Grenfell Tower: “Ou tentam sair agora ou ficam e morrem”

14 jun, 2021 - 07:06 • António Fernandes , correspondente em Londres

Miguel e Andreia sobreviveram ao incêndio da Grenfell Tower, em Londres. Quatro anos depois da terrível noite de 14 de junho, há memórias que jamais se apagarão. A vida refaz-se aos poucos, mas há uma parte dela que ficou naquela torre.

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Grenfell Tower: “Ou tentam sair agora ou ficam e morrem”

Quatro anos depois do incêndio de Grenfell Tower, Andreia Perestrelo e Miguel Alves sentam-se lado a lado na nova casa de Miguel. Até àquele 14 de junho de 2017 eram vizinhos.

Miguel viveu cerca de 19 anos na torre e Andreia 10. Um dia, Miguel conheceu Márcio, marido de Andreia, no elevador e perguntou-lhe se “queria jogar à bola”.

Desde aí, mantiveram uma amizade que saiu reforçada pelo “sofrimento que tivemos juntos, tudo isso nos ajuda a manter os laços mais fortes”, diz Miguel. Do incêndio, que consumiu a torre de 23 andares, resultaram 72 vítimas mortais e sobreviveram 255 pessoas.

Andreia diz que apesar de muitas pessoas terem passado pelo mesmo, nem sempre é fácil “falarmos uns com os outros, mas só o facto de termos alguém tão próximo que sabe o que nós passámos é reconfortante.” As famílias de Miguel e Andreia apoiam-se, por isso, mutuamente.

No jardim da casa de Miguel, o sol bate levemente ao final da tarde e há pouco barulho em redor, como se a cidade respeitasse a conversa que estamos prestes a ter. Voltamos atrás para saber o que aconteceu na noite que mudou as vidas destes portugueses e de tantas outras pessoas.

Um pesadelo infernal

Não há uma boa altura para uma tragédia, mas quando o incêndio de Grenfell começou grande parte dos residentes já dormia. Não foi o caso de Miguel, que depois de um jantar tinha ido levar uns familiares a um hotel perto da meia-noite.

Regressou com a mulher, Fátima, perto da uma da manhã. Poucos minutos antes, no quarto andar, um frigorífico tinha pegado fogo e os bombeiros já estavam a caminho, mas quando Miguel chegou “nada parecia errado no prédio, mas entrámos no elevador com dois senhores que carregaram para o número 4, e quando lá chegámos eu notei que tinha fumo no teto. Imediatamente saí do elevador porque achei que não era seguro, e tentei ir à procura do meu telefone, tinha-me esquecido dele no carro. Pedi à Fátima que fosse até ao carro e fui chamar os miúdos para sair do prédio, porque achei que era melhor estar fora do que estar dentro do prédio, e foi o que fiz”.

Subiu pelas escadas até ao 13.º andar, onde vivia, acordou os filhos e os vizinhos e mandou-os para baixo. Com resultados: “a maior parte das pessoas obedeceu, por isso é que estão todas vivas também”.

Oito andares acima estavam Márcio, Andreia e as duas filhas. Já cá fora, Miguel não conseguiu ligar logo para eles, porque Fátima, ao telefone, tentava convencer outro vizinho a descer, mas “ele estava em pânico, então só dizia: 'não desligue, não desligue'”.

Entretanto, outro vizinho conseguiu falar com Márcio e aconselhou-o a descer e Miguel reforçou essa mensagem pouco depois. Só que Andreia estava grávida de sete meses.

“Os bombeiros tinham mandado que ele [Márcio] esperasse lá e que depois os iam socorrer”. Só que o incêndio, que tinha começado no quarto andar, já tinha chegado ao topo do prédio de um lado da fachada. Uma escalada de quase 20 andares em menos de meia hora.

Londres. Incêndio na Torre Grenfell começou num frigorífico
Londres. Incêndio na Torre Grenfell começou num frigorífico

Essa subida galopante aconteceu em grande parte devido ao material altamente inflamável usado no revestimento do prédio, propriedade da câmara municipal, em conjunto com outros erros feitos nas obras que tinham terminado em 2016, um ano antes. Perante este cenário, Miguel insistiu e “disse-lhe tu tens de sair, se não morres aí”.

