Covid-19

Macau. Como vive a capital mundial dos casinos quando não há jogo

25 mai, 2020 - 08:00 • João Carlos Malta

A cidade do sul da China, governada pelos portugueses até 1999, é numa zona propícia para tufões. Na memória estão ainda o Hato e o Mangkhut, mas nenhum deles fez o que um coronavírus vindo do centro da China conseguiu: fechar os casinos 15 dias. E, numa economia de monocultura, quando o coração deixa de bater todos setores da sociedade sofrem. Uns mais do que outros. Saiba o que mudou no dia-a-dia de Macau.

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Turistas e mais turistas, até ao número exorbitante de 40 milhões, em 2019, numa pequena cidade de 33 km2. Jogo e mais jogo, até alcançar receitas anuais de mais de 30 mil milhões de euros. E de repente chega um vírus, o Covid-19, que tudo mudou. Macau fechou fronteiras, quase não há turistas, o jogo mirrou, e todos sofrem com a quebra. O impato da crise só não foi maior, porque nos últimos 16 anos foi criada uma almofada, em forma de reserva financeira, cujo conforto se pode apreciar a partir de um valor: 600 mil milhões de patacas (34,2 mil milhões de euros).

Vamos aos números, que dão uma noção exata do impacto do novo coronavírus na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) − uma terra de superabundância, que nos últimos anos só tem tido uma direção, a do crescimento.

Comecemos por onde todas as conversas começam em Macau, o jogo. A indústria agoniza com a falta de turistas, depois do fecho de fronteiras com o Mundo, mas em especial com a China Interior e Hong Kong − de onde vêm a maior parte dos visitantes.

No ano passado, em abril, entraram pelas múltiplas fronteiras terrestes, aérea e marítimas, qualquer coisa como 3,5 milhões de visitantes. Este ano no mesmo mês, apenas 11 mil. Uma quebra homóloga de quase 100%. A redução do jogo deu um trambolhão semelhante, o que demonstra bem a relação entre uma dinâmica e a outra: quase todos os que entram em Macau fazem-no para jogar.

Se em abril de 2019, as seis operadoras que exploram o jogo tinham arrecadado 23,58 mil milhões de patacas (2,70 mil milhões de euros), agora a receita bruta mensal ficou-se pelos 754 milhões de patacas (cerca de 86 milhões de euros).

O economista português Albano Martins, há várias décadas a residir naquela cidade banhada pelo rio das Pérolas, sintetiza o que se passa no território da seguinte forma: “As massas não chegam agora a Macau. Nem as massas de pessoas, nem as massas de dinheiro”, ilustra.

E acrescenta: “A indústria do jogo está praticamente parada. Produz-se num mês o que se produzia num dia. A situação está muito complicada”.

Na mesma linha, Miguel Senna Fernandes, presidente da Associação de Macaenses, diz à Renascença que o sentimento no território “é de reserva”. “Temos a percepção que a economia está na mó de baixo, porque os casinos são o cérebro da economia da Macau. Tendo estado fechados durante 15 dias, as receitas são um desastre. Ninguém está feliz”, explica.

A normalidade que é só aparente

O diretor da revista Macau Business, e presidente da Associação de Jornalistas de Língua Portuguesa e Inglesa da RAEM, José Carlos Matias, afirma que quem anda pelas ruas vê uma cidade que funciona com uma aparente normalidade, em que as lojas foram reabrindo, apesar de muitas ainda não o terem feito.

O jornalista afirma que por detrás da aparente normalidade se esconde uma nova realidade. “Quando circulamos com mais atenção deparamo-nos com essa anormalidade, que é a ausência de turistas, numa cidade que no ano passado teve 40 milhões de visitantes”.

A economia que está muito dependente dos impostos cobrados aos casinos, “cerca de 80% das receitas arrecadadas pelo Governo advém de receitas do jogo”, por isso, é fácil de compreender que na região se vive “uma situação bastante complicada”.

As PME de Macau, normalmente pequenos negócios virados para os visitantes, são as que mais agonizam, neste momento, com a falta de turistas e de jogo. O Governo já lançou um programa de ajuda a estes empresários para amenizar as consequências da travagem brusca.

