A escola à distância chegou, mas os meios ainda não

Nicole baixou as notas, Rodrigo perdeu o comboio da leitura

08 fev, 2021 - 06:40 • Inês Rocha

Quando a pandemia chegou, em março do ano passado, escolas e famílias continuaram as aulas, à distância, com base do “desenrasque”: aulas por telemóvel, materiais didáticos enviados por correio ou até professores que abriram a porta de casa para receber trabalhos de alunos. Quase 11 meses depois, o ensino à distância está de volta, mas pouca coisa mudou.

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Esta segunda-feira, às 8h10, Nicole, 11 anos, vai sentar-se à mesa da cozinha de sua casa, no bairro da Pasteleira Nova no Porto, para a primeira aula da manhã. A professora estará atrás do ecrã partido do velho telemóvel da mãe, Carla. É o único equipamento eletrónico que têm em casa.

Foi assim no último confinamento e voltará a ser assim agora. Apesar de estar no escalão B da Ação Social Escolar (ASE) e de, por isso, ter direito a um dos 435 mil computadores já comprados pelo Ministério da Educação, o equipamento ainda não chegou.

A irmã de Nicole, Leonor, tem quatro anos e um atraso no desenvolvimento. Como o telemóvel da mãe não estica, a criança perdeu já algumas das terapias a que tem direito – Leonor é acompanhada por uma terapeuta da fala e uma terapeuta ocupacional.

Carla Silva assume que o último confinamento foi prejudicial para as filhas – Nicole baixou algumas notas e nem sempre conseguia acompanhar as aulas.

Para fazer os trabalhos, a mãe passava as fichas para um caderno, à mão. Depois de a filha as preencher, tirava fotografia e enviava à professora.

Carla é cozinheira num infantário, que agora está fechado. Está em casa, em lay off, e o dinheiro não chega para comprar equipamentos novos – nem chega para arranjar o visor e a câmara do único telemóvel que têm. Para já, terão de se desenrascar assim.

A mãe de Nicole e Leonor aponta críticas ao Ministério da Educação, que no último ano prometeu que todos os alunos teriam acesso a um computador, com prioridade para os alunos apoiados pela ASE.

“Uma coisa que se promete devia-se cumprir. Neste momento, se os meteram em casa, eles têm de ter condições para poder estudar. Coisa que não acontece”, afirma.

Segundo a associação de pais do agrupamento de escolas Leonardo Coimbra-Filho, no Porto, num universo de 540 alunos, aproximadamente 150 estão à espera do computador cedido pelo Ministério da Educação para acompanharem as aulas.

Crianças sentem-se “inferiorizadas”

Cátia Ramalho, presidente da associação de pais de uma das escolas do agrupamento, a Escola da Pasteleira, tem três filhos – todos no escalão A da ASE – e apenas um computador em casa, que o filho Diego ganhou com o Prémio de Mérito Escolar Rumo à Excelência, em 2019.

As duas filhas, do quarto e oitavo ano de escolaridade, também terão de acompanhar as aulas pelo telemóvel. Uma situação difícil, mas não tão difícil como a de outros colegas.

“Há colegas da minha filha que estão no oitavo ano e nem acesso a um telemóvel com câmara têm. Não se sabe como vão ter as aulas. Eles podem ir à escola levantar o material, mas mesmo assim acho que acaba por ser uma discriminação”, comenta a presidente da associação de pais.

Cátia lembra que, além do atraso na matéria dada, a diferenciação pode ter impacto na auto-estima das crianças. “Não estou a dizer que é maldade das crianças, mas é normal elas comentarem "eu tenho um computador, posso estar na aula, e tu não estiveste...” é normalíssimo, agora que a criança se sente inferiorizada, sente”.

Sem acompanhamento, Rodrigo “ficou para trás” no ultimo confinamento

Ao contrário do último confinamento, a partir de segunda-feira Rodrigo, sete anos, irá finalmente ter acesso a um computador.