Márcio, ao telefone, ouviu Miguel alertar um polícia para o facto de a família, com uma grávida e crianças, estar presa lá em cima. Ouviu também a resposta, quando o polícia disse a Miguel: “There’ll always be casualties, há sempre fatalidades. E o Márcio a ouvir. E nós a vermos de fora, as pessoas a acenar da janela e a entrar em pânico, com lençóis, com qualquer coisa para chamar a atenção que eles estavam lá dentro. E nós não podíamos fazer nada", lembra Miguel.

Durante todo este tempo, Andreia não fala. Já tinha avisado que não queria falar sobre essa noite. Mas enquanto Miguel descreve o que se passou, Andreia não se fecha. Ouve, atenta. Emociona-se. Andreia e Márcio, como tantos outros, foram vítimas do próprio plano de evacuação do prédio em caso de incêndio.

Em teoria, a torre estava desenhada para conter um incêndio no apartamento onde começasse. Por isso a ordem era “stay put”, ou seja, ficar no apartamento. Foi esse o conselho que os serviços de emergência deram até às 02:47 da manhã, quando grande parte da torre já estava envolta em chamas, como conta Andreia:

“Quando saímos fomos das últimas pessoas a sair do prédio, e foi quando eles se aperceberam - um bocadinho tarde demais - e nos disseram: se puderes tenta sair, salva-te ou então, se ficares, morres. E então foi quando conseguimos, depois de algumas tentativas.”

Cá fora, Miguel continuava a procurar sinais de que os amigos estavam bem: “fomos lhes telefonando várias vezes e o telefone tocava, isso deu-nos esperança de que as coisas estavam bem. Depois deixou de tocar, foi nessa altura que eles estavam a descer e a falar com alguém do 999, que é a central de emergências".

Essa chamada já aconteceu às 03:25 da manhã e é possível ouvi-la. Com a voz abafada pelas toalhas que tentam manter fora o fumo, Márcio pede à família para dar as mãos. Não se vê um palmo à frente dos olhos. A chamada vai sendo cortada pela tosse de Márcio. A operadora de emergência pede-lhe que não desista.

“Onde estão os bombeiros?”, pergunta Márcio. “Está a ser incrivelmente corajoso”, continua a encorajar a operadora ao telefone. Pelo meio, Márcio separa-se da filha e de outra criança que descia com a família. Tentou voltar para cima para as encontrar.

Numa entrevista à BBC, explicou que “a certa altura, a minha filha deixou de falar. Não conseguia ver, então gritei: 'estou aqui, estou aqui'. Depois vi uma luz de um bombeiro a caminho, fui buscá-lo para ele ir até à minha filha que já tinha desmaiado. Foi só quando cheguei cá baixo que vi que a Andreia e a minha outra filha já estavam numa ambulância”.

Mas foi já só no dia seguinte que Miguel soube que Andreia, Márcio e as crianças se tinham salvado porque “era tamanha confusão ali, que por mais que perguntássemos à polícia, aos bombeiros, ninguém sabia de nada. Os sobreviventes estavam distribuídos pelos hospitais de Londres e eles acabaram por ir para um dos mais longe, no sul de Londres [Kings College Hospital]”.

Há um lado de contraste na história de Miguel e Andreia, presos de formas diferentes. Miguel estava fora do prédio, a ver a torre a ser engolida, incapaz de ajudar os que estavam lá dentro. Andreia estava dentro do prédio, a ver o fumo entrar pelo apartamento e as chamas do lado de fora das janelas, incapaz de sair.

É por isso, diz, que a “experiência do Miguel é completamente diferente da minha, porque a minha é de dentro e a do Miguel é de fora - igualmente horríveis - mas uma pessoa que está de fora, a ver o que o Miguel viu, eu não vi porque estava dentro do prédio.”

Quando finalmente saiu do prédio estava em choque, “parecia um filme e não registei o que realmente se estava a passar.” Foram levados logo para o hospital e “mal cheguei lá entrei em coma, eu e as minhas duas filhas. Eu fiquei cinco dias. O único que não ficou em coma, graças a Deus, foi o Márcio". Quando acordou tinha a notícia mais dura para enfrentar.

Apesar de terem sobrevivido, Grenfell fez também uma vítima nesta família. Logan Gomes é a vítima mais jovem de Grenfell, que lhe tirou a hipótese de viver. Já com Andreia em coma, foi feito um parto por cesariana mas Logan não sobreviveu aos danos causados pelos fumos do incêndio.

Sem casa, sem nada

Do incêndio saíram com vida e com apenas o que tinham no corpo. “Eu nem trouxe a minha carteira, que trago-a sempre religiosamente. E naquele dia não a trouxe comigo, por algum motivo. E quando voltei a casa podia ter apanhado a carteira, o passaporte e outros documentos importantes. Mas não apanhei nada, ficou lá tudo. Não estava a contar que fosse um fogo daquela dimensão”, conta Miguel.

