02 jun, 2024 - 18:37 • José Pedro Frazão
É um manifesto para sensibilizar os decisores políticos no contexto das eleições europeias. Lançado há cerca de um mês, o texto foi preparado pela Fundação Oceano Azul, sediada em Lisboa, e o Europe Jacques Delors, instituto influente em Bruxelas onde pontifica Pascal Lamy, antigo diretor geral da Organização Mundial do Comércio e ex-chefe de gabinete do próprio Jacques Delors na Comissão Europeia.
As duas instituições desenvolveram uma visão comum para a Europa na sua relação com o oceano, com base no relatório europeu Starfish 2030, sendo endossado por um grupo alargado de ex-ministros do Mar, antigos Comissários europeus e também antigos diretores-gerais e membros das instituições europeias.
Tiago Pitta e Cunha, administrador executivo da Fundação Oceano Azul foi um dos co-relatores do Manifesto, pensado para ter impacto para lá das "entrelinhas" de uma campanha eleitoral.
A mensagem principal do manifesto é que a Europa está neste momento sujeita a um grande dilema. Por um lado, este é o século da descarbonização das nossas economias. O plano para isso é o Acordo de Paris. A Europa deu um passo em frente com o Pacto Ecológico e criou já também um programa de implementação.
Essa é a premissa-base da política do século XXI e a Europa deve ser líder nesta transição para uma economia verde relativamente a outras regiões do mundo.
Mas, em cima disso, começamos a sentir os impactos sociais e económicos mais negativos em setores tradicionais desta transição, que estão a reagir. Há hoje na Europa um degladiar de posições que têm levado a que vários partidos políticos tenham a tendência para um certo recuo pelo menos na velocidade dessa transição para uma economia verde.
Esse é o dilema que a Europa tem. Por um lado, sabe que inevitavelmente tem de fazer essa transição. Por outro lado, sabe que há custos a pagar que estão a emergir e que politicamente quer procurar abordar.
O Mar é aqui ainda mais importante, porque está fora desta equação e, logo, deste dilema. É um terceiro elemento que pode criar uma 'avenida de crescimento' para a Europa que a leva a transitar mais facilmente para a economia verde, sem impactar nos chamados setores tradicionais, nomeadamente, por exemplo, na agricultura.
É aqui que aparece a aposta da 'economia azul sustentável'. Da verdadeira economia azul, não do eufemismo de chamar isso à economia do Mar ou à economia marítima, como até hoje faz inclusivamente a própria União ou a Comissão Europeia.
A definição é que o azul seja o verde do Mar. Portanto, a economia azul é sustentável e inclusiva. A economia azul permite que a economia verde seja mais facilmente alcançada. Portanto, o azul torna o verde mais fácil. E é isso que explicamos aqui na narrativa e nas propostas do manifesto.
Exatamente. Queremos conseguir mostrar que para a Europa chegar à economia verde e descarbonizar as suas economias - que vai ser o grande desiderato do século XXI ou não estaremos cá no século XXII - para conseguir fazer isto, a Europa necessita de apostar nalgumas áreas da economia do Mar que, se houver inovação, passarão do que é hoje um problema a ser parte da solução. Essas áreas são a energia, os transportes e a alimentação.
Na energia, vamos ter que diminuir cada vez mais a exploração de hidrocarbonetos. Era importante haver uma moratória na Europa para novas explorações de gás e petróleo natural. Obviamente, seria necessário encontrar um prazo para descontinuar as que existem, nomeadamente por causa do chamado 'phasing out' (eliminação progressiva) definido na última cimeira da Conferência- Quadro para as Alterações Climáticas, no Dubai, na COP 28.
Devemos tomar a decisão de não iniciar novas explorações e apostar cada vez mais no Mar para energias limpas. Por isso, a Comissão Europeia sabe que até 2030 irá haver mais gigawats de energia limpa produzidos através de energia eólica offshore do que da energia eólica terrestre. E isto significa que o Mar vai ter um peso enorme no chamado 'mix energético', na mistura de fontes de energia da União Europeia.