É uma das 38 crianças do agrupamento Engenheiro Fernando Pinto de Oliveira, em Leça da Palmeira, a voltar fisicamente à escola. Lá, poderá usar um dos computadores para acompanhar as aulas online.

Uma “regalia” a que terá direito por a mãe ser assistente operacional no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos - o que lhe permite usufruir da escola de acolhimento para trabalhadores essenciais.

Mas no último confinamento as coisas foram muito diferentes. Sem acesso a qualquer equipamento eletrónico ou a internet em casa dos avós, onde passava os dias, não teve possibilidade de acompanhar as aulas síncronas dadas pela professora.

Rodrigo estava no primeiro ano, ou seja, a aprender a ler e a escrever.

Para que o processo de aprendizagem não parasse completamente, foi preciso improvisar. “A professora enviava por e-mail os trabalhos e alguém imprimia, porque eu também não tinha impressora. Imprimiam e ele fazia os trabalhos em casa”, conta a mãe, Sandra Costa. Outras vezes, a professora enviava os materiais para a escola, que os imprimia e enviava por correio para casa do aluno.

Para haver algum acompanhamento, a professora deu mesmo a sua morada à família e era a avó da criança - pessoa de risco por idade e por doença - que se deslocava a casa da docente para lhe entregar os trabalhos feitos.

“Foi uma ideia da professora, entre nós trocamos os números e chegamos a essa conclusão - como não morávamos muito longe, foi a única solução. Senão só veria os trabalhos quando começassem as aulas”, conta Sandra Costa.

“Pedi à minha mãe para ir levar os trabalhos, para ela fazer a correção”. Ainda assim, a criança “andava sempre 10 passos atrás em relação à matéria dada”.

Eugénia Serrano, professora de Rodrigo, diz que ainda lhe custa falar da situação do aluno, “muito difícil para todos”.

“Tanto os professores como os familiares sofreram e continuam a sofrer com esta situação”, diz à Renascença.

A acrescentar às dificuldades de aprendizagem, à hiperatividade e défice de atenção da criança, mãe e professora assumem que este período sem acompanhamento fez com que Rodrigo ficasse para trás, em relação aos colegas.

Sandra colocou o filho numa sala de estudo durante o verão, para tentar recuperar o tempo perdido, mas não foi suficiente.

“Ele lê algumas palavras mas não consegue ler o normal para a idade dele, para o segundo ano. Parte dos coleguinhas dele já leem bem e ele tem mesmo muita dificuldade. No ano passado era o arranque, o básico. Foi isso que lhe faltou. Se tivesse tido mais ajuda, acho que poderia acompanhar os colegas”, diz a mãe.

Faltam 42 computadores para os alunos do agrupamento

Se Sandra não trabalhasse na área da saúde, estaria tudo na mesma para o filho. Por motivos familiares, Rodrigo este ano não está inscrito na Ação Social Escolar, apesar de depender do salário mínimo da mãe - o que significa que não tem direito a um dos computadores adquiridos pelo Governo.

Mesmo para os alunos com direito a apoio, o diretor do agrupamento Engenheiro Fernando Pinto de Oliveira, Jorge Sequeira, diz não ter recebido ainda qualquer computador do Ministério da Educação.

Os computadores que a escola, até agora, conseguiu emprestar aos alunos foram cedidos pela Câmara Municipal de Matosinhos e resolveram apenas os problemas dos alunos do quarto ao nono ano de escolaridade.

Faltam computadores para 42 alunos inscritos na Ação Social Escolar - fora aqueles que não têm direito, mas não têm possibilidades financeiras para comprar um computador, como Rodrigo.

Governo prometeu 1,2 milhões de equipamentos, mas só 100 mil chegaram às escolas

Os computadores agora reclamados pelos encarregados de educação foram prometidos pelo Governo no último ano.

