Reportagem Regresso às aulas

A escola (também) passou a ser um mundo onde é difícil exprimir emoções

Reportagem Regresso às aulas

A escola (também) passou a ser um mundo onde é difícil exprimir emoções

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18 set, 2020 - 20:09 • João Carlos Malta , Joana Bourgard (fotografia)

No novo mundo Covid, os sentimentos têm de ser balanceados com as regras sanitárias. Nas escolas isso ganha maior relevância pela fatia enorme da população que as frequenta, quase 1,5 milhões de pessoas. Numa escola de São Domingos de Rana, em Cascais, os alunos aprendem a viver num contexto em que o toque deixou de ser natural e passou a ser (em norma) reprimido.

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A menina está desorientada. As lágrimas enxaguam-lhe os olhos. A assistente operacional (assim se chamam os auxiliares nas escolas) aproxima-se dela. A menor não encontra a irmã, a quem queria desejar “boas aulas”. Um amigo aproxima-se e diz à menina: “Não chores”. À palavra de apoio, segue-se o automático abraço aconchegante. Mas, o gesto é logo reprimido pela funcionária da escola Frei Gonçalo de Azevedo, em Cascais. “Vocês não se podem agarrar, pá!”, exclama.

Esta sexta-feira foi o dia de regresso a todo o gás naquela escola da freguesia de São Domingues de Rana, onde mais de 1.400 alunos do 5º ao 12º ano, voltam às aulas depois de uma longa ausência física. Mais tarde, Ângela Braganto, a assistente operacional, vai explicar à Renascença que se sentiu o coração pequeno quando viu a menor em pranto. “Com esta situação, não conseguimos acarinhá-los e é difícil. Tanto que ainda estou um bocado comovida”, afiança.

Depois, lança um lamento ao novo (a)normal: “Não nos podermos tocar é muito difícil”. Em cada contato com os alunos, e sempre que sente que há proximidade a mais, tenta avisá-los que “não se podem tocar e temos de nos afastar”.

Numa altura em que o país passa por um novo aumento de infeções, com uma média diária consistentemente acima dos 600 casos, o começo das aulas ganha nova relevância assim como a tentativa de nelas se cumprirem as normas de saúde determinadas pela DGS.

Um pouco mais tarde, Ana Cristina, aluna do 12º ano, que frequenta o curso de apoio à infância há-de dizer sobre os afetos que é complicado adaptarem-se a regras que são o inverso da educação que tiveram. Nasceram a abraçar os amigos.

Temos de saber que temos de estar distanciados, não podemos tirar a máscara, exceto se for para comer. É toda uma nova preparação psicológica que temos de ter”, reflete.

Ela diz que quando lhe vem à cabeça a ideia de dar um abraço ou um beijinho, “tenta evitar ao máximo”. Mas há vezes em que simplesmente isso não pode acontecer.

Quando há um amigo que está num momento em que precisa de um abraço, nós não recusamos”, explica.

O diretor daquele agrupamento de escolas, David Sousa, olha para os primeiros dias e diz-se surpreendido. Os alunos, garante, têm uma capacidade de adaptação extraordinária. Esteve a tentar perceber se havia grandes manifestações físicas de afeto, mas não foi isso que viu. “Estive a olhar especificamente para essa situação, e vi um comportamento normal, a alegria de se verem, mas não houve grandes exuberâncias, mesmo que haja um abraço ou outro”, argumenta.

TPC feito, mas a teoria é uma coisa e a prática outra

Um pouco antes, às 8h00, os carros começam a fazer fila à entrada do largo que dá acesso àquela escola. A chuva é parceira neste regresso às aulas. Sentado ainda no carro, à espera que sejam horas de a filha entrar, está Fernando Viana. Aos 45 anos, diz que a sua forma de ser não o faz estar “muito preocupado”.

