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Incêndios de 2017. Família da única vítima por indemnizar processa o Estado e exige 664 mil euros

08 set, 2020 - 09:55 • Fábio Monteiro

A família de Avelino Mateus Ferreira, que morreu a 7 de outubro de 2017 no combate a um incêndio em Oleiros, interpôs um processo contra o Estado português e contra a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). Quer ser abrangida pelo “mecanismo extrajudicial” criado de propósito pelo Governo e receber os mesmos benefícios das vítimas de Pedrógão Grande e dos incêndios de 15 e 16 de outubro.

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Em 2017, há registo de 117 pessoas mortas em contexto de incêndios: 66 em Pedrógão Grande, entre 17 e 24 de junho; uma em Oleiros, a 7 de outubro; e 50 em diferentes fogos nos dias 15 e 16 de outubro. Passados três anos, todas as famílias foram indemnizadas. Todas menos uma: a de Avelino Mateus Ferreira.

O funcionário da Câmara Municipal de Oleiros, de 49 anos, foi a única vítima do incêndio de 7 de outubro que deflagrou, pelas 16h, no lugar do Cardal, freguesia do Estreito. Por volta das 19h, a máquina de rasto que conduzia capotou durante o combate às chamas. O “bombeiro sem farda”, como era conhecido pelos locais, deixou dois filhos e a mulher sem sustento.

Ao contrário das restantes vítimas dos fogos de 2017, a família de Avelino foi excluída do “mecanismo extrajudicial” lançado pelo Governo para indemnização. Porquê? A Resolução do Conselho de Ministros n. º157-C/2017 é apenas referente aos períodos de 17 a 24 de junho e de 15 a 16 de outubro.

Isto é de uma insensibilidade que não tenho palavras para descrever. Como é que é possível num Estado de direito, em que devíamos ser todos iguais? Isto é como o Orwell: somos todos iguais, mas um são mais iguais que os outros. Só que neste caso é uma única família. Porquê? É por aí que o Governo vai à falência ou que entra em incumprimento?”, acusa Fernando Jorge, presidente da Câmara de Oleiros, em declarações à Renascença.

Após vários pedidos de auxílio dirigidos ao Governo, a família avançou, em outubro de 2019, com um processo contra o Estado português e a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC). De acordo com a ação civil, a que a Renascença teve acesso, recusar a indemnização à viúva e aos dois filhos de Avelino pode constituir uma violação do princípio constitucional da igualdade. A família exige 664.009,25 euros de compensação.

A morte de Avelino “ocorreu na sequência de colaboração abnegada da vítima em missão pública, no combate a um incêndio de grandes dimensões”, argumenta a família no processo. Aliás, “no local onde a vítima abria um aceiro para a contenção das chamas foi travada uma frente de fogo que, não fora aquela intervenção, alcançaria a aldeia de Cova da Azenha, colocando em perigo aquela população e os seus haveres.”

Se o “infortúnio” do funcionário da câmara de Oleiros tivesse ocorrido uma semana depois, a 15 ou a 16 de outubro de 2017, “a sua família teria sido indemnizada pelo Estado Português”. “Haverá, em Portugal e no século XXI, dias certos para morrer, para que os familiares das vítimas tenham direito a receber a indemnização por parte do Estado?”, é apontado na ação civil a dado momento.

Do outro lado da burocracia

Em 2017, face à excecionalidade do registo de incêndios, o Governo criou, através da Resolução n. º157-C, de 21 de outubro, um mecanismo extrajudicial, de adesão voluntária, “destinado à determinação e ao pagamento, de forma ágil e simples, de indemnizações por perdas e danos, não patrimoniais e patrimoniais”, reservado às vítimas dos fogos de Pedrógão Grande, para o período de 17 a 24 de junho, e às vítimas dos fogos de 15 e 16 de outubro.

Logo nesse ano, Maria Helena de Jesus Alves, desempregada, tentou aceder ao mecanismo, mas viu o pedido recusado. A Provedora da Justiça explicou então, numa missiva, que “o caso concreto não pode ser resolvido pelo mecanismo extrajudicial”.

Em todo o caso, Maria Lúcia Amaral referiu que, “tendo presentes os contornos da situação, em especial a circunstância de a morte ter ocorrido na sequência da colaboração abnegada da vítima em missão pública de combate a um incêndio florestal de grande dimensão, dei conhecimento da mesma a sua excelência o primeiro-ministro, a fim de que possa ser ponderada no quadro geral da responsabilidade do Estado”.

António Costa demorou a responder. Só após duas tentativas, em dezembro de 2018, é que família recebeu uma resposta do gabinete do primeiro-ministro. Nessa carta, o chefe do Governo defendeu não ser “possível proceder à equiparação da vítima em causa ao estatuto das vítimas mortais dos incêndios de 17-24 de junho e 14-16 de outubro de 2017.”

O impasse manteve-se. Mesmo depois de, a 17 julho de 2019, terem sido aprovados dois projetos de resolução na Assembleia da República – um do CDS e outro do PSD -, com votos favoráveis de todas as bancadas e abstenção do PS, para que o Governo indemnize a família de Avelino Mateus Ferreira nos mesmos termos que do mecanismo criado para as restantes vítimas.

A 22 de outubro de 2019, foi interposta no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco uma ação de responsabilidade civil contra o Estado e a Proteção Civil. Os signatários: a viúva, Maria Helena, e os dois filhos, João e Joaquim.

Para esta ação, a família contou com o apoio da autarquia de Oleiros. “É a última situação que fomos obrigados a tomar perante esta insensibilidade da parte do Governo, nomeadamente do sr. primeiro-ministro, a quem nós pedidos encarecidamente e lutámos por várias formas, de forma mais delicada, simples e humilde, mas não conseguimos ter resposta positiva”, diz Fernando Jorge.

O autarca social-democrata, que no passado já fez parte da Comissão Política do PSD, garante que “houve vários membros do Governo, ainda na legislatura anterior, que tentaram sensibilizar o sr. primeiro-ministro para que pudesse cumprir com esta resolução da Assembleia da República”. Mas sem sucesso.

A Renascença contactou o advogado da família, mas este escusou-se a fazer comentários sobre o processo e pediu para não ser identificado. Do que foi possível apurar, trata-se de um amigo que está a trabalhar totalmente “pro bono”.

Indemnizações

Através do mecanismo criado pelo Governo, as famílias dos incêndios dos dias 14 a 24 de junho e 15 e 16 de outubro de 2017 receberam 80 mil euros cada “pelo dano morte”. As vítimas dos mesmos incêndios receberam ainda 70 mil euros “pelo sofrimento antes da morte”. Já os cônjuges e os filhos das vítimas receberam, de danos patrimoniais próprios de terceiros, 40 mil euros cada um.

Tendo por base estes valores, a família de Avelino Mateus Ferreira deveria ter recebido cerca de 270 mil euros. A este montante, é ainda somado o valor de 394.009,35 euros a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, referente ao valor do salário (cerca de 254 mil) e à reforma de Avelino (139.739 euros) até aos 80 anos. E assim se chega ao valor de 664.009,25 euros, agora exigido pela família.

De acordo com a ação civil contra o Estado e a ANEPC, os únicos rendimentos da família de Avelino provêm, neste momento, da pensão de preço de sangue, “que lhes foi atribuída pelo facto de o próprio Estado reconhecer que o falecimento de Avelino Mateus Ferreira decorreu de um acidente ocorrido quando o mesmo se encontrava em funções públicas”. Os valores em causa: 4.185,81 euros anuais e mais 2.791,21 euros por cada um dos filhos.

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