16 abr, 2023 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)
O problema da habitação é como um "vulcão" e “está a atingir proporções muito graves”, alerta Clara Vilhena, coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cáritas Diocesana de Setúbal, em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia.
Clara Vilhena afirma que as soluções tardam e revela que a população sem-abrigo em Setúbal está a aumentar, pois “há famílias que ficaram sem casa” por causa da especulação. “Agora, estão-nos a chegar, inclusivamente famílias com crianças que ficaram desalojadas por causa do mercado de habitação imobiliário”, revela.
A responsável fala de "um sentimento de impotência", porque “não temos resposta suficiente para conseguir apoiar todas estas pessoas, principalmente quando se trata de crianças”. A Cáritas local está a alterar o seu Centro de Acolhimento para poder responder ao aumento dos pedidos de mulheres. “Sim, são bem visíveis e o número começa a aumentar”, assegura.
Clara Vilhena afirma que, “neste momento, em Setúbal, o apoio da Cáritas é o único para estas pessoas que chegam ao fim da linha, à situação da rua” e lamenta o aumento das dificuldades em alugar quarto, situação que piora a partir de maio. “Quando vêm os turistas, deixa de ser possível durante todo o verão, até setembro”, indica.
A dois dias da entrada em vigor do IVA zero para alguns bens essenciais, Clara Vilhena diz que as medidas “têm de ser mais abrangentes” e critica as consecutivas subidas de preços e “uma sociedade em que o dinheiro ainda é o que pesa mais”. A responsável entende que, “enquanto não mudar este paradigma, continuamos com estas desigualdades”, em que “uns se enchem mesmo numa altura em que outros estão a empobrecer cada vez mais”.
A inflação e a consequente subida de preços faz aumentar as dificuldades. Isso também se reflete, por exemplo, na população, nas pessoas que estão em situação de sem-abrigo?
Sim, claro. O número de pessoas está a aumentar. Até aqui, em Setúbal, os sem-abrigo não eram visíveis como em Lisboa, portanto, não os víamos na rua. E, neste momento, sim, são bem visíveis e o número começa a aumentar. E o que nos está a preocupar neste momento é que as pessoas que estão a chegar até eles não são com as características normais que nós estávamos habituados. Ou seja, pessoas que tinham associados alguns vícios ou do álcool ou de aditivos. Agora, estão-nos a chegar, inclusivamente, famílias com crianças que ficaram desalojadas por causa do mercado de habitação imobiliário.
Ministro das Finanças
Apoios de 30 euros às famílias mais vulneráveis, a(...)
Por causa da especulação?
Sim, sim, sim. Neste momento, por rendas mais baixas, as pessoas não fazem contratos e, portanto, eles não têm um contrato de arrendamento e ficam desprotegidos e, se o proprietário pretende vender a casa, diz que eles têm que sair em prazos muito curtos. E, em Setúbal, nós estamos a sentir imenso.
Começamos a sentir já alguns anos com o aumento dos quartos, porque para os nossos utentes a hipótese de casa é muito reduzida porque recebiam o rendimento social de inserção que é muito baixo. Mas isso ainda permitia que alugassem um quarto. Neste momento, há dois ou três anos para cá, nem isso porque os quartos dispararam e não conseguem alugar.
Ainda sobre a população em situação de sem-abrigo ou que procura a Cáritas, há uma mudança de perfil? Referiu famílias que vos batem à porta, há empregados com rendimentos baixos, com empregos precários, há de facto uma população maior que bate à porta da Cáritas, mesmo com emprego?
Sim. E tudo toca na habitação. Nós temos pessoas a pedir ajuda a nível alimentar que trabalham, tem o seu ordenado, é o ordenado mínimo, mas têm o seu ordenado, mas como pagam um valor de 450 euros de renda de casa não lhes permite fazer face depois à alimentação. E neste momento é o que mais nos preocupa, pois são famílias inteiras, inclusivamente com crianças. Alguns deles até têm emprego, mas depois também têm associado a doença mental, e estas duas componentes, por vezes, são muito complicadas e levam as pessoas até a rua.
E que respostas tem conseguido a Cáritas de Setúbal dar a essa população?
A nossa preocupação tem a ver, agora, com estas novas famílias que nos chegam, porque as nossas respostas não estavam direcionadas para este tipo de população.