Garante que fez o trabalho de casa com a filha Maria, de 13 anos. “Dei-lhe as recomendações normais: usar a máscara, higienizar as mãos, e ter atenção aos contatos com os colegas”, enumera. No entanto, sabe que a teoria é uma coisa, mas que a prática muitas vezes não a cumpre. “Sabemos que é complicado. Encontram amigas que já não viam há muito tempo, e vão-se abraçar. É muito difícil de dizer como vai correr”, sublinha.

Ao lado, a adolescente anui. Apesar de toda a polémica que tem rodeado a retoma das aulas presenciais, também ela está muito tranquila. “Está tudo normal, só o uso da máscara é que é um pouco desconfortável. De resto, tudo normal. São as mesmas turmas e o horário igual”, garante, acrescentado que a pandemia não é preocupação.

Isto num dia em que o primeiro-ministro, António Costa, previu que o país atinja os mil casos de Covid-19, já na próxima semana.

Mais à frente, quase junto à porta da escola, encontramos Roberta Duarte. A mãe brasileira, de 38 anos, vê o pequeno Pedro a dar os primeiros passos na nova escola. Mistura algum temor com uma esperança inabalável.

“Estamos no meio de uma pandemia em que as pessoas se estão a adaptar, estão a entender como tudo está a funcionar. Mas vai dar tudo certo”, crê.

Roberta afirma que em casa já há algum tempo que está a preparar este dia, “para que ele possa entender e ser solidário”. “Entender a situação da escola, dos amigos e como se tem de comportar”, complementa.

Distância social não passa no teste

Mesmo em frente desta mãe, a fila de alunos forma-se para entrarem no recinto escolar. Se antes bastava passar o cartão de aluno, agora há mais uma coisa que não pode falhar: desinfetar as mãos. São centenas de miúdos na hora de ponta (de manhã às 8h30 e à tarde às 13h30).

A aglomeração é quase inevitável e ali a distância social começa a diluir-se. Muitos são os que estão em cima do colega que está à frente. O assistente operacional que está na portaria daquela escola é Manuel Nunes. Ele nota uma diferença etária no cumprimento das novas regras. “Os mais novos respeitam mais do que os mais velhos. Os do 12º ano, a avaliar pelo ano passado, acham que o vírus não é nada com eles. Como na maior parte dos casos não têm sintomas graves…”, ilustra, ao mesmo tempo que aos 57 anos se diz “receoso” por estar num lugar de grande exposição e contato com os jovens.

Regressando ao interior da escola, são agora 8h30, e começa a aula de português para uma das turmas do 6º ano. A primeira aula é para acertar lugares, que este ano têm de ser rigorosamente cumpridos. Não pode haver trocas. Ali os alunos estão em par, em secretárias de 1,60 metros. A matemática não engana, não pode haver alunos a sentarem-se de perfil, cumprindo um metro de distância como as autoridades recomendam.

Mais tarde, à Renascença, o diretor David Sousa vai anuir: “Não se tenha ilusões, não vai haver um metro de distância nas aulas”.

Há coisas que mudaram, mas há outras que nunca vão mudar, como o aluno (que existe em todas as turmas) que não perde uma oportunidade para fazer uma piada a cada cinco minutos, ou a aluna que no primeiro dia de aulas tenta perceber se o caderno que comprou é o indicado.

No final da aula, passado hora e meia, a professora Rute Alves faz um balanço do novo mundo que se vive na sala de aulas. “Esta foi a minha primeira aula com a turma, confesso que estava ansiosa. Quem gosta de ser professora gosta de estar na sala de aula e sente falta de estar com eles, apesar de não podermos tocar e abraçar”, refere.

O balanço é muito positivo e os alunos até responderam de uma forma surpreendente à adversidade. “Correu muito bem, estava à espera de vê-los a sufocar com a máscara porque era uma aula de 90 minutos”, reconhece a docente de 40 anos. “Os primeiros dias vão correr bem, depois, com o cansaço de terem de usar máscara, não sei como será”, afiança a professora que leciona português e inglês.

