29 set, 2024 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, assegura, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, que na segunda sessão da 16ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, que arranca na quarta-feira, em Roma, serão encontradas novas soluções na organização da Igreja.
D. José Ornelas será um dos 368 membros com direito a voto na Assembleia Sinodal e acredita ser possível “encontrar soluções novas, mesmo em questões de importância”.
O também bispo de Leiria-Fátima destaca a importância de Sínodo gerar o ambiente necessário a “discutir a Igreja na diversidade das suas culturas”, uma vez que “muitos dos temas fraturantes têm a ver com culturas diferentes” e é necessário “encontrar caminhos comuns”.
"Embora o Sínodo não tenha sido convocado para tratar especificamente do problema, o papel da mulher na Igreja, certamente que vai ser objeto de reflexão”, aponta.
O presidente da CEP diz que os “temas que podem ter um carácter fraturante” não assustam e centra o debate sinodal na importância de refletir sobre a identidade própria da Igreja, sobre o seu modo fundamental de estar à escuta de Deus, à escuta uns dos outros. "Um dos males da Igreja tantas vezes tem sido esse de não escutar”, sentencia D. José Ornelas.
No percurso até agora realizado, em particular na questão dos abusos, o presidente da CEP reconhece a existência de pontos a melhorar na forma como a Igreja tem tratado a questão e sublinha que o processo de indeminização às vítimas visa “reconhecer o mal que foi feito às pessoas” e ajudar as vítimas.
D. José Ornelas reconhece a dificuldade das vítimas em terem de repetir a descrição dos abusos. Depois de o terem feito à Comissão Independente, voltam a recordar o sucedido no âmbito do processo de indeminizações, coordenado pelo Grupo Vita, mas D. José garante que se fez tudo o que era possível para atenuar as situações.
"Muitos dos temas fraturantes têm a ver com culturas diferentes"
Está de partida para Roma, onde já teve a oportunidade também de trabalhar em 2023. Vamos viver um momento histórico?
Já é histórico aquilo que vimos fazendo desde 2021, porque este Sínodo tem muito de novo, seja na forma de organizar seja, até, pela novidade de um sínodo sobre sinodalidade, que parece uma tautologia, mas não é. Trata-se de refletir sobre a identidade própria da Igreja, do seu modo fundamental de estar à escuta de Deus, à escuta uns dos outros e a programar e a pensar e a discernir em comum o que é para a Igreja. Isto, em cada época, e numa época tão desafiadora como esta, sem dúvida que é um caminho útil. A história faz-se depois. É útil para o presente. É fundamental.
O relatório da CEP sobre a segunda fase da consulta sinodal lançada pelo Papa apelava a um maior discernimento sobre as questões fraturantes e o papel das mulheres na Igreja. Espera que isso seja feito?
O documento fundamental que vai guiar os trabalhos do sínodo, o "instrumentum laboris", já está aí, mas também não é um dos temas fundamentais do sínodo. O sínodo não foi convocado para tratar especificamente este problema. Agora, tratando-se de sinodalidade, o papel da mulher está lá e, certamente, vai ser objeto de reflexão com pontos que são mais partilhados a nível geral. Outros pontos podem ter um carácter fraturante, mas isso não é um caminho que assuste ninguém.
O que eu acho importante é que este sínodo crie um ambiente e uma metodologia de trabalho que nos permita enfrentar também esses problemas de um modo novo, de um modo que interpela o povo de Deus e que lhe dê possibilidade de se manifestar e também a Igreja na diversidade das suas culturas. Porque muitos destes temas fraturantes têm a ver muito com culturas e, assim, não se pode encontrar simplesmente uma solução para uma parte daqueles que constituem a Igreja. É preciso encontrar caminhos o mais possível comuns, mas também, ao mesmo tempo, reconhecendo a diversidade das culturas onde se exprime o Evangelho.
"Um dos males da Igreja tantas vezes tem sido esse de não escutar"
Entre a primeira sessão e a segunda, o Papa Francisco criou um conjunto de grupos de trabalho em que alguns destes temas mais polémicos foram remetidos para um estudo de especialistas de todo mundo e responsáveis dos dicastérios da Cúria. Para quem veio de fora e para quem participou na fase inicial, isto pode ser visto como uma espécie de passo atrás?