Nós temos avançado com algum tipo de respostas, principalmente de habitação. Avançamos, em 2021, com os apartamentos partilhados. A Cáritas aluga o apartamento e depois as pessoas que nós acompanhamos pagam um "X" por um quarto. Só para ter assim uma ideia, quem recebe o rendimento social de inserção, que agora subiu para 200 euros; paga 75 euros de quarto. Portanto, é um valor que vão conseguindo pagar e, ao mesmo tempo, permite eles sentirem que no fundo estão a colaborar.
"Estão-nos a chegar famílias com crianças que ficaram desalojadas por causa do mercado de habitação"
O que vai acima é suportado pela Cáritas?
O resto é suportado pela Caritas, sim. Nós temos um protocolo com Segurança Social que nos dá aqui algum apoio neste projeto.
Temos depois um outro projeto, que iniciámos o ano passado em 2022, e esse é mais complicado. Nós avançámos para o “House First”, que significa as casas primeiro, que é uma metodologia completamente diferente daquela que nós utilizávamos até aqui. O “House First” já existe aqui em Portugal desde 2009, penso que já há algum tempo em Lisboa, mas no resto do país começou agora a aparecer e nós aderimos também. Assinamos um protocolo o ano passado com a Segurança Social, mas, até à data, ainda não recebemos qualquer apoio e tem sido a Cáritas a suportar.
Este projeto do “House First” são casas em que as pessoas que estão na rua entram diretamente para as casas e a partir daí é que nós começamos a trabalhar com elas outras questões como a da saúde. Trabalhamos também as capacidades daqueles que têm ainda a possibilidade de poder aceder ao mercado de trabalho.
A Cáritas já alugou cinco apartamentos, onde temos casais e temos uma família que tem uma bebé. A autarquia disponibilizou-nos uma habitação e estamos a acompanhar uma outra senhora que está em habitação social, numa habitação da Câmara. E, realmente, o que nós sentimos com a atribuição de casas, é que a casa dá segurança e é a partir dessa segurança que nós conseguimos aqui fazer outro tipo de trabalho e até a adesão das pessoas.
Com o apoio da Segurança Social conseguiram ajudar muitas mais pessoas?
Muitas mais. Quando fizemos a candidatura tínhamos 15 que estão protocolados e, aqui, no “House First”, nós tínhamos pensado 30. E todos eles com doença mental, porque era aqui que nós queríamos investir na doença mental, que são aqueles mais desprotegidos.
Há de facto aqui uma problemática que se agrava em torno deste setor da habitação, e foi criado um pacote de medidas que tarda em chegar ao terreno. Na sua opinião, continuamos muito reféns da burocracia?
Eu penso que sim. Isto é como se fosse um vulcão, e eu acho que estamos agora a entrar na problemática mesmo. E o que eu sinto é que nós podíamos ter avançado com algumas medidas anteriormente e não deixar chegar ao ponto que estamos a chegar.
Há agora alguns projetos para a construção de habitação social, e habitação mais apoiada, mas que ainda vai tardar porque eles vão começar agora a construção e, portanto, vai demorar ainda dois anos e as coisas estão a atingir proporções muito grandes.
E se juntarmos a este calvário burocrático, a necessidade de aferir a constitucionalidade, por exemplo, de algumas das medidas, como é o caso do arrendamento coercivo, podemos estar perante mais uma manifestação de intenções que não passará do papel?
Pois, é essa sempre a nossa preocupação porque, neste momento, em Setúbal, o apoio da Cáritas de Setúbal é o único para estas pessoas que chegam ao fim da linha, ou seja, que chegam à situação da rua. E não temos resposta suficiente para conseguir apoiar todas estas pessoas, mesmo com estes projetos que estamos a avançar.
Principalmente quando se trata de crianças. E faz-me alguma confusão, por vezes, separarem estas crianças dos pais só porque eles tiveram a infelicidade de vir parar à rua quando realmente são famílias organizadas. E que só se desorganizaram porque lhes aconteceu isto na vida, de deixarem de ter casa; alguns por causa de terem ficado desempregados. E isto é uma situação muito complicada.
E é de facto uma situação que pode pôr em causa até a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. O Presidente da República tinha manifestado o desejo de, até 2023, dizia que era possível retirar as pessoas da rua. Com a habitação como está, será pouco provável?
Eu também sinto isso: também acredito que seria possível se, a nível político, as coisas avançassem de uma forma diferente.
É preciso intervir no preço da habitação, no preço das rendas da habitação?