O facto de não conseguir ver o rosto é uma dificuldade acessória para quem ensina línguas. “Se às vezes já não me percebem, este ano não sei como será. No inglês, para ensinar as palavras, a dicção, é um bocadinho difícil”, frisa.

Termina a aula e chega o primeiro intervalo. O tempo de descanso é menor este ano. Apenas 15 minutos. Os corredores enchem-se. Ninguém tira as máscaras. Mesmo os que vão para espaços exteriores optam por usar o equipamento de proteção individual.

Os telemóveis parecem, à primeira vista, ser os principais inimigos da distância social. Há sempre uma qualquer fotografia ou um vídeo para mostrar. E isso faz-se bem junto uns dos outros.

Aquele estabelecimento de ensino optou por não restringir a movimentação dos alunos durante o período entre aulas. “Um dos valores desta escola é o da responsabilização individual. Optámos por não delimitar um espaço para a turma estar confinada. Os miúdos estão fartos de estar confinados”, concretiza o diretor do agrupamento de escolas Frei Gonçalo de Azevedo, David Sousa.

Tolerância zero

E para os que incumprirem com as novas regras determinadas para combater a Covid-19, quais serão as consequências? “Vou dizer uma coisa que se calhar é politicamente incorreta, mas a tolerância é zero”, garante David Sousa.

Perante o caso hipotético de um aluno que possa a brincar tossir para cima de um colega, o diretor responde: “Pode ser que no dia a seguir fique a tossir em casa”, refere, dizendo que todos conhecem bem, o que considera ser um código de conduta claro e compreendido por todos.

A possibilidade de um caso positivo motivar um estigma em relação ao infetado, é rejeitada pelo professor David Sousa. Garante que essa hipótese está a ser antecipada pela escola. “Haverá um trabalho de acompanhamento do aluno e dos colegas. Há uma equipa preparada para essa intervenção. Temos três pessoas, pelo menos, que acompanham este tipo de situações”, explica.

Livros de quarentena

Mais uma volta na escola, e entra-se na biblioteca. Um local que agora não será de tão fácil acesso. A professora bibliotecária, Cristina Valente, avança que atualmente há duas formas de os alunos ali entrarem. Ou marcam por telefone, ou por e-mail.

E apenas o podem fazer em três situações, para um trabalho individual em que precisem de uma mesa, para acesso a um computador e para reservar livros. Mas para trabalhar num PC, os alunos não poderão circular. Se quiserem uma impressão têm de levantar um cartão para que uma das funcionárias vá buscar as folhas.

Em relação aos livros, têm de identificar o que querem consultar, e quando os alunos chegam já têm o saco de pano preparado. “Quando for devolvido fica em quarentena. Temos uma caixa para cada um dos dias da semana”, refere a docente de 56 anos.

Uma máquina oleada

É quase meio dia, e chega a hora de almoço. Novo momento para perceber se a máquina, preparada pela escola para responder às novas regras, está oleada. A cantina onde antes se sentavam 150 alunos está reduzida a metade da lotação. O espaço é amplo e quase 20 alunos do curso de profissional de apoio à infância auxiliam nos processos. Uns controlam a entrada, outros fiscalizam as distâncias nas filas e há ainda grupos de apoio às mesas e para ajudar a higienizar as mãos. Tudo para que nada falhe.

A comandar a equipa está Ana Paula Jordão, professora de Psicologia e Filosofia. “Queremos manter a distância social e a etiqueta respiratória. Todos os alunos sabem que quando acabam de comer têm de pôr a cadeira inclinada em sinal de que o sítio é para higienizar”, explica. “As regras são para manter, para que possamos ter confiança”, enfatiza.

Ainda assim a docente diz que a principal adversidade é tentar mesmo que eles mantenham a distância. “Estão muito carentes de convívio uns com os outros”, remata Ana Paula Jordão.

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  • Ivo Pestana
    20 set, 2020 Funchal 12:35
    É verdade, estive 14 anos na escola e foram os tempos mais alegres, que tive. Estamos em pandemia, força a todos.

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