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grande reportagem

Hong Kong. Um país, duas identidades

09 out, 2019 - 07:00 • João Carlos Malta , em Hong Kong

Uma lei de extradição de fugitivos que ia ser assinada com a China foi o rastilho para as ruas de Hong Kong explodirem em protestos, faz esta quarta-feira quatro meses. Ao início, as manifestações eram pacíficas, massivas e ruidosas. Mas embateram num manto de silêncio da parte do Governo de Carrie Lam e, desde então, a escalada de violência tem sido imparável. Os que saem à rua defendem que é a única forma de se fazerem ouvir pelo executivo e por Pequim. Um confronto sem fim à vista que fez emergir as diferenças latentes entre mundos opostos e identidades antagónicas.

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Aida segue sozinha no meio da multidão, nas ruas de Central, em Hong Kong. De passo seguro e punho em riste, grita as cinco exigências que os manifestantes reclamam ao Governo de Carrie Lam para porem fim aos protestos. Atrás dela, avista-se um mar de bandeiras que simboliza o apoio internacional que desejam que venha em seu auxílio. Uma delas é a bandeira portuguesa.

Estamos a 1 de outubro de 2019, dia em que a República Popular da China (RPC) comemorou o seu 70.º aniversário. A milhares de quilómetros dali, em Pequim, Xi Jinping preside à maior parada militar de que há memória. Brilho, cor e imponência para mostrar ao mundo o poder do país.

Aos 36 anos, Aida olha para esse poderio de outra forma. Do outro lado da fronteira, na China continental, apenas vê repressão e autoritarismo e não é isso que quer para a sua vida. Tem medo e é esse receio que serve de combustível à luta, a sua e a das centenas de milhar de pessoas que, todas as semanas, saem à rua em protesto, faz esta quarta-feira quatro meses.

Na tarde daquele 1 de outubro, há uma semana, a calma que se vivia em Hong Kong acabaria por contrastar com a violência ao cair da noite − um jovem de 18 anos foi baleado no peito pela polícia, naquela que foi a primeira vez em que as autoridades usaram balas reais contra os manifestantes.

Aida não tem dúvidas de que, se há algo que estes quatro meses mostraram, é que a população de Hong Kong está mesmo unida. As suas palavras espelham a determinação dos manifestantes. "Estes protestos são muito diferentes de todos os outros movimentos em que participei no passado", explica à Renascença.

“É verdade que Hong Kong faz parte da China, mas parece que a nossa possibilidade de nos exprimirmos é cada vez mais restringida. E o que eles nos prometeram [em 1997, ano da passagem de soberania do território para a China], como o direito a votar e os direitos democráticos, não está garantido. Isso faz-me sentir mesmo assustada, porque esta não é a Hong Kong em que nos habituámos a viver.”

Trabalhadora do setor cultural, a jovem crê que tudo o que se tem vivido na cidade nos últimos meses contribui para a construção e o reforço de algo inevitável, que já não tem volta atrás: uma nova identidade. Aida vê-se como uma filha de Hong Kong, e não da China. "Sei que, no fim de contas, somos chineses, mas vejo-me como honconguesa", diz, com metade do rosto tapado por uma máscara e toda vestida de preto, a cor adotada pelo movimento anti-Governo.

Para a funcionária de museu, a construção identitária é tanto política quanto cultural. “Somos muito diferentes da China, e não crescemos com nada que tenha a ver com eles. O nosso sangue é chinês, mas culturalmente e politicamente eles não se assemelham a nós.”

Um estudo da Universidade de Hong Kong divulgado em junho, antes de os protestos começarem, vai ao encontro do que Aida pensa.

Na sondagem a 1.015 pessoas, 71% dos inquiridos disse não que se sente chinês, com apenas 27% a revelar um sentimento patriótico em relação a Pequim. É o valor mais baixo desde que, há 22 anos, o território deixou de ser britânico. E entre os mais jovens, o número é ainda mais elevado, revelando um sentimento anti-chinês crescente na região administrativa.

O combate nas ruas começou como um protesto contra a lei de extradição de fugitivos, que permitiria às autoridades chinesas requerer o envio de suspeitos de crimes de Hong Kong para serem julgados no continente. Contudo, e ao final de quatro meses, transformou-se no segundo capítulo da luta pela liberdade política iniciada cinco anos antes do Occupy Central. Durante 79 dias, manifestantes ligados ao movimento saíram às ruas contra a possibilidade de ser a China a escolher os dois ou três candidatos que os cidadãos de Hong Kong poderiam eleger para chefiar o executivo da região autónoma, num contexto de sufrágio universal.

Balão de violência enche

O crescendo de violência nas ruas teve um novo marco a 1 de outubro. Após meses de protestos, pela primeira vez as lojas e os centros comerciais fecharam como medida de precaução, consequência dos avisos feitos pela polícia no dia anterior, quando promoveu uma conferência de imprensa para alertar para a possibilidade de haver "atentados terroristas" em espaços públicos frequentados por muita gente.

As autoridades aconselhavam as pessoas a não saírem de casa, uma ideia de imediato rejeitada por organizações ligadas ao movimento pró-democracia, que acusaram “hackers” da China continental de fazerem circular informações falsas sobre os protestos na internet.