É preciso intervir. É preciso a construção ser mais rápida porque, se tivesse iniciado há mais tempo, talvez não estivéssemos a chegar a esta situação, e depois tem a ver também com o mercado imobiliário. Em Setúbal, até agora, ainda conseguimos alguns hostels a um preço que ainda permite receber algumas das pessoas que estão na rua. A partir de maio, quando vêm os turistas, deixa de ser possível durante o Verão todo, até setembro.
Ou se existem, é a preços muito caros...
Isso mesmo.
Há quem defenda uma estratégia metropolitana para este problema e não nacional. Qual é a sua análise? Seria possível resolver de uma forma mais próxima, a partir dos municípios?
A população que nós acompanhamos circula muito pelo país. Neste momento, conseguimos ainda ir colmatando em termos de alimentação, banhos... Não sei se por isto, está aumentar, em Setúbal, o número de com pessoas que chega de Lisboa, do Seixal e de outras zonas. E nós somos os únicos a dar uma resposta, o que está a dificultar muito o trabalho.
Isso significa que não há essa estratégia para a integração das pessoas em situação de sem-abrigo, que foi definida em 2017?
A estratégia existe, mas a questão é mais profunda: Não há meios, não há respostas. Daqui a dois ou três anos, nós conseguimos, provavelmente, dar uma ou outro tipo de resposta com esta construção de habitação e a nível municipal. Mas, até lá, vamos ter estes anos em que não conseguimos dar mais resposta.
Há pouco dizia que a Cáritas é a única entidade que dá resposta a esta situação de sem-abrigo em Setúbal?
É. Há uma outra associação, a Associação Casa, que dá resposta a nível alimentar...
Mas ao nível municipal não há resposta?
Não, não. Somos só nós.
"Neste momento em Setúbal o apoio da Cáritas é o único para estas pessoas que chegam ao fim da linha, à situação da rua"
Na terça-feira, entra em vigor o diploma que introduz o IVA zero para mais de 40 bens essenciais por um período de meio ano. É uma medida que foi sendo reclamada pelo setor social. Será suficiente nesta fase?
Eu penso que não. Pode ajudar. mas este tipo pessoas de que eu falo, mais do que a alimentação, a grande questão é mesmo o teto, estas pessoas terem um teto.
Provavelmente, estas medidas avulso que estão a surgir vão ajudando. Pelo menos, as pessoas não pagam tanto pela aquisição de alguns bens alimentares, mas eu penso que não são suficientes.
Defende que esta medida deveria ser alargada a outras necessidades do setor social, por exemplo a construção?
Sim, penso que têm de ser medidas a mais abrangentes. Isto pode ajudar, mas tem de ser visto num todo. As pessoas não são os espartilhadas e têm de ser vistas num todo e nas necessidades que têm.
Desde que a medida foi anunciada, já tivemos oportunidade de verificar novas subidas de preços. Não faltará aqui também alguma solidariedade social por parte de quem promove os preços?
Provavelmente.
Não haverá aqui demasiada especulação?
Provavelmente há. Quando estamos numa sociedade em que o dinheiro ainda é o que pesa mais, enquanto não mudar este paradigma, continuamos sempre com estas desigualdades: uns a encherem-se mesmo numa altura em que outros estão a empobrecer cada vez mais.
Sente que a população, no distrito de Setúbal, está a atingir os limites e não encontra respostas para as suas necessidades e as instituições não têm como dar resposta também?
Sinto. A Cáritas de Setúbal coordena o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, o NPISA, e depois somos coordenados pelo ENIPSSA [Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo]. O que nós sentimos é que recorrem a nós sempre que alguém que está na rua. Mas nós não temos resposta! E isto é um sentimento de impotência que, no dia a dia, começa a ser muito complicado para conseguirmos gerir o estar permanentemente a dizer, ‘eu não tenho vaga’, ‘não tenho sítio onde colocar essa pessoa’.
Que consequência pode ter esta situação?
Nem consigo imaginar, mas estou muito apreensiva.
Mas antevê mais contestação social, mais manifestação na rua?
Provavelmente vai acontecer. Mas não sei se temos força suficiente para que essa manifestação consiga dar alguns frutos e consiga, pelo menos, colocar os decisores, as pessoas que têm o poder de decisão, atentos ao que realmente começa a gritar cá de baixo. Nós temos situações a cada vez mais gritantes.
Até agora, tínhamos mais pessoas na rua homens e as mulheres que estavam na rua tinham um companheiro. Neste momento, não! Estamos a alterar o nosso centro de acolhimento para acolher mais mulheres, porque neste momento temos Mulheres na rua e depois não conseguimos dar resposta.