Mais tarde foram-lhes devolvidos alguns objetos recuperados das respetivas casas, mas em tão mau estado que não se conseguiram lembrar deles para especificar o que tinham recebido.

Depois do incêndio seguiu-se um hotel. Tanto Miguel como Andreia viveram num hotel muitos meses. Miguel diz que é complicado, porque “viver num hotel não é como uma casa e para nos reunirmos como família não é a mesma coisa.” A sorte, reconhece, foi “termos uns amigos que nos deram tudo o que precisámos.”

Andreia está longe de ter ficado fã de viver num hotel. Um hotel é para férias, “para viver, não. Porque não temos nada, não podemos comprar nada. Estávamos em dois quartos, é difícil”.

Numa altura em que as famílias enfrentavam o trauma e a perda de tudo o que tinham, não ter um sítio permanente onde ficar, onde conviver como antes, ou onde criar o seu espaço adiou o processo de recuperação.

Andreia explica: “Estamos num hotel ou num apartamento, mas sabermos que aquilo não é nosso e o trauma é tal que uma das terapias é começar a criar aquele lugar de uma casa, da tua casa. E ao não estarmos nesse lugar, saber que vamos ter de voltar a sair, voltar a procurar, até encontrar uma solução permanente, é difícil. Principalmente eu que tenho crianças, na altura uma tinha 10 anos e a outra tinha 12. Tenho de pensar nelas também e explicar - isto ainda não é a tua casa, não podes decorar, tens de esperar. É difícil como mãe vê-las sofrer com isso.”

Essa ideia da casa como pilar central da recuperação é comum a ambos. Mesmo quando passou de um hotel para uma casa temporária, Miguel conta que tudo “era estranho para nós, porque nós não tínhamos afeto à casa como tínhamos ao nosso apartamento”.

Ter uma casa é criar uma raiz e “deixamos de ter uma raiz quando estamos num hotel ou num apartamento que não é nosso. O que nós queríamos era virar a página, porque aquilo era uma página muito dolorosa. Queríamos o dia seguinte, para começarmos a criar um laço à nossa casa que agora já começa a ser nossa, já foi decorada por nós, já fizemos alguma coisa nela, que nos pertence, e acaba por ser importante para a nossa recuperação”.

Para Miguel, essa raiz começa a criar-se de novo na casa que comprou com o valor que o Governo atribuiu à casa que ardeu. É a primeira vez que Andreia vem a casa de Miguel depois de terminadas as obras, porque pelo meio meteu-se a pandemia.

Aproveito o "tour". Depois do hotel, de casas temporárias, esta moradia “já começa a ser casa”, diz Miguel a Andreia enquanto lhe mostra os quartos. Não há dúvidas: Miguel é um homem satisfeito com a nova casa, ainda que haja sempre quase uma certa relutância em dizê-lo. A ligação à casa que se perdeu e onde viveu 19 anos ainda é forte.

Para Andreia, agora também já instalada numa casa permanente, é “importantíssimo começarmos a criar memórias nessa casa”. Memórias feitas do zero, porque depois de “tantos anos a vivermos na torre, tínhamos todas as nossas memórias lá, fotos, pertences, e saber que nunca mais vamos ver certas coisas…claro que fica tudo cá dentro da cabeça, mas não é a mesma coisa".

Andreia nota, por exemplo, que não tem sequer os desenhos que as filhas fizeram na creche, memórias perdidas da infância. “Foram quase 20 anos deitados fora”, lamenta Miguel. Mas agora, tendo uma casa, “podemos criar o longo processo de fazer novas memórias”, diz Andreia. Novas memórias para criar com as filhas que já tinha e com a filha mais nova, que nasceu entretanto.

Quando estávamos a combinar o encontro, Miguel disse que tanto ele como Andreia tinham um jardim onde podíamos falar. Isso queria dizer que viviam em moradias. Não podia ser coincidência.

Andreia diz que nunca mais quer viver num apartamento, e que “hoje em dia não consigo ir mais do que um quarto andar num prédio normal. Numa torre nem consigo chegar ao rés-do-chão”.

Passa-se o mesmo com Miguel, que diz ter ficado com “pavor a alturas”. Apesar de conseguir ir a um prédio alto, depois do que passou diz que nunca mais quer “viver numa torre, pelo que passámos. Mesmo num hotel é complicado, só se estiver na parte de baixo do prédio.”