Manifestante baleado pela polícia de Hong Kong no 70.º aniversário da República Popular da China
Manifestante baleado pela polícia de Hong Kong no 70.º aniversário da República Popular da China

Aida reconhece que a violência aumentou muito, e muito rápido, mas faz uma ressalva: “Não é que a apoie, mas a forma como o Governo reagiu e a maneira como a polícia atua contra os manifestantes é inaceitável. Não há nenhum canal para nos queixarmos sobre o que nos fazem. Isso não é justo”, queixa-se.

Uns metros atrás no desfile, até ali pacífico, segue Samuel, um professor de 40 anos. Também ele fala na questão da identidade para revelar a mudança que se sentiu nos últimos anos, e que o faz vir para a linha da frente.

Nasceu em Hong Kong e sempre se sentiu chinês. Mas algo mudou. “Nós pensamos que ser chinês inclui todos os que nasceram na China Interior ou em Taiwan. Eles julgam que isso é uma coisa que pertence só aos comunistas. O PCC capturou essa ideia. Por isso, acho que agora não me posso identificar como chinês”, explica o professor à Renascença. Para Samuel, como para outros manifestantes, o dia de aniversário da RPC é uma excelente oportunidade para Hong Kong demonstrar a raiva que lhe corre nas veias.

O sentimento espalhou-se, de facto, pelas principais artérias do território, onde encontramos o jovem Ng. Aos 20 anos, o estudante de serviço social olha para a China como um “monstro autoritário” que não quer saber o que o povo pensa.

“É por isso que todas as semanas saímos às ruas e pedimos mais. Queremos que o Governo responda às nossas cinco exigências”, explica, enumerando-as: queda da lei da extradição de fugitivos – a que o executivo já acedeu –, investigação independente à acção da polícia, manifestações não definidas como motins, amnistia para os manifestantes detidos e sufrágio universal para a eleição de chefe do Executivo e para a Assembleia Legislativa (LegCo).

Ng acha que a ideia de “um país, dois sistemas” – que, após a reunificação, permitiu que Hong Kong e Macau continuassem a praticar o capitalismo sob um alto nível de autonomia nos 50 anos seguintes, apesar da prática do socialismo na China continental – está a cair de podre depois de tanta promessa.

“Durou dez anos, mas agora podemos ver que está acabada e que foi destruída por Pequim. O nosso Governo, as nossas leis, e o nosso sistema judicial são controlados pelos chineses.” Logo de seguida, repete aquilo que, na rua, tantas vezes ecoa e que se tornou num mantra dos manifestantes. “Queremos libertar Hong Kong. Esta é a revolução da nossa geração.”

"As motivações foram muito claramente políticas, as pessoas vieram para a linha da frente defender os seus valores, mais do que questões da habitação ou de mobilidade social"

Mas o que é que isso significa? Independência? “Não, quer apenas dizer que queremos altos níveis de democracia e de liberdade. Achamos que ambas estão a ser destruídas e, por isso, saímos à rua para as proteger”, argumenta Ng, que no entanto reconhece que a probabilidade de o Governo acolher o que os manifestantes pedem “é muito baixa”. “Mesmo sabendo disso, queremos e temos de lutar”, contrapõe.

“Temos plena consciência de como será o amanhã se não fizermos nada hoje. Se agora lutarmos, podemos ter mais chances de o futuro ser melhor. Se desistirmos, então seremos Xinjiang [território autónomo no noroeste da China continental onde a repressão às minorias se tem intensificado nos últimos anos]. Eles pediram a independência e sofreram uma grande retaliação. Não queremos ser os próximos.”

Um sentimento que não pára de crescer

O deputado Fernando Cheung é um dos membros do LegCo mais ativos no terreno. Histórico do Partido Trabalhista, no campo pró-democracia, e a acompanhar os protestos de perto, Cheung identifica que a polarização da sociedade, acentuada com estas manifestações, vem de trás. Quando os jovens da cidade olham para a China, refere, “veem tudo muito negro”.

“Percecionam-na como obscura, como um lugar que não é civilizado, onde não há liberdade, não há lei, e economicamente atrasada, apesar de esta última ideia já estar desatualizada”, explica, ao mesmo tempo que alerta para o crescimento astronómico dos turistas vindos da China Continental nas últimas duas décadas.

Em 2018, contabilizaram-se 51 milhões de entradas, quase mais 15% do que no ano anterior. E com um volume tão grande de visitantes, o choque cultural entre as duas “Chinas” foi inevitável. O deputado dá exemplos: os produtos que os chineses do interior fazem desaparecer das lojas, como o leite em pó; os transportes públicos sobrelotados; e os espaços públicos, como os jardins, de repente “intransitáveis”.

A isto somam-se as escolas cheias de crianças que vêm de fora de Hong Kong, que dificultam a vida aos locais na hora de porem os seus filhos a estudar. E acima de tudo isto, a chegada dos milionários chineses, com as malas cheias de yuans, vista por muitos como a raiz do recente “boom” do imobiliário.

"Não é muito óbvio que o Estado de Direito e a liberdade" tenham sido as determinantes mais fortes dos protestos, reforça Ming Sing, sociólogo e professor da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Hong Kong, em entrevista à Renascença. "À medida que o tempo foi passando, e com a brutalidade policial a escalar e o Governo [local] e Pequim a não valorizarem os excessos das forças de autoridade e os abusos de poder, os cidadãos de Hong Kong passaram a ter exigências relativamente a estes assuntos − especialmente no que diz respeito à comissão independente para investigar o comportamento da polícia e à implementação do sufrágio universal."