Não, acho que é um passo de olhar para a frente. Este é um sínodo, não é um concílio que toma decisões autonomamente ou consultando com a presença do Papa. Tem um outro enquadramento canónico e jurídico e para este tipo de temas foi-nos dado um prazo até junho de 2025 para dar a resposta. Estes temas podem não ter uma solução imediata, uma proposta concreta. Mas não ficam esquecidos e isso é que é importante.
O que o Papa diz é que a igreja deve estar numa atitude sinodal, isto não é um evento, um acontecimento que tem um princípio e um fim. A ideia deste sínodo sobre sinodalidade é criar uma igreja que seja sinodal na sua maneira de pensar, de discernir, mas também de agir.
Vai integrar uma Assembleia que tem 368 membros com direito a voto. E são 272 bispos. Pensa que será possível aprovar conclusões que promovam mudanças ou iremos ficar por declarações de intenções?
Isto não é bem comparar coisas que não têm o mesmo valor, mas resultados só no fim do jogo. O que me interessa é que estejamos realmente numa situação e num clima que esteve bem presente na primeira sessão da Assembleia Sinodal. Penso que em alguns setores pode haver soluções mais concretas, mas que exigem, depois, de qualquer forma, um entrar no terreno, vão precisar de mais tempo.
"Este Sínodo tem muito de novo"
Esta sessão sinodal começa, simbolicamente, com uma vigília penitencial, no dia 1 de outubro, evocando os sofrimentos da humanidade e também pedindo perdão pelos abusos cometidos no seios da Igreja: abusos de poder, abusos sexuais...
Nós começamos sempre com uma celebração penitencial. Penitencial: isto não é acentuar sentimentos ou complexos de culpa, é reconhecer que somos uma Igreja em caminho. Se não olharmos para nós próprios com espírito crítico, não avançamos. Isso significa que temos também de reconhecer que a Igreja é peregrina e quer superar dificuldades. E deve elencar e ter presente esta realidade, que é pessoal, é de cada comunidade e é da Igreja no seu conjunto.
É um ato não só simbólico, é real, de assumir-se como Igreja em caminho. E isso é importante, porque cria também espírito para nos despirmos de preconceitos e de autocentralizações que nos impedem de ver e de escutar aquilo que Deus vai dizendo e vai dizendo também através da Igreja. E um dos males da Igreja, tantas vezes, tem sido esse de não escutar
Desde esse ponto de vista, pergunto-lhe, tendo em conta a experiência dos últimos anos em Portugal, como é que olha para o caminho que foi percorrido? Em especial, depois do trabalho feito na questão das indeminizações?
As consequências na Igreja são consequências dramáticas pelo dramatismo que têm na vida das pessoas. Portanto, devemos centrar-nos neste caminho que estamos a fazer, humildemente, e que não é perfeito. Neste percurso há certamente pontos a melhorar, mas aquilo que pretendemos, são, no essencial, duas coisas. Uma é que as reparações, mais do que uma mera questão de dinheiro, sejam uma questão de reconhecer o mal que foi feito às pessoas. Esse é o tal ato penitencial de reconhecer. Houve coisas muito más cometidas por pessoas, mas também, tantas vezes, instituições que não tiveram a atitude que deviam ter. Em segundo lugar, pretende-se criar também possibilidade de fornecer a estas pessoas elementos, para já, de reconhecimento, mas depois também de ajuda.
Há vítimas que já admitem desistir do processo das indemnizações, de reparação por causa de terem de passar por aquilo que chamam "calvário", por terem de recordar tudo o que aconteceu. Em algum momento, algo não fterá sido bem feito?
