento de aprendizagem pelas classes mais favorecidas; isto poderá ter acontecido por influência das famílias ou por estratégias letivas implementadas pelos professores nas escolas frequentadas por crianças de meios mais ricos”, aponta o relatório.
"Quando se põe as crianças em casa, a fazer o estudo em casa, essa potenciação do contexto familiar é amplificada, porque o tempo de contacto com a escola está diminuído e está amputado por uma relação digital na qual muitas crianças, especialmente as mais novas, são absolutamente incompetentes ou bastante incompetentes, independentemente dos bens materiais que as famílias tenham”, explicou a economista Susana Peralta.
Na apresentação do relatório “Balanço Social 2020” aos jornalistas, os economistas foram questionados se o rendimento de um indivíduo poderia ser utilizado como critério para vacinação prioritária, tendo em conta que os profissionais que auferem menos salários são aqueles que, na maioria dos casos, tiveram de continuar no regime de trabalho presencial.
Susana Peralta disse que, "quando muito", o relatório poderia servir para sinalizar que a ideia que vacinar professores primeiro – algo que tem sido discutido na praça pública nos últimos dias - faz sentido. "O nosso relatório fala bastante do problema das desigualdades na educação e dos riscos daquilo que aconteceu, do descalabro que foi a educação, a escola em casa, no ano passado. E ainda não temos dados para analisar isso cabalmente, porque precisamos ainda que o ministério vá aferir as competências das crianças, para percebermos o atraso", disse.
A economista lembrou que "a ministra da Saúde disse ontem que iriam ponderar colocar os professores nos grupos prioritários de vacinação e, nesse sentido, diria que o nosso relatório pode ser uma boa base para politicamente o Governo decidir nesse sentido. Ou seja, tem ali evidência que lhe permite dizer que isso pode fazer sentido, porque, de facto, é muito importante rapidamente colocar as crianças de volta na escola presencial".
A mortalidade em Portugal, sem surpresa, aumentou em 2020. O mês de julho foi o com maior aumento em termos homólogos, com 10.430 óbitos em 2020, face a 8252 em 2019. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), entre março e setembro de 2020, apenas 28% do total de óbitos se deveu à Covid-19.
A pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde levou ao cancelamento de consultas e cirurgias. Em abril, 1,22 milhões de consultas e 135,8 milhares de cirurgias em ambulatório foram adiadas. Um inquérito da Nova SBE/Visão, realizado no ano passado, reflete esta realidade: 90% dos inquiridos reportaram ter adiado consultas ou alterado para não presencial.
Relatório
Relatório da Ordem dos Médicos e da Associação Por(...)
A saúde mental dos portugueses também “sofreu consideravelmente”, principalmente a dos mais pobres, os menos escolarizados e os desempregados, segundo o inquérito “Diários de uma Pandemia”, realizado pelo ISPUP e pelo INESC TEC.
No segundo trimestre de 2020, o INE adicionou o módulo “Trabalho a partir de casa”, ao rotineiro Inquérito ao Emprego.
Segundo o questionário, 23,1% da população empregada trabalhou sempre ou quase sempre em casa no período de referência. Destes, 91,2% fizeram-no devido à pandemia Covid-19.
A área metropolitana de Lisboa foi a região do país em que se observou uma maior proporção de pessoas que trabalharam sempre ou quase sempre em casa (36,0%). Esta percentagem foi mais elevada entre as pessoas com ensino superior (53,8%).
Realizado no ano passado, o inquérito “Impacto Social da Pandemia – estudo ICS/ISCTE Covid-19” mostra que apenas 8% dos respondentes com escolaridade até ao 3º ciclo ficaram em teletrabalho, face a 56% dos que tinham concluído o ensino superior.
De acordo com o inquérito Barómetro Covid-19, do período de 21 março a 8 maio, da Escola Nacional de Saúde Pública, 54% das pessoas com rendimentos inferiores a 650€ têm de se deslocar para o local de trabalho, enquanto que 75% daqueles que ganham mais de 2500€ ficaram em teletrabalho.
O IEFP registou o número máximo de inscritos relativamente ao período homólogo em junho, com 381 mil indivíduos inscritos nos centros de emprego, face a 275 mil em 2019. “O aumento do número de inscritos nos centros de emprego ao longo do ano de 2020, em contraste com o período homólogo, evidencia o impacto que a pandemia teve no emprego”, nota o relatório.
As mulheres continuam a ser a maioria das inscrições nos centros de emprego. Durante 2020, inscreveram-se, em média, 555 homens e 710 mulheres, por mês, nos centros de emprego.
Entre janeiro e junho, inscreveram-se 709 mulheres por mês, face a 603 em 2019. Para os homens, a taxa de inscrição é, em média, cerca de 76% da das mulheres em 2019 e cerca de 78% em 2020.
Em termos homólogos, o aumento foi mais forte entre os mais jovens (menos de 25 anos), com 1,3 vezes mais inscrições do que em 2019, e entre as pessoas com escolaridade até ao 12º ano o aumento foi ainda maior: 1,4 vezes.
O nível de endividamento das empresas e das famílias portuguesas aumentou durante os meses de confinamento. O endividamento das empresas subiu para 262 milhões de euros em agosto, um crescimento de 2,4% face ao mesmo mês do ano passado e de cerca de 4 milhões de euros face a março de 2020.
O aumento do endividamento dos particulares reflete-se maioritariamente no crédito à habitação, que passa de 97 milhões de euros em março para 98 milhões de euros em agosto, um crescimento de 0,8% em termos homólogos.