Ming rebate aquela que tem sido a tese principal da China, que atribui esta revolta à falta de perspetivas dos jovens de Hong Kong no acesso ao mercado imobiliário, bem como à avaria no elevador social. E quanto a essas falhas, Pequim responsabiliza as elites locais.

“As motivações foram muito claramente políticas, as pessoas vieram para a linha da frente defender os seus valores, mais do que questões da habitação ou de mobilidade social”, sublinha o professor, apoiado em vários estudos que acompanhou como académico e em que os entrevistados revelaram que, mesmo sem o aumento das desigualdades e o “boom” do mercado imobiliário, teriam vindo para as ruas de qualquer maneira.

“O que os motiva não é só a questão económica, valorizam as liberdades e o Estado de Direito que os diferencia da China e de Macau.” Em última instância, acrescenta, a principal consequência social deste período de revolta será a fraqueza do Governo local ficar a nu. "Muitos ganharam a consciência de que o executivo de Hong Kong está a mando daquilo que é a linha de Pequim.”

O investigador doutorado em Harvard diz que tentar passar a lei de extradição foi um erro crasso. Muitas pessoas que eram neutras politicamente passaram para o campo pró-democracia, por acharem que aquela era uma espécie de “firewall” que seria derrubada entre os “dois sistemas” e que contribuiria para Hong Kong ser “uma cidade mais chinesa”.

Face a isto, Ming crê que a tensão entre Hong Kong e a China não vai desaparecer. “Muitos dos mais jovens não podem emigrar, não têm capacidade financeira para partir, vão ficar aqui para lutar.” Este grupo que, até agora, tem sido "muito orgânico e muito adaptativo às mudanças e às restrições" vai mudar, vaticina. "Penso que mais pessoas vão aderir ao movimento democrático, da luta pela liberdade ao Estado de Direito, nos próximos anos."

O deputado Fernando Cheung concorda que muitas pessoas acordaram para a ideia de que sem democracia “a segurança” e “o que conquistaram” podia estar comprometido. É nesse contexto que o trabalhista refere o surgimento de uma nova identidade, a hongconguesa, que na sua opinião se define e cresce “por oposição à chinesa”.

As críticas à violência − que com a instauração da “lei anti-máscaras” atingiram um patamar sem precedentes, com ataques a lojas detidas por chineses do continente, bancos, e estações de metro da MTR, que esteve bloqueado durante mais de um dia − são enquadradas pelo político.

“Se isso tivesse acontecido no início do movimento, os manifestantes teriam perdido todos os fundamentos morais. Mas como as autoridades fizeram ainda pior com os manifestantes, o povo ainda apoia muito o movimento.”

Uma portuguesa no meio do conflito

A crescente tensão na cidade fez com que a portuguesa Ana, de 34 anos, tivesse de mudar uma parte significativa da sua rotina. Chegou à capital financeira da Ásia há cinco anos e meio, bem no epicentro do "Occupy Central", que ficou conhecido como “o movimento dos guarda-chuva”.

Habituada a que nem sempre tudo seja pacífico, a jovem lusa, que trabalha numa multinacional, afirma que o que mais mudou é que agora os planos para a sua família sair de casa, sobretudo ao fins de semana (período em que se concentra a maior parte das manifestações), têm de ser delineados com antecedência e com muito mais detalhe.

“Temos de ver qual é o calendário dos protestos, quais é que são as áreas e quais é que são os dias. Não é como antigamente, em que podíamos sair e não tínhamos preocupações. Agora temos de ter cuidado em termos de transporte, porque o Metro pode estar fechado ou as estradas podem estar cortadas. E se formos para áreas mais perto dos protestos, potencialmente temos de pensar no que temos vestido, porque os manifestantes usam apenas o preto”, exemplifica.

Ainda assim, Ana acredita que Hong Kong continua a ser uma cidade segura. Não vive numa zona em que normalmente ecludam desacatos e, apesar de bastante dispersos pelas várias ilhas que dão forma à cidade com 7,4 milhões de habitantes, são protestos normalmente circunscritos a determinadas zonas.

“É verdade que a qualquer momento pode começar a haver um confronto com a polícia, mas no local onde vivo e trabalho não sinto estar em perigo, nem eu nem a minha família”, explica. “Isso só aconteceria se estivéssemos a participar nos protestos.”

Olhando em volta, a portuguesa diz ver uma cidade cada vez mais dividida, em que os extremos têm dificuldade em se tocar. E quem está no meio não quer levantar ondas. “Eu evito falar sobre os protestos, porque parece que só há os bons e os maus”, identifica. Ao mesmo tempo, apercebe-se no dia a dia que o vandalismo a que alguns manifestantes recorrem está a levar o movimento a perder o apoio popular.

O outro problema que Ana aponta com desagrado é o facto de as pessoas na cidade olharem de forma muito estereotipada para quem fala mandarim e vem do outro lado da fronteira. “Pensam que se és da China, és automaticamente pró-Pequim.”

Ana entende o que está na base da frustração dos que protestam, mas defende que, com o passar do tempo, as coisas estão a deixar de ser lineares.

“A polícia, cada vez mais, faz o que quer, a Carrie Lam não vem falar e a frustração entre os manifestantes aumenta, porque não existe qualquer tipo de direção e de resposta por parte do Governo. As pessoas estão cansadas, e já não sabem onde é que esta violência vai parar. Inicialmente, dava-se muita razão aos manifestantes porque se tratava da lei de extradição. Agora é tudo muito mais cinzento. Não se percebe como é que isto vai acabar.”