“O Governo acionou vários mecanismos de apoio a residentes, cidadãos e empresas, alocando uma verba na ordem dos cinco mil milhões de euros para suplementar um orçamento retificativo que foi apresentado. Este valor representa menos de 10% da reserva financeira da RAEM”, explica Matias.

Sérgio de Almeida Correia, que lidera um escritório com cinco advogados, diz que a cidade está a resistir e, que passada a fase mais aguda da crise, a China já começou a abrir, pelo que se aguarda com expectativa o que sairá das reuniões da Assembleia Popular Nacional e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês.

Almeida Correia espera que estes órgãos do governo central determinem a reabertura das fronteiras. “Assim, os casinos vão começar a funcionar. A questão é pensar a longo prazo. Durante quanto tempo esta situação se vai manter, até termos uma vacina e as pessoas voltarem a adquirir confiança e a termos comunicações?”, questiona.

Coração transformado em "elefante branco"

Os casinos de Macau, o coração económico da cidade, são neste momento “elefantes brancos” dos quais poucas pessoas entram e saem. São estruturas ajustadas para os milhões que normalmente visitam a cidade, mas que se tornam megalómanas quando de repente os turistas passam a ser pouco mais de 10 mil num mês. Como é que a atividade se tem ajustado?

Albano Martins explica: “Muito lay-off, despedimento dos trabalhadores não residentes, porque é incorrecto fazê-lo com os residentes. Estão a reduzir pessoal, a pedir aos trabalhadores que façam férias antecipadas, esperando que em meados de junho as coisas possam recomeçar a voltar ao normal”.

E é nesta dimensão que se percebe que ao contrário do que muitos disseram sobre este vírus, ele não é democrático. Se na infecção até pode ser verdade que atinja todos por igual, nas consequências isso está longe de acontecer.

Os Trabalhadores Não Residentes (TNR), pessoas que trabalham com um visto temporário, são os primeiros a serem despedidos e a ficarem em situações precárias. O presidente da Associação de Jornalistas, José Carlos Matias, revela este grupo é uma fatia de leão da mão-de-obra “representando metade da população ativa” − cerca de 200 mil pessoas.

“Já há uma redução, e estes são esses os primeiros a sofrer as consequências. Temos tido vagas de despedimentos, e não auferem das medidas de apoio do Governo. Há casos muito complicados, em que por causa das restrições à mobilidade, há pessoas que perderam o emprego, [a quem] expirou a autorização de permanência, mas não têm forma de regressar às Filipinas, ao Nepal, ou à Indonésia”, avança o jornalista.

"O Governo acionou vários mecanismos de apoio a residentes, cidadãos e empresas, alocando uma verba na ordem dos cinco mil milhões de euros"

O mesmo Matias garante que as instituições de solidariedade social como a Cáritas, têm estado muito ativas e dado apoio a essa franja de cidadãos. Há ainda redes de apoio nas comunidades, mas “existirão situações complicadas, certamente”.

Também Senna Fernandes fala das restrições para estes trabalhadores, apesar de Macau necessitar muito da mão-de-obra que vem de fora. O desemprego, mais 1.600 pessoas a engrossar a estatística, até meio de abril, atinge sobretudo estas populações. Ainda assim, e apesar deste crescimento, a taxa de desemprego da região mantém-se muito baixa, um pouco acima dos 2%.

Ainda em relação ao futuro do jogo, o diretor da revista especializada em economia, garante que depois de as concessões norte-americanas, a partir de 2003, terem levado o jogo da região a orientar-se para as massas, apoiando o negócio em resorts, lojas de luxo e restauração, os próximos tempos deverão marcar um regresso às origens dos casinos em Macau.

“Há quem considere, os analistas, que primeiro haverá um voltar dos jogadores VIP, grandes apostadores, por causa das questões ligadas à distância social”, identifica, mas alerta que esta nova realidade traz consigo os riscos de uma retoma ao que eram as características do fenómeno a um momento pré-operadoras norte-americanas –em que a indústria se valia dos “hardcore gamblers”, um modelo mais opaco e “com ligações mais duvidosas”.

A discussão sobre a necessidade de diversificação económica em Macau é quase tão antiga como o início do domínio dos casinos, e os resultados são sempre os mesmos: incipientes.