Não é surpresa que este tenha sido um incidente que lhes transformou a vida, mas alterou mesmo pequenas coisas do dia-a-dia. Andreia diz que se for a um restaurante, a primeira reação é “ver onde estão os sinais de saída de emergência, e isto passa-se em segundos…estou em alerta para tudo o que está à minha volta, para saber o que faço se acontecer alguma coisa e faço isso automaticamente.” Está no “nosso subconsciente”, acrescenta Miguel.

Há outras marcas desse trauma que ficam. Voltar ao trabalho, por exemplo, foi muito difícil para Miguel. Quando saiu da torre, Miguel avisou os vizinhos. Durante muito tempo culpou-se de não ter percorrido mais andares, de não ter salvado mais vidas. Procurou ajuda psicológica e ultrapassou essa parte, mas acredita que o trauma continua presente.

Os culpados e a Torre

O grande inquérito ao que aconteceu ainda está a decorrer. Os materiais utilizados, e outras falhas na construção do prédio, estão na origem da tragédia, mas para já não estão encontrados culpados criminalmente.

Miguel espera que isso mude porque a “culpa não pode morrer solteira, desculpe o termo mas é assim mesmo. Alguém tem culpa, e alguém tem culpa de muitos prédios ainda terem o mesmo revestimento que Grenfell. Os donos dessas casas não as conseguem vender, o Governo não tem feito o suficiente para resolver isto”.

Quase 2 mil prédios estarão ainda revestidos pelo mesmo material inflamável. Como é que Andreia vê essa situação?

“É impensável. Porquê? Estamos a falar de falar em salvar a vida de pessoas. Não compreendo porque leva tanto tempo para resolver esta situação.” Miguel diz temer um Grenfell II, mas acrescenta que “agora os bombeiros estão mais bem preparados e sabem como atuar”.

Desde o incêndio de Grenfell houve também uma revisão dos procedimentos para as torres nestes casos. Na altura, Miguel foi contra a instrução dos bombeiros de ficar em casa. Porquê?

“Foi o meu instinto. Se o fogo começa debaixo de nós, como é que vamos passar por ele? Eu vi fogo no teto. Eu sou de uma aldeia do interior, onde há muitos fogos, e tinha alguma noção de como o fogo se espalha. O meu instinto foi sair e avisar os meus vizinhos”.

Miguel e Andreia continuam a viver na zona oeste de Londres, perto ainda de Grenfell e vamos até junto da torre. Mal chegámos, alguém cumprimenta Miguel. Foram quase 20 anos a viver naquele bairro e isso nota-se. Olhámos para cima, para o que se vê de Grenfell. Consumida pelo fogo, o preto e os metais derretidos estão escondidos por proteções brancas e uma estrutura que evita o colapso da torre.

No topo, está desenhado um coração verde com uma mensagem: "Para sempre nos nossos corações". O que pensam da presença da torre na cidade, dessa lembrança constante da tragédia? Que futuro querem para a torre?

De um ponto de vista prático, Miguel diz que até o “inquérito terminar, até tudo ser esclarecido, acho que a torre tem de ficar”. Depois disso, então será tempo para os “sobreviventes e os familiares das vítimas decidirem. Não é o Governo, nem a Câmara. Somos nós”.

Andreia não tem dúvidas e diz que para si “a torre nunca vai abaixo. Sim, sempre que olho para a torre tenho 'flashbacks', é triste. Mas é uma maneira de as pessoas, e principalmente o Governo, se lembrarem que Grenfell aconteceu e que se não tomarem as medidas que têm de tomar pode acontecer outra vez. Enquanto aquilo estiver de pé, é uma lembrança, aquilo foi uma casa de pessoas, que tinham uma vida normal, que eram felizes. Por mim, aquela torre não nunca vai abaixo.”

E deixa também uma ideia esperançosa, que já apresentou com o marido e outros residentes: tornar a torre um jardim vertical para “pôr flores, pôr verde na torre. Acho que é uma coisa bonita, deixamos de ver aquele preto, o horror que foi, é como se vida estivesse a renascer das cinzas”.

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  • Filipe gouveia
    14 jun, 2021 Ribeira Brava 08:00
    Lembro bem deste acontecimento estava em Londres em Tour, onde fui contactado para dar um concerto. Solidário junto com outros artistas onde estava uma das famílias e o valor reverteu a favor das mesmas. Foi uma Honra

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