E Pequim no meio disto tudo? "Se fosse noutro lado da China, seria completamente diferente", diz a portuguesa, referindo que o regime chinês tem lidado com pinças com o que está a acontecer em Hong Kong, pela grande preocupação com a perceção internacional.

O setor empresarial tentou passar à margem deste conflito em Hong Kong ao início, mas à medida que os meses foram passando isso tornou-se cada vez mais complicado. Funcionária numa multinacional com presença em Hong Kong, a jovem diz que, apesar de não haver ordens expressas para não participar em protestos, a ideia tácita é a de não colar o nome das empresas a qualquer movimento social e político.

“A mensagem tem sido de completa separação da esfera pessoal e da esfera profissional, de haver cuidados quando as pessoas publicam nas redes sociais”, explica. “Nada de novo”, acrescenta. “Isso não restringe a minha liberdade.”

Não restringe a de Ana, mas há casos diferentes, como um que envolveu a companhia aérea Cathay Pacific e que culminou no despedimento de funcionários por ligações aos manifestantes em Hong Kong, após pressões de Pequim. Esse momento mostra um novo rumo na forma como Pequim lidar com este tipo de eventos.

“A China está cada vez mais numa posição restritiva em relação à forma como lida com as multinacionais. Quando se está a falar com a China, não há uma separação entre a política e os negócios. É tudo a mesma coisa. Os grupos económicos, como a Calvin Klein ou o BNP Paribas, que queiram querem fazer negócios aqui, têm de obedecer àquela que é a visão do Partido (Comunista Chinês)”, avalia Ana.

Apesar da grande confusão que reina na cidade, não deixa de fazer reparos ao trabalho dos jornalistas, sobretudo os que trabalham para os media internacionais, que acusa de passarem uma imagem exagerada do que ali se passa e de estarem reféns da "cultura do soundbite".

“O que sinto é que há uma desinformação completa. Leio manchetes em Portugal que falam de batalha campal, a BBC com o título ‘Sangue nas ruas’... Não são coisas que não aconteçam, mas a forma como as notícias são escritas está a criar ainda mais esse antagonismo. É um sinal dos tempos, em que não há muito a preocupação de dar o outro lado. Fala-se de uma cidade fantasma, mas não é isso que vemos. Isto cria maior paranóia nas pessoas e, se se começar a fabricar uma visão apocalíptica, vai alimentar-se esse medo.”

Uma batalha de perceções

De que o conflito se trava agora no campo mediático restam poucas dúvidas. Pelo menos essa é a ideia expressa por Eric Wishart — experiente jornalista escocês que está a trabalhar na cidade — e que é atualmente vice-presidente do Clube de Jornalistas Estrangeiros (CCE) em Hong Kong. “Esta tornou-se também numa batalha de propaganda”, afirma peremtoriamente.

“Há muitos rumores e a situação não é clara. Tornou-se complexa, porque as linhas entre o protesto e o vandalismo são cada vez mais difíceis de traçar. Como é que se pode justificar que se pegue fogo ao MTR, ou em bancos chineses, apenas porque são detidos por ‘mainlanders’? Nestes conflitos, a linguagem é sempre problemática”, aponta o repórter, que conta com uma vasta experiência em cenários de guerra, como a Síria.

Wishart acredita que este tipo de choque social e político é sempre mais difícil de cobrir para os jornalistas locais, que têm de acumular o trabalho de repórter com a gestão das suas próprias emoções, mas ressalta que "os jornalistas não podem cobrir estes protestos com a perspetiva de que os manifestantes são bons e a polícia é má, os chineses são maus e os de ‘honcongueses são’ bons". Como jornalistas, adianta, "temos de ser independentes e cobrir os factos tal e qual os vemos.”

Também não acha que a liberdade de imprensa e de expressão estejam comprometidas, no sentido clássico de haver uma censura por parte do Governo. As ameaças têm surgido através da interação entre a polícia e os profissionais dos media e aí, regista-se uma deterioração das relações.

Desde que as manifestações começaram já se registaram vários casos de jornalistas feridos, alguns com gravidade, como por exemplo a repórter indonésia que perdeu a visão num dos olhos depois de ter sido atingida com uma bala de borracha disparada por um agente.

“Um polícia que tem uma arma é treinado. Aquela jornalista estava claramente identificada e ele disparou para um grupo bem identificado, em que todos vestiam um colete amarelo em que se podia ler ‘imprensa’. Foi totalmente inaceitável. E sim, sentimos que somos deliberadamente um alvo.”

Com grande parte da sua carreira a trabalhar para agências noticiosas internacionais de renome, Wishart até concede que, muitas vezes, quando se se está num motim, pode ser difícil escapar ao gás lacrimogéneo ou a balas de borracha. Contudo, diz acreditar que há intencionalidade da polícia nestes episódios, com um impacto direto "sobre a liberdade de imprensa".

"O mundo tinha o direito de saber o que estava a acontecer no LegCo e os jornalistas têm o dever de informar. É inaceitável que haja um profissional acusado. Não me lembro de ver isto em qualquer outra sociedade democrática, é muito preocupante"

Outro episódio preocupante para o trabalho dos jornalistas resulta de uma decisão recente das autoridades judiciais. O editor de um portal online local, o "Passion Times", Ma Kai-chung, foi acusado de entrar no LegCo a 1 de julho deste ano, e foi levado a tribunal. O caso remonta ao dia de comemoração do 22.º aniversário de passagem de soberania de Hong Kong para a China, em que um grupo de centenas de manifestantes entrou na Assembleia Legislativa.