“O discurso de diversificação da economia é feito há muito tempo. Todos os anos acontece, e um elemento do Governo Central aparece a falar disso, mas este ano há uma tónica muito acentuada no tema. Será que vai haver uma diversificação mesmo à força? Não sei. Seria uma coisa muito boa”, avança.

Apoios e mais apoios: a grande rede de segurança de Macau

Certo é que o Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, realçou que o impacto da situação epidemiológica da pneumonia causada pelo novo tipo de coronavírus na economia de Macau deste ano vai ser “severo” e, em consequência, “as receitas do Governo irão descer significativamente”.

Por isso, os serviços públicos devem “gastar apenas quando precisam”, poupando nas despesas públicas, particularmente as despesas administrativas relacionadas com receções, lembranças, visitas ao exterior, entre outras.

Ainda assim, o governo local está a lançar um programa de investimento público. Ho Iat Seng anunciou um “aumento adequado dos investimentos públicos” em áreas como transportes, habitação e instalações governamentais.

O presidente da Associação de Macaenses elogia o líder do Executivo: “Não há uma situação de desolamento. O Governo aproveitou os alunos não poderem sair, não poderem ir às aulas, e aceleraram-se as obras públicas, nas ruas, nas avenidas. Isto nunca parou. Há um aproveitamento do tempo para adiantar as obras que de outro modo, seriam diferidas no tempo. Isto e outras medidas fizeram com que as pessoas mesmo estando numa situação de confinamento, não estivessem tão desencorajadas”.

Além deste apoio à economia local, há também um apoio direto ao consumo dos cidadãos. José Carlos Matias explica: “Estão a subsidiar a fundo perdido, ainda que numa parcela não muito elevada, as pequenas empresas, e também cidadãos”.

Primeiro, foi determinada a antecipação do subsídio anual, que o Governo distribui todos os anos por todos os cidadãos que têm o estatuto de residente − a grande maioria da comunidade portuguesa está nessa condição. É um subsídio de vale cerca de mil euros.

Depois, foi ainda distribuído um cartão de consumo para todos, no valor de 300 euros para o imediato, a que se vão somar mais 500 euros a partir de agosto e setembro. “Permite aos restaurantes, supermercados e pequenos negócios uma reanimação do consumo interno, e dá um alívio aos orçamentos familiares”, explica Matias.

A isto soma-se 500 euros em três meses consecutivos para todos os cidadãos residentes com um contrato de trabalho. Só quem está no escalão mais elevado de rendimentos não receberá. “Permitirá haver uma almofada para os residentes de Macau”, sinaliza o director da Macau Business.

A tudo isto, o economista Albano Martins soma os impostos. Se o valor máximo era de 12%, o Governo voltou a facilitar a vida das pessoas e das empresas.

“O IRC só para quem tem lucros acima de 3,7 milhões de patacas. São mais de 370 mil euros de lucro. As empresas de Portugal esfregariam as mãos se tivessem numa situação deste tipo”, qualifica.

O mesmo especialista acredita mesmo que não haverá aumento da dívida pública neste período, “pelo menos tendo em conta os números que foram apresentados”.

Portugueses não são os mais afetados mas não evitam dificuldades

A comunidade portuguesa não passa ao lado da crise, mas também não é das mais fustigadas. Miguel Senna Fernandes acha que se está a “safar bastante bem”.

Um número significativo de portugueses trabalha em escritórios de advogados, o que se explica por as normais legais terem vindo beber ao direito português a sua inspiração. No escritório ACS, Sérgio de Almeida Correia declara que se tem aguentado sem despedimentos, nem reduções salariais. “Temos de nos habituar a poupar nos meses bons, para a crise”.

Ainda assim, sublinha que os negócios imobiliários estão parados, e isso faz com que haja uma quebra “em todas as profissões liberais”. “Estamos a aguentar o melhor possível, sem despedir pessoal, e tanto quanto sei os escritórios em Macau ainda não despediram ninguém. Enquanto conseguirmos vamos fazê-lo”, promete.

"Macau tem uma reserva financeira invejável. Os cofres continuam a estar bastantes cheios, mas não sei quanto tempo pode aguentar"

Quanto tempo se aguenta uma situação como a atual? “Três ou quatro meses, mas seis meses ou um ano, ninguém aguenta”, responde Almeida Correia.