O Mar é uma fonte de energia sustentável, mas, mais do que isso, é uma fonte de segurança energética, porque o vento nas costas europeias é um recurso endógeno da Europa. É por isso que Portugal - e muito bem - também está a olhar agora para a energia eólica offshore, o que a Fundação Oceano Azul apoia, obviamente subjacente a tudo ser feito com os devidos impactos ambientais e não corresponder à delapidação depois do capital natural do Mar, da biodiversidade, da fauna, dos corredores de migrações de aves.
Havendo uma atenção escrupulosa e rigorosa a isso, há aqui uma forma de potenciarmos a economia europeia.
Não há dúvida nenhuma que a energia eólica offshore e a offshore flutuante - em que Portugal é o país pioneiro na tecnologia a nível mundial - irá poder contribuir muitíssimo para essa autonomia energética da Europa. Basta dizer que, enquanto que em terra aproveitam-se cerca de 3000 horas de vento por ano, no Mar e na costa portuguesa há algumas áreas em que já há estudos que indicam que se pode chegar às 5000 horas. Portanto, o recurso é muito mais forte e ao mesmo tempo a tecnologia permite-nos hoje em dia ter turbinas que produzem muito mais energia. Hoje há já turbinas de 8 megawatts no Mar e poderemos chegar a turbinas no futuro até 15 megawatts. Em terra, isso seria completamente impossível e inaceitável, porque a dimensão da turbina e da torre poria em causa todos os critérios de poluição, de ruído, de poluição visual. Por isso, o Mar vai ser uma aposta nesta área.
Durante toda a vida, a Europa beneficiou do transporte marítimo. Os europeus aprenderam a navegar antes de muitos outros povos por causa da geografia europeia. A Europa não é uma massa continental, é o cabo da Ásia. No fundo, é um cabo rodeado de penínsulas e de ilhas. Por causa disso, os europeus conseguem fazer muito transporte das mercadorias do seu mercado interno e externo através de transporte marítimo.
A Europa é uma superpotência do chamado 'shipping' (navegação marítima) mas, neste momento, os barcos são infelizmente parte do problema, porque a propulsão dos navios dos seus motores permite-lhes funcionar com o combustível talvez mais poluente que existe, o chamado 'bunker fuel', que é nafta.
Recentemente, em 2023, a Comissão Europeia produziu uma comunicação nesse sentido e também a Organização Marítima Internacional está a trabalhar no sentido de alterar profundamente a propulsão dos navios. Há que reduzir e proibir o desenvolvimento de gases perigosos, não apenas de efeito de estufa, mas o azoto ou o sulfúrio.
Sem dúvida. O objetivo era apostar numa Europa que tem ainda uma indústria tão grande de construção naval sofisticada. É verdade que a construção naval, por atacado, passou mais para a Ásia, mas há muitos países na Europa que continuam a ser verdadeiramente potências de construção naval e onde os navios mais sofisticados do mundo são construídos. A Europa tem a tecnologia para poder fazer essa transição importante.
O transporte marítimo é energeticamente o mais eficiente de todos os modos de transporte. Se transportar mercadorias por Mar em vez de transportar por terra, ar ou ferrovia, consegue-se transportar mais massa com menos energia, porque o Mar produz um serviço ecossistémico abiótico que é a sustentabilidade dos navios.
Nova minissérie
O realizador da nova minissérie sobre polvos, que (...)
Isto é importante para o interesse nacional de Portugal. Pelos territórios marítimos portugueses e pelos corredores de tráfego de Portugal passa mais de 60% de toda a frota de marinha mercante da União Europeia. Isto significa que Portugal faz um serviço à Europa através do serviço ecossistémico que o Mar português fornece a essa navegação. Para pôr a navegar aqueles contentores todos em cima dos grandes porta-contentores, não é necessário investir dinheiro em infraestruturas como pontes, túneis ou autoestradas. E é por isso que também é mais económico transportar por Mar.
Se é energeticamente mais eficiente e se mudarmos a propulsão dos navios para combustíveis mais amigos do ambiente, então o transporte marítimo passa de ser parte do problema para ser francamente uma solução para a descarbonização. Esse é o futuro. Acreditamos que a Europa pode estar na liderança disso e é por isso que há aqui uma aposta económica muito grande nessa matéria.