Em abril, António Costa garantiu mesmo que no ano letivo seguinte estaria “assegurada a universalidade do acesso às plataformas digitais para todos os alunos do ensino básico e secundário”.

O programa Escola Digital prevê a compra de 1,2 milhões equipamentos, com o objetivo de chegar a “todos os alunos e docentes das escolas públicas”. O investimento estipulado para o programa, que visa a “universalização da escola digital”, é de 400 milhões de euros.

Mas para já, o Governo distribuiu apenas 100 mil kits, compostos por um computador portátil (de características distintas consoante o nível de escolaridade), auscultadores com microfone, uma mochila, um hotspot de internet e um cartão SIM.

Em dezembro, o ministério da Educação adquiriu mais 335 mil equipamentos, que serão distribuídos pelas escolas “durante o segundo período”, com prioridade para os alunos inscritos na ASE. E na última quinta-feira, o Governo aprovou a compra de mais 15 mil equipamentos.

O ministério não avança uma data mais concreta para a distribuição dos computadores. O segundo período termina a 26 de março de 2021.


Governo “está à espera que passe a pandemia para distribuir computadores”, critica encarregada de educação

Aos 12 anos, Dinis está no sétimo ano, na escola secundária Almeida Garrett, em Gaia. A mãe, Catarina Simões, é arquiteta e está em teletrabalho, tal como o marido. Os dois computadores que há em casa são necessários para o casal trabalhar.

No último confinamento, Dinis acompanhou as aulas num tablet com teclado que serviu para o efeito, mas não foi o ideal. O equipamento “tinha pouca capacidade de armazenamento”, não dava para instalar muito software e deu alguns problemas.

Catarina admite ter ponderado comprar um computador para o filho, mas foi desincentivada pela escola. “Disseram-nos que o ministério irá atribuir a todos os alunos, não só os pertencentes aos escalões da ASE, um portátil”.

Essa informação fez o casal desistir de fazer o investimento. “No meu caso, chegámos à conclusão de que era uma grande asneira estar a gastar imenso dinheiro, cerca de 500 euros, porque por menos não se consegue comprar nada de jeito, para daqui a uns meses - não sabemos quantos - estar encostado”.

“Nos dias que correm ainda é mais difícil” fazer um investimento desses, diz Catarina. “Uma pessoa quando faz uma aquisição dessas não é para um ano. É para quatro, cinco, seis anos”.

A mãe de Dinis diz mesmo que foi informada pela escola de que os computadores emprestados pelo ministério seriam de uso obrigatório. No entanto, os pais podem prescindir do empréstimo, assinando um documento que afirme que não estão interessados em receber o computador.

Para já, Dinis vai continuar a utilizar as ferramentas que tem. “Infelizmente o governo está à espera que passe a pandemia para distribuir computadores”, critica a encarregada de educação.

Catarina admite que a sua situação não estará entre as mais difíceis, mas identifica uma “falta de gestão tremenda” por parte do Governo. “Chegámos ao segundo confinamento, as escolas fecharam e continua tudo igual. Entre um confinamento e outro devíamos ter aprendido alguma coisa”, remata.

“Estamos órfãos de ministro da Educação”

Marta Cruz, professora de físico-química na escola secundária Rodrigues de Freitas, no Porto, considera que “faltou tudo” às escolas no que diz respeito a apoio por parte do ministério da Educação, para minimizar os danos causados pela pandemia.

“Nós praticamente estamos órfãos de ministro da Educação”, afirma, em entrevista à Renascença, a professora, que faz parte do Sindicato dos Professores do Norte.

A docente identifica, mais uma vez, “uma enorme falta de planeamento” por parte do Governo em relação ao ensino à distância que agora se inicia e lembra que os alunos prejudicados no primeiro confinamento vão voltar a ser prejudicados devido ao atraso nos computadores.

Os constrangimentos, tal como em março, vão continuar, para famílias e professores. E a criatividade para os ultrapassar também.

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