É lamentável, sempre, o ter de se repetir coisas. Sabemos tudo o que isso significa para uma pessoa que foi vítima de abusos. Agora, temos também de ter em conta o seguinte: isso refere-se, sobretudo, às pessoas que deram o seu testemunho à Comissão Independente e que não têm os seus dados registados. Não foi a Comissão Independente que procedeu mal ou não teve métodos adequados. Teve métodos adequados à sua finalidade: publicar um relatório. Tinha de ser forçosamente anónimo, esses dados não podem ser passados a outra entidade. Alguns foram-no com autorização das próprias pessoas. Nenhum material foi destruído, mas foi destituído de tudo aquilo que pudesse levar à identificação de pessoas. Com o Grupo Vita já é diferente, porque não se trata de códigos referenciais, trata-se de pessoas. Mas fez-se tudo o possível para não repetir tudo, de modo a evitar a revitimização. Tem-se insistido para que as pessoas sejam o mais possível respeitadas e para que não se vá além daquilo que é minimamente necessário para enquadrar as coisas. Isto vai ser feito o mais possível dentro da proximidade que é necessária.
"Este é um sínodo, não é um concílio (…) tem um outro enquadramento canónico e jurídico"
Projetando os trabalhos propriamente ditos, como é que vê a presença reforçada de Portugal nesta Assembleia Sinodal?
Eu não gosto de ver isto em termos nacionais. Há uma necessária representatividade, isso foi garantido, mas, depois, há outros fatores. É natural que a Cúria Romana e o papel, por exemplo, do cardeal Tolentino seja determinante para este sínodo. Tendo em conta o papel que o cardeal D. Américo teve nas Jornadas Mundiais da Juventude, para mim, é bem compreensível que o Papa o tenha chamado.
Isto não é uma questão, o Papa tem dito "cuidado que isto não é uma questão de representatividade numérica das Igrejas, é uma questão de toda a gente ter a ocasião de apresentar e de dar o seu contributo para um bom discernimento". E é isso: são escolhas que se fazem, fazem-nas o Papa e os seus conselheiros. Gosto muito, evidentemente, de sentir-me mais acompanhado neste grupo português, mas não é nesse sentido que vamos. Até vamos estar em grupos diferentes.
O inquérito lançado em 2021 gerou um grande interesse e uma grande participação, que está documentada. Como é que avalia a participação neste espaço entre as sessões? Ficou a ideia de que houve um abrandamento do entusiasmo…
Houve, é natural. O que se fez no primeiro não era possível repetir nos mesmos termos. O que se fez, aqui em Portugal, foi com um grupo. Noutros continentes, houve uma metodologia mais a nível continental.
Estavam em causa duas coisas: uma era ter um eco, de novo, das Igrejas locais sobre o trabalho da primeira parte do Sínodo e isto para completá-lo também com um parecer de pessoas de várias áreas, não para fazer um outro documento, mas uma reação a esta primeira parte que ajudasse aos trabalhos. Estamos numa fase de transição e esse tempo também entre as duas partes da Assembleia Sinodal foi discutido, precisamente para encontrar caminhos. A primeira parte deu indicações de que era bom estudar certos temas e o próprio Papa já o foi fazendo, também enumerando questões para fazer avançar agora o discernimento desta segunda parte. E esses contributos que chegaram agora e continuam a chegar até há pouco tempo, também a nível continental, evidentemente estarão à disposição dos padres sinodais para a discussão.
"Se não olharmos para nós próprios com espírito crítico, não avançamos"
Os trabalhos dos últimos anos têm sublinhado a necessidade dessa cultura de discernimento, acompanhada por uma reflexão sobre a articulação dos processos de decisão. Por onde pensa que se deve caminhar nesse sentido? Há medo de partilhar o poder?
A questão da autoridade e do poder é fundamental. Eu estudei especificamente o Evangelho de Marcos e há um livro muito curioso que apresenta o texto de Marcos como uma reestruturação do poder. E é realmente o Evangelho que reestrutura o papel do poder.
O facto de Jesus pôr uma criança no meio do grupo e dizer que este tem de ser o vosso centro de atenção, não é para pôr a criança a mandar, porque o problema não é mandar, o problema é acudir, é cuidar, é servir. Portanto, esta criança não tem poder em si, mas, quando uma criança nasce numa família, desarranja tudo aquilo que está estabelecido. Portanto, se a Igreja se preocupar com a missão - e a sua missão é, antes de mais, ir ao encontro dos que mais sofrem, dos mais pequenos, dos mais frágeis - isso muda a feição da Igreja. E é isso que é importante e que se gere desde a Cúria Romana até à última das comunidades e das células da Igreja.