Wishart não esconde a revolta em relação ao caso. Com esta ação judicial, defende, é o trabalho dos media que fica condicionado e comprometido. “O mundo tinha o direito de saber o que estava a acontecer no LegCo e os jornalistas têm o dever de informar. É inaceitável que haja um profissional acusado. Não me lembro de ver isto em qualquer outra sociedade democrática, é muito preocupante.”

Polícia em tensão máxima

A polícia de Hong Kong tem estado debaixo de fogo praticamente desde o início dos protestos, acusada pelos manifestantes de uso de força excessiva e má conduta profissional. Com o evoluir da situação no terreno, as tensões não diminuíram, com agentes a usarem balas reais e a atingirem dois manifestantes, um deles ferido com gravidade no peito.

Por outro lado, passaram a ser alvo dos mais radicais nas ruas, que os atacam quando os apanham isolados. São frequentemente atingidos por cocktails molotov lançados pelos jovens vestidos de negro.

A relação entre os cidadãos em geral e a polícia deteriorou-se de tal forma que uma das exigências essenciais dos manifestantes é que seja aberto um inquérito independente à atuação policial, uma iniciativa apoiada por mais de 80% da população. A situação atingiu um tal nível que até as Nações Unidas e a Amnistia ecoaram o mesmo pedido.

Lawrence Ho é especialista em estudos sobre a ação das forças de segurança. Professor na Faculdade de Educação de Hong Kong, à Renascença ajuda traçar um retrato sobre o antagonismo das forças de segurança com os locais. Antes de junho, assegura, o ambiente não era hostil. As coisas mudaram com o eclodir dos protestos, acompanhado de um certo ceticismo que já existia desde 2014, com o Occupy, e que entretanto se transformou em desconfiança.

O dia 12 de junho, em que se registaram os primeiros confrontos sérios entre manifestantes e a polícia — no dia em que seria votada a lei de extradição no LegCo — e o assalto àquele edifício por uma multidão em fúria a 1 de julho marcaram dois pontos de viragem.

Depois disso, outros episódios fizeram adensar as críticas ao comportamento da polícia. Um dos mais emblemáticos ocorreu nos Novos Territórios (designação usada para parte das terras dadas pela China a Hong Kong), mais precisamente na estação de Metro de Yuen Long, a 21 de julho, quando um grupo de homens vestidos de branco e munidos de paus atacou indiscriminadamente manifestantes vestidos de preto.

As imagens depois conhecidas mostram não só polícias a sair do local quando os ataques começaram como, já no final das agressões, se vê os atacantes a passarem pelas forças da autoridade sem que nada aconteça. Pelo meio, há registo de várias chamadas das vítimas para a esquadra da polícia durante o incidente, nas imediações do lado. As autoridades só chegariam mais de meia hora depois de os agressores terem abandonado o local.

Do episódio resultaram 45 feridos, entre os quais Lam Cheuck-ting, um deputado do campo pró-democracia. Nessa noite não houve detenções e só dias depois é que alguns suspeitos foram presos. O incidente fez disparar as suspeitas sobre a atuação da polícia e serviu de munição aos manifestantes, que passaram a denunciar o que dizem ser a conivência entre as tríades e as forças de segurança.

“Este episódio não pode ser defendido de forma fácil", diz Lawrence. "Não parece ser razoável. Como é que podem deixar as pessoas serem agredidas e a polícia desaparecer? O Governo e a polícia continuaram a fugir das responsabilidades.”

Antes, já o assalto ao LegCo deixou muitas dúvidas sobre a ação daquela corporação. “Aumentou os rumores e a desconfiança, porque em circunstâncias normais os homens que estavam a proteger o edifício nunca seriam retirados.”

Ho recorda a forma como o comissário da polícia de Hong Kong, Allan Lau, justificou essa retirada, com o argumento de que não podiam usar gás lacrimogéneo para dispersar a multidão num espaço que não era ao ar livre. O mesmo responsável invocou que uma resistência dos agentes podia conduzir a várias vítimas. Mas "a verdade é que ninguém ou muito poucas pessoas sabem o que se passou”, afiança o jornalista.

O argumento de Allan Lau acabaria por cair por terra pouco depois, quando a polícia acabou por lançar gás lacrimogéneo dentro da estação do MTR de Kwai Fong, no que Lawrence identifica como “mais um episódio de colapso da relação de confiança com a população”.

Sobre uma investigação independente a estes e outros episódios, o professor da Faculdade de Educação da Universidade de Hong Kong diz que o que se deve discutir não é se a mesma deve existir, mas se vai ou não concretizar-se. Isto sobretudo depois de as forças policiais terem quase sempre assumido a liderança na gestão do conflito, pelo menos publicamente, face à inação política por parte do Governo de Carrie Lam. “Penso que o inquérito independente daria o exemplo e poderia funcionar”, sustenta Lawrence Ho.

A existir, será agora assombrada pela recente decisão da chefe do executivo de recuperar a lei anti-máscaras, um dispositivo legal que remonta à era colonial e que fora usado pela última vez em 1967. Sobre isso o especialista assegura que "a viabilidade da sua implementação é duvidosa".