As tecnologias estão todas em desenvolvimento e em competição entre elas, mas hoje já estão a ser completamente implementadas. Há zonas na Europa, como por exemplo, o Báltico ou o Mar do Norte, em que o dito combustível de nafta já não pode ser utilizado. como não pode ser utilizado nos portos, por exemplo.
Por exemplo, os navios de cruzeiro quando entram no Porto de Lisboa têm de mudar de combustível de nafta para diesel. Obviamente que não é ideal ainda, mas desde ter navios movidos a gás natural, movidos não apenas a combustíveis fósseis mas a vento ou a baterias que são alimentadas por painéis fotovoltaicos, e ter hidrogénio, tudo isso está em cima da mesa.
O que é verdadeiramente importante é cortar os níveis de sulfúrio e de azoto, que hoje em dia o pior combustível, a nafta, liberta para a atmosfera.
Sim, se bem que a Europa tenha tido sempre medo de perder competitividade relativamente ao resto do mundo na área dos transportes. E, como tal, a Europa não quer nunca sair para um patamar muito mais exigente que o da Organização Marítima Internacional. Mas a Europa tem sido realmente um líder a puxar essa organização também neste caminho. Isto é uma aposta grande para a Europa e para Portugal. Era por aqui que acho que a nossa indústria da construção naval também deveria enveredar.
Este é talvez um dos eixos em que Portugal tem mais argumentos, conjuntamente com a energia eólica offshore flutuante.
Vamos ter de ter mais proteínas para alimentar uma população crescente. A população mundial será de 10 mil milhões de pessoas em 2050. Estamos a 25 anos dessa data, os mesmos que passaram desde o início deste século, e será necessário produzir pelo menos entre 30 a 40% mais proteína alimentar até essa data. Fazê-lo através da agricultura tradicional, altamente carbonizadora, irá contribuir para inviabilizar as metas dos acordos do Acordo de Paris e, como tal, é necessário sermos aqui criativos.
É necessário aumentar a percentagem da proteína alimentar de origem marinha, que neste momento é de cerca de apenas 17% do total das proteínas consumidas a nível global. Mas já não podemos aumentar em peixe selvagem, porque está sob grande pressão e os stocks estão sobreexplorados. Aumentar infinitamente a aquacultura de peixe das espécies carnívoras irá contribuir muito para a sobrepesca, porque esses peixes comem outros peixes.
Uma equipa de cientista concluiu que o calor acumu(...)
Normalmente diz-se que para produzir 1 kg de salmão é necessário 4 kg de pescado. Hoje em dia, utilizando a soja e outros ingredientes, há um esforço muito grande da indústria para reduzir essa proporção, mas continua a ser francamente desrazoável estarmos a produzir uma indústria que continua a contribuir para a carbonização e para a delapidação da biomassa dos oceanos.
E como tal, o futuro será mais ligado a proteínas marinhas quer de origem animal, como os bivalves, quer de origem vegetal, como as algas. E aqui Portugal tem grandes argumentos, porque as condições biofísicas do Mar português são excelentes para a produção de bivalves e de algas.
Estas espécies são alimentadas organicamente pela vida orgânica do Mar, ou seja, não é necessário alimentar estas espécies com peixes nem com ração animal, nem com óleo de peixe. Elas vivem do “upwell” de que as costas portuguesas são muito ricas, até por causa dos canhões submarinos. É a biofísica do oceano português que permite esta alimentação. Poucas pessoas sabem que uma grande parte do sucesso da produção de mexilhão nas rias da Galiza se deve aos nutrientes que vêm das águas portuguesas, exatamente por causa da biofísica de Portugal. E é neste sentido que nos podemos posicionar.
Aliás o Painel Intergovernamental dos Cientistas para as Alterações Climáticas já se manifestou num relatório recente sobre a necessidade dos habitantes do planeta enveredarem por uma 'dieta verde', onde as algas e os bivalves são efetivamente considerados prioritárias.
É uma pergunta muito pertinente. Trabalhei 7 anos na Comissão Europeia a coordenar o lançamento e a criação da política marítima integrada. Sei o que custou conseguir criar uma nova política europeia que tenha de encontrar espaço. Imagine uma estante com livros e conseguir pôr um livro quando a estante já está cheia. É isso que significa criar uma nova política europeia e para ganhar esse espaço foi necessário um enorme poder político e vontade política por parte da hierarquia mais alta da Comissão Europeia, nessa altura chefiada por Durão Barroso.