José Carlos Matias não tem dúvidas de que a comunidade foi afetada, desde logo a restauração “que tem uma presença com alguma importância”. Também os que trabalham ou têm pequenos negócios “seja na área de prestação de serviços” ou “eventos” tiveram “um impacto dramático”.

“Ficaram sem trabalho e sem rendimentos porque não existem eventos, foram todos cancelados. Em setembro ou outubro vão recomeçar”, diz Matias.

O mesmo enquadra ainda este fenómeno, afirmando que o sistema laboral local é “mais desregulado”, uma relação entre empregador e trabalhador que “pende muito para a entidade empregadora”. “O despedimento é muito mais fácil, faz-se mesmo sem ter de se invocar justa causa, havendo lugar apenas a pequenas compensações”.

As reduções salariais no seio da comunidade, segundo Matias afetam todos os sectores socioprofissionais − desde jornalistas, a advogados, e arquitectos por exemplo.

Senna Fernandes diz que a situação actual não pode ser “para uma eternidade”. “Macau tem uma reserva financeira invejável. Os cofres continuam a estar bastantes cheios, mas não sei quanto tempo pode aguentar”, salienta.

“Não podemos estar sempre confinados, porque não podemos matar a economia”, conclui.

Tiananmen e a saúde pública

E se é verdade que o recém-eleito chefe do Executivo da RAEM, Ho Iat Seng, tem visto a sua imagem reforçada pela forma como tem gerido esta crise, não é menos verdade que os próximos tempos vão trazer mais uma polémica política no território.

Tudo por causa da celebração do 4 de Junho, data que assinala o massacre de Tiananmen. Macau era juntamente com Hong Kong, um dos dois locais na China em que o evento era celebrado.

Em Macau, este ano, isso não deve acontecer. O Corpo da Polícia de Segurança Pública impediu a realização da vigília invocando questões de saúde pública, depois de primeiramente até ter dado ordens para a exposição fotográfica que todos os anos decorre na praça do Leal Senado, bem no centro da cidade, se realizar.

Os organizadores do evento, os democratas Ng Kuok Cheong e Au Kam San, deputados na Assembleia Legislativa, já interpuseram recurso em tribunal, não sendo a mesma conhecida para já.

O jornalista José Carlos Matias afirma que a decisão “deixa várias dúvidas”, porque a manifestação se realiza há quase 30 anos, e “porque primeiro tinha havido luz verde”. “Há várias questões mesmo de procedimento administrativo que os juristas questionam. O que foi dito publicamente não dissipa as dúvidas”, enfatiza.

Matias explica que em Macau a adesão à máscara é muito grande, e que no dia-a-dia as pessoas se juntam e vão a restaurantes. Por isso, a argumentação das autoridades parece não ter adesão à realidade que se vive no território.

No final da semana passada, o cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong pronunciou-se sobre o tema e ficou ao lado das autoridades locais. Afirmou que “contexto extraordinário” da pandemia da Covid-19 pode justificar a decisão.

“Na minha opinião pessoal”, dado “o contexto extraordinário, as regras não podem ser as mesmas, devem ser adaptadas às circunstâncias”.

Opinião bem diferente tem o advogado Sérgio de Almeida Correia. Pensa que a justificação dada pelas forças de segurança “não colhe e a decisão não tem nada a ver com a saúde pública”.

O jurista recorre à informação conhecida. “Não há casos há 40 dias, não há ninguém internado em tratamento ao Covid-19, não faleceu ninguém com Covid-19, a preocupação que o Governo tem em relação à vigília do 4 de Junho, ou às manifestações de carácter religioso, não são as mesmas que tem, por exemplo, em relação a pessoas em paragens de autocarros ou dentro de autocarros, e elevadores em edifícios comerciais e de escritórios”, exemplifica.

“Se a preocupação com a Saúde Pública fosse genuína, os autocarros não podiam circular como circulam em Macau, como se fossem latas de sardinha”, ilustra.

Almeida Correia entende assim que a saúde pública, neste caso, é “um argumento falacioso que esconde apenas uma decisão política e perfeitamente ilegal a luz da Lei Básica de Macau”.

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