Lawrence Ho crê que o objetivo era aumentar o medo para reduzir o número de manifestantes nas ruas. “Isso até pode acontecer no curto prazo, mas a longo prazo a lei de regulamentos de emergência é muito controversa, porque tem muitas outras ferramentas que podem aumentar o poder autocrático de Lam.”

Neste contexto, uma coisa é certa: se os ânimos já estavam exaltados, esta medida apenas contribui para acicatá-los, acrescenta.

Agora mais do que nunca, é difícil antecipar o fim da escalada de violência. O sinal foi dado logo no final da semana passada, mal a lei anti-máscaras foi recuperada, com a cidade a explodir em novas ondas de violência. Houve múltiplas barricadas em estações de metro, que levaram a MTR a fechar o sistema de transportes durante várias horas. Os centros comerciais, que estiveram encerrados a 1 de outubro, voltaram a fechar portas com receio de novos ataques. Muitos supermercados e lojas também não abriram ao público, depois de várias geridas por chineses do continente terem sido alvo do descontentamento dos manifestantes.

Do outro lado do rio, a “pérola” do “um país, dois sistemas”

Sessenta quilómetros e uma hora de barco pelo rio das Pérolas separam Hong Kong de Macau. Mas a proximidade fica-se pela geografia.

Resultantes da passagem de soberania de Portugal, no caso de Macau, e do Reino Unido, no caso de Hong Kong, para Pequim, as duas Regiões Autónomas Especiais (RAE) da China são, há duas décadas, palcos da implementação do princípio “Um país, dois sistemas”, implementado pelo antigo Presidente chinês, Deng Xiaoping.

Macau tem sido referida pelo atual Presidente da RPC, Xi Jinping, como um exemplo para a nação e pelo Partido Comunista Chinês como o "bom aluno". E neste momento de grande tensão, a diferença entre as duas regiões é ainda mais notória.

No dia em que Hong Kong queimava bandeiras da China, durante a comemoração do 70.º aniversário da RPC, em Macau, na icónica Praça Ferreira do Amaral, uma multidão saiu à rua para ver o fogo de artifício, ao pé de uma rotunda cheia de bandeiras chinesas que, durante os vários dias de festejo, inundaram as ruas.

O que explica tão grandes diferenças entre duas regiões com um passado histórico que se toca? Jason Chao, famoso ativista pró-democracia e ex-líder da Associação Novo Macau, garante que o que realmente as distingue "é o desejo de autonomia" e o que cada parte está disposta a fazer para a alcançar.

Chao recorre a um exemplo, que usa com frequência para descrever o que distancia as duas regiões e que tem o Gabinete de Ligação da República Popular da China como protagonista.

Em Hong Kong, "antes da sua recente fortificação", esse desejo de autonomia “tem sido um ponto de partida para manifestações contra a China". Macau, contrapõe, "também é um ponto de acesso para manifestações", mas esses protestos mobilizam "pessoas que têm problemas com o Governo de Macau e que gostariam da intervenção do Governo da China Central nos assuntos locais", explica o ativista, atualmente a estudar no Reino Unido.

A deputada da Assembleia Legislativa de Macau, Agnes Lam, baliza a as causas das diferenças por outro prisma. Para Agnes, os governos coloniais de Portugal e do Reino Unido foram muito diferentes.

“As pessoas em Hong Kong (a maioria das elites políticas) exigiram a democracia nos anos 1980, quando estavam a negociar os termos. No entanto, em Macau, não havia uma voz forte para a democracia no futuro sistema político”, começa por explicar. A isto soma-se, segundo a deputada, a crença das elites políticas locais de que Macau “é pequeno demais” e de que as pessoas tinham “pouca educação para eleger o seu chefe executivo”. Portanto, a Lei Básica de Macau [constituição do território] não replicou esse artigo (uma pessoa um voto para eleger o chefe do executivo) da Lei Básica de Hong Kong.

Em geral, acrescenta Chao, o povo de Macau está menos disposto a "resolver os assuntos por sua iniciativa".

“Os jovens macaenses aceitam a ideia de que ingressar no serviço público é a melhor perspetiva de carreira. A cultura de obediência está profundamente enraizada na educação dos mais novos. Os jovens de Hong Kong, por outro lado, querem assumir o controlo das próprias vidas e o seu futuro”, argumenta.

A dependência quase exclusiva da indústria do jogo, sendo que a maior parte dos que chegam à cidade para jogar são visitantes da China Interior, deixa Macau vulnerável às regras que Pequim queira impor.

Para o ativista democrata, a explicação económica não pode ser vista isoladamente. “Macau geralmente oferece melhores salários para o mesmo tipo de emprego, em comparação com as regiões vizinhas, Hong Kong incluído”, indica. “Poucos jovens de Macau têm capacidades e conhecimentos profissionais para obterem o mesmo nível de rendimento noutros lugares. Depois de conseguir um emprego bem remunerado no Governo ou na indústria do jogo, não há muito incentivo para sair.” E isso, defende, gera um certo imobilismo na cidade, que no próximo ano atingirá o PIB per capita mais elevado do mundo.

Contudo, Jason dirige as críticas mais duras às "vistas curtas" dos seus conterrâneos. “As preocupações da maioria são, muitas vezes, limitadas a questões imediatas da comunidade e de meios de subsistência. Obviamente, não digo que isso não seja importante. Mas a luta de cada um é apenas a de resolver os seus problemas. A relação entre a comunidade e o sistema político é mais abstrata, não é tão direta.”