Foi necessário criar um organismo transversal a 9 Comissários - e a 9 gabinetes de Comissário e a 9 direções gerais da Comissão - para conseguir construir em conjunto aquela política, que ainda por cima tinha o nome “integrada” na sua designação.
Essa estrutura que foi determinante para conseguir construir esta política é um exemplo que aqui quero trazer, porque ela já não existe. Ela existiu durante um mandato da Comissão Europeia e depois foi descontinuada. Sem uma estrutura como essas, não é possível a União Europeia fazer uma aposta visionária na relação do continente mais marítimo de todo o mundo com o Mar. É neste sentido, por exemplo, que é importante haver isso.
Outro exemplo muito claro é que os Assuntos do Mar não têm uma comissão específica para serem tratados no Parlamento Europeu. O Parlamento Europeu continua a tratar este assunto através do Comité das Pescas. E depois, quando é o caso, no Comité dos Transportes. Ora, isso é uma visão oposta à da integração da governação dos grandes desafios planetários que enfrentamos. Era muito mais importante que o Comité das Pescas evoluísse para uma Comissão dos Assuntos Marítimos. Essa é uma proposta que foi feita na missão Starfish e que é feita novamente aqui também no Manifesto.
Se tivermos esta ambição de compreender que o Mar vai ser determinante para o sucesso da União Europeia no século XXI, por questões de comércio, de economia, de indústria, de ponta das novas indústrias como a bioeconomia azul e a biotecnologia azul, que vai ser francamente importante para o desenvolvimento económico e social da Europa, então será necessário que tudo isto seja feito em articulação entre si e com o respeito e o cumprimento profundo de normas de proteção ambiental.
O oceano pode ser uma oportunidade para a Europa, se nós não a esmagarmos através da poluição e da delapidação da biomassa e da biodiversidade do oceano que estamos a fazer. Há aqui, de facto, novamente, essa perspetiva integrada. Ter uma Agência Europeia para o Oceano, como a missão Starfish propõe e é proposto também aqui neste documento, parece realmente um passo muito importante.
A Comissão Europeia tem trabalhado cada vez mais através de blocos de Comissários, que respondem de alguma maneira a um Vice-Presidente. Isto é a forma mais moderna de começarmos a atacar problemas que são horizontais e que não podemos abordar através de tutelas. Ter a visão de conjunto é muito importante e é neste sentido que deve haver um grupo de Comissários para os Assuntos do Mar, que deveria ser chefiado por um Vice-Presidente.
A proposta é que na próxima Comissão Europeia haja uma aposta nesta questão da ligação da Europa ao oceano e que ela seja feita através da nomeação de um Vice-Presidente da Comissão Europeia para os Assuntos do Mar.
Não há dúvida nenhuma que a questão da segurança está eminente aqui em muitas situações. Há que reconhecer - e está escrito no manifesto - a importância estratégica do oceano para a segurança e para a competitividade europeias.
É o oceano que permite à Europa o acesso aos mercados globais. O que seria da economia alemã se não tivesse o oceano? ou da economia portuguesa? Como é que controlamos a questão dos cabos submarinos, vital para a informação e para a tecnologia da comunicação europeia? Como é que queremos ter segurança energética e apostar na eólica offshore se depois não pudermos controlar essas instalações? Isto implica com a área da segurança, com a imigração irregular, com a pirataria, com o terrorismo, com crime organizado, nomeadamente estupefacientes.
Dois terços da defesa da Europa são marítimas. É por isso que a Europa é uma potência marítima e é muito importante que faça este “upgrade” do seu aparato e do seu enquadramento de governação, criando as instituições necessárias que aqui já referi. O Conselho da União também necessitaria de ter uma célula própria para endereçar estas questões do Mar.
Os europeus que não se iludam: a Europa não continuará a ser uma superpotência no século XXI, se não continuar a dominar os temas dos oceanos, se não continuar a assegurar a absoluta segurança da Europa, até para o fornecimento das suas seguranças energéticas e outras.