Há alguma coisa que já está a acontecer, penso que na própria reflexão dos programas pastorais que se estão a fazer na Igreja. Aqui na Diocese de Leiria-Fátima, por exemplo, estamos num processo de reconversão pastoral. Nem sequer entrava na equação dedicar horas e horas e horas de reunião com as comunidades paroquiais, vicariais, etc., antes de tomar decisões. E isto tem de ser um processo em que as pessoas sintam aquela alegria que muitos exprimiram ao dizer “foi a primeira vez que me pediram opinião sobre isto”. Por outro lado, isto não é uma questão de contar votos, é uma questão de discernir o que é que Deus está a dizer à Igreja.
"A questão da autoridade e do poder é fundamental"
O documento de trabalho é um exemplo para contrariar modelos de concentração de poder e dinheiro. Isto é também uma provocação para o resto da sociedade?
Evidentemente, deve ser para todos. Toda a gente entende a necessidade de tudo isto. Quando pomos as comunidades a discutir verdadeiramente isto, encontramos caminhos novos. Por exemplo, mesmo para a Igreja, o grande desafio é o poder. Uma vez, fui fazer uma visita a uma comunidade virada para os jovens, em Setúbal. Cheguei à sede do município e tinha-me chamado a atenção haver uma assembleia municipal de jovens, onde a ideia era, precisamente, pôr um conselho de jovens em cada comunidade e ter uma outra maneira de dialogar e de tomar decisões. E quem diz os jovens, o Papa diz para consultar os mais pobres. Que não sejam, simplesmente, objeto da nossa generosidade e solidariedade, mas que sejam também pessoas que são chamadas a intervir diretamente naquilo que lhes diz respeito. Isto é muito interessante, mas tem de entrar na sociedade, de uma forma que seja efetiva e que dê resultado. Não é um “faz de conta”, não é fazer um parlamento de crianças e um parlamento de jovens. Isso até pode ser pedagogicamente necessário e útil, mas o que é preciso é que verdadeiramente todas estas dimensões sejam integradas no processo de decisão.
A concentração do poder é constante e na Igreja fomos concentrando demasiado sobre a figura do presbítero e do bispo questões que não têm a ver com o seu ministério, têm a ver com a administração. Quando se fala de uma Igreja ministerial que está ligada à sinodalidade, é precisamente para isso: sinodalidade e ministérios são iguais, mas o ministério é um serviço, corresponsável. E corresponsável não significa simplesmente que alguém toma uma decisão para os outros executarem, mas significa que este processo de decisão se incorpora à própria execução e à natureza do próprio serviço.
Admite que algumas pessoas se sintam de algum modo desiludidas face às expectativas da consulta de 2021 e que, eventualmente, seja agora mais difícil de superar esse afastamento?
Toda a gente tem o seu percurso e também admito que haja visões diferentes segundo a própria maneira de ser de cada pessoa, a sua experiência eclesial e humana, de grupos e culturas. A Igreja tem de fazer sempre contas, não é balançar para não chegar a decisões e querer agradar a todos, mas é encontrar soluções novas.
Desta forma organizativa da Igreja pode chegar-se também a questões diferentes, mesmo em questões de importância. Dou só um exemplo: a Igreja Greco-Católica tem padres casados, alguns também aqui em Portugal, e um padre sinodal lá ao meu lado dizia: “Não percebo porque a Igreja latina faz tanto problema com a questão dos padres casados. No entanto, não pensem que isto é a solução para tudo, e a nossa experiência di-lo muito claramente."
Mas dizem que não entendem. E são católicos como nós, em comunhão connosco, com o Papa. Portanto, em muitas questões destas, não é preciso criar ritos novos, mas dizer que em diversas perspetivas, em diversos contextos culturais e sociais, hão-de surgir formas novas de realizar a mesma missão. Isso significa a lógica do Pentecostes, para que cada um possa ouvir o Evangelho e vivê-lo na sua própria língua.