Em quatro meses houve alguns momentos de solidariedade dos macaenses em relação ao que se passa em Hong Kong. Mas mesmo as iniciativas que emergem na cidade têm sido cortadas pela raiz, quer pela ação das forças de segurança, quer pela via do poder judicial com a conivência do Governo.

Até agora quatro manifestações foram proibidas. A primeira, em agosto, visava exprimir solidariedade pelas vítimas da violência policial em Hong Kong. Foi rejeitada pela polícia. As outras três, convocadas por um coletivo liderado por Jason Chao, pretendiam defender as convenções internacionais anti-tortura face à atuação da polícia, especialmente a de Hong Kong. Foram proibidas pela PSP e pelo Tribunal de Última Instância (equivalente ao Supremo Tribunal de Justiça em Portugal).

Em todas as ocasiões, os argumentos para calar as iniciativas foram os mesmos: o pressuposto de que as manifestações se baseavam em factos falsos, sendo por isso "um mero exercício do direito à crítica”, e o potencial de serem consideradas uma ingerência de Macau nos assuntos internos de Hong Kong.

Em conversa com a Renascença, Jorge Menezes, advogado português a viver no território há vários anos, não poupa nas críticas.

“Os juízes dizem que, se fosse permitida, poderia pensar-se que a polícia concorda com as opiniões dos manifestantes. Decidir que a polícia pode proibir manifestações de cujas ideias discorda é um caso de censura policial sufragada por juízes, uma violação crassa da liberdade de expressão e um passo na direção do obscurantismo. Aliás, a lei é clara: as manifestações não dependem de autorização da polícia”, começa por considerar.

Em relação ao argumento usado pelo TUI de que os proponentes das manifestações extravasam os limites da crítica, o advogado avança que, “pela primeira vez na história de Macau, normas da Constituição da China são usadas para restringir um direito fundamental em Macau, o que constitui uma violação grave da autonomia de Macau”. E atira mais longe: "Achar que juízes e polícias podem policiar a verdade constitui uma posição orwelliana."

Menezes defende que a Justiça de Macau tem lidado mal com os casos relacionados com Hong Kong, onde, apesar dos problemas sérios já registados, "dezenas de manifestações têm sido permitidas".

“Em Macau foram todas, sem exceção, proibidas pela polícia. O desnorte é tal que uns jovens que colaram uns cartazes em paredes, em solidariedade com as lutas de Hong Kong, foram detidos e informados que praticaram um crime de danificação de propriedade. As autoridades querem criminalizar o conteúdo das mensagens que lhes desagradam.” Tudo isto, sublinha, com a concordância do TUI, autor de "um texto de cariz político e não jurídico" que proíbe a manifestação "por não concordar com o conteúdo da mensagem”.

Há quem faça outra leitura da situação em Macau, como é o caso da deputada Agnes Lam, que vê nisto uma assumida vontade da região em não ter nada a ver com o que se passa do outro lado do rio. "Os protestos em Hong Kong são muito mal vistos pela maioria generalizada dos moradores” de Macau, defende.

Jason concorda que o povo de Macau não tem simpatia pela “luta do povo de Hong Kong pela democracia nas últimas duas décadas”. É por isso, acrescenta, que “Macau não entende o recurso à violência”.

Esta posição tem também raízes culturais e históricas. Há a ideia entre os residentes de Macau de que os habitantes de Hong Kong os desprezam, o que, para Chao, é verdade até certo ponto.

O estudante de Tecnologias de Informação diz ainda que as autoridades locais e as da China “querem erradicar qualquer sinal de apoio a Hong Kong” em Macau. “A China quer que Macau seja um exemplo mais ‘bem-sucedido’ de 'um país, dois sistemas', pois o de Hong Kong está a falhar completamente.”

Face a isto, Agnes Lam diz ser altamente improvável que haja um efeito de contágio a Macau, até porque a região tem uma "tolerância muito baixa" para movimentos sociais violentos.

Os imigrantes e o futuro incerto

De volta a Hong Kong, um desvio na rota dos manifestantes e uma subida aos passadiços superiores que ligam os centros comerciais no coração da cidade permitem encontrar centenas de imigrantes sentadas em caixotes de cartão. Aí passam a tarde a comer, beber, jogar e a conversar.

Rosário, empregada doméstica há vários anos no território, acompanha com atenção o que se passa nas ruas mas que não se quer envolver nos protestos de forma nenhuma. Relutante em falar pelo medo de ser reconhecida, só aceita conversar quando lhe garantimos que não haverá recolha de imagens. E aí declara que o que se passa em Hong Kong "não é bom, afeta toda a gente".

“Não sei se isto mexe com os que estão na rua, mas para nós, pessoas comuns, não penso que seja útil. De repente, deixámos de saber para onde é que tudo isto vai. Quando as manifestações começam eles fecham os transportes para toda a gente”, queixa-se Rosário, uma das 398 mil empregadas domésticas a trabalhar em Hong Kong.

Com um dia de descanso por semana, normalmente ao domingo, é nesse dia que podem passear pelo centro da cidade — os filipinos principalmente na zona de Central, os indonésios no Victoria Park, em Causeway Bay. Ambos os locais têm centros comerciais, restaurantes e parques. Mas nas últimas semanas, todos esses espaços foram tomados pelos protestos.

“Para onde é que podemos ir assim? Que transportes podemos usar para ir para casa?”, questiona Rosário.

A filipina até entende as razões dos manifestantes, mas não acha que protestar leve a algum lado. “Não acho que o Governo lhes vá dar tudo o que eles querem. Quando eles começaram isto, a questão era a lei de extradição e isso a Carrie Lam já lhes deu. Não sei porque é que eles continuam. Isto são motins.”

Confrontada com a vontade de uma democracia mais participa que mobiliza muitos dos manifestantes, olha para o lado e diz que em Hong Kong as pessoas "já têm muita liberdade".

"Eu também tenho. Nós somos livres, podemos fazer tudo o que queremos, e eles também. Por isso não entendo porque é que eles têm de fazer estes motins e partir tudo no MTR. Se eles podiam consegui-lo de forma legal, porque é que fazem isto?”

Descendo as escadas do passadiço, e de regresso à marcha dos manifestantes, é a Harcourt Road que aparece mesmo ali à frente. A Assembleia Legislativa (LegCo) já surge no horizonte. A confusão adensa-se. Ao longe já se avistam nuvens de fumo e a água azul que sai dos canhões de água a que a polícia recorre para dispersar a multidão.

Uns metros antes de um viaduto, onde muitos dos manifestantes se confrontam com a polícia, está um casal sentado na entrada de um edifício. Chat é engenheiro e tem 32 anos, Agnes tem 28 e é secretária.

Com o marco de 120 dias consecutivos de protestos a aproximar-se, o casal diz que o Governo continua "surdo" mas garante que não vão desistir. Não podem. Há um sentimento de “agora ou nunca” que vem à tona em quase todas as manifestações.

Chat volta a 1997 para explicar como Hong Kong chegou a este ponto. “Os primeiros dez anos correram bem, porque tínhamos esperança. Não era apenas uma questão de dinheiro, acreditávamos que o futuro fosse bom."

Nesse rescaldo da transição de soberania, o jovem foi um dos que acreditou no princípio "um país, dois sistemas" exportado pela China continental. Com o tempo, esse otimismo foi desaparecendo, entre outros motivos, aponta, porque o executivo só beneficia os mais poderosos.

“Pensámos que Pequim tinha o controlo a partir do exterior, mas que nós seríamos livres para ter as nossas vidas. Poderíamos ganhar dinheiro, ter empregos e comprar casas, mas nos últimos 20 anos vemos que os preços dos apartamentos subiram tanto. Quais são as oportunidades reais para os mais jovens? Não conseguimos ver o futuro.”

Muito mudou nos últimos anos, aponta o engenheiro. A maior parte dos restaurantes pertence agora a chineses, a água e a eletricidade também. “Eles dizem que nos podem cortar a comida e a luz. A atitude da China tem sido má.”

É aqui que Agnes intervém. "O anterior chefe do executivo [CY Leung] quis impor uma lei para controlar o nossa liberdade de expressão e agora querem mais. Eles querem que Hong Kong seja mais uma nova cidade chinesa?”, pergunta a jovem secretária.

Chat remata com um exemplo: o controlo da China sobre o que se faz no ciberespaço. “Nós podemos usar o Facebook, o Youtube, mas se eu for à China apenas podemos aceder ao Weibo e ao Wechat. Não podemos escrever nada de que o Governo chinês não goste. Se o fizermos pode ser rejeitado.”

Agnes interrompe outra vez para dizer “Tiananmen”. A palavra está proibida de ser pesquisada do outro lado da fronteira de Hong Kong. “Mesmo agora eles querem mandar na nossa cultura e na forma como os estudantes aprendem. Era isso que queriam também, no passado, e respondemos com o ‘escolarismo’ [reação dos jovens ao programa que o Governo quis aplicar, sob o qual teriam de aprender o amor à pátria]. Eles querem moldar a forma de pensar dos jovens desde que são crianças. Querem fazer-nos uma lavagem cerebral.”

A conversa evolui depois para a balcanização da atual sociedade de Hong Kong, em que até as famílias estão divididas. E aí tanto Chat como Agnes têm experiências pessoais para partilhar.

“O meu pai é um ex-polícia, já reformado. A forma de pensar dele é a de que precisamos de disciplina e de obedecer às ordens dos superiores.” Apesar disso, o engenheiro diz não abdicar dos seus ideais antes de os enumerar: paz, justiça e direitos humanos. Até porque, mesmo estando em pólos antagónicos, diz ter a sorte de ter pais que o amam. "Optámos por não discutir muito estas coisas."

Já Agnes, cujos pais nasceram e cresceram na China antes de partirem para Hong Kong em 1995, tinha ela quatro anos, confessa que o pai preferia que não se juntasse às manifestações. "Não nasci cá, mas fui educada aqui e aprendi o que é a liberdade e a democracia", diz.

De súbito, a entrevista é interrompida. Os gritos de pânico começam a aumentar de tom, há pessoas a fugir. Chat e Agnes traduzem o cantonês dos gritos, audíveis mas imperceptíveis para quem não fala a língua.

Foi lançada mais uma ronda de gás lacromogénio ali bem perto e há que abandonar o local o quanto antes. Põem as máscaras e partem em passo acelerado, lançando um desejo: “Mantém-te em segurança.”

Isso é cada vez mais difícil de alcançar em Hong Kong. E ninguém sabe, nem se atreve a prever, quando é que a cidade voltará a encontrar paz.

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