Viver sozinho já era um privilégio em Portugal. Com a inflação tornou-se “um luxo”

07 set, 2022 - 07:00 • João Carlos Malta

Três jovens descrevem a dificuldade de viver com a subida dos preços em escalada quando não se tem com quem dividir despesas. O economista João Duque confirma “este não é um país para solteiros”. Mas faz sentido apoiar este conjunto de pessoas de forma específica?

A+ / A-

Sentem-se um grupo invisível. Quando se pensa em medidas para minorar a crise ou, como agora, para combater a inflação, normalmente estão fora do foco.

Na segunda-feira, o primeiro-ministro, António Costa, apresentou um pacote de medidas para reduzir o impacto da subida dos preços que tem como slogan “Famílias Primeiro”. Mas e quem vive sozinho?

“Acho que somos uma parte esquecida da sociedade”, diz Marta Lira, professora de 37 anos, que vive numa casa comprada o ano passado, em Leça do Balio, Matosinhos.

“Talvez partam do princípio de que uma pessoa que esteja solteira e que tenha casa própria não precisa de ajuda ou que sobrevive bem, porque é uma opção. E que estar a viver sozinha é um luxo. Não é um luxo”, acrescenta a docente, lamentando que para ter o mínimo de qualidade de vida tenha de acumular dois ou mais empregos.

Com as contas da energia a subir, os preços dos alimentos a aumentar e os custos voláteis do combustível, as pessoas solteiras acabam por sofrer um impacto desproporcional em contexto de inflação.

No Reino Unido, por exemplo, um estudo do Ocean Finance concluiu que o custo de vida para as pessoas que moram sozinhas é de mais 7.564 libras (cerca de 8.800 euros), quando comparado com um casal coabitante.

Nos Estados Unidos, a diferença de rendimento entre jovens casais e solteiros aumentou, graças à inflação e ao aumento dos preços das casas.

O rendimento líquido médio de casais com idades entre os 25 e os 34 anos era quase nove vezes maior do que o dos solteiros em 2019, de acordo com os dados mais recentes da Reserva Federal norte-americana. Ainda em 2016, a diferença entre os dois grupos era de apenas três vezes mais.

"Este país não é para solteiros"

Sem conhecer um estudo equivalente em Portugal, o economista João Duque, professor do ISEG, não tem dúvidas: “Este país não é para solteiros.”

OuvirPausa
“Acho que somos uma parte esquecida da sociedade. Só se fala das famílias”, Marta Lira, professora que vive em Matosinhos.

E, de certa forma, viver sozinho é cada vez mais algo difícil de conseguir.

“É de certa forma um luxo poder-se viver só, fora da casa dos pais. De facto, a vida é caríssima. Passa logo pelo primeiro passo, que é a casa. É um peso absolutamente exorbitante hoje em dia para qualquer jovem aventurar-se na compra”, avança.

Raquel Dias, também de 37 anos, gestora de vendas e distribuição, deu esse passo em 2016. Queria uma casa, mas não conseguia concretizar o sonho sem a ajuda dos pais. Vive em Vialonga, nos arredores de Lisboa. Ser independente e viver sozinha faz com que se sinta “uma privilegiada”.

Mas discorda de quem vê na compra de um imóvel um sinal de desafogo. Raquel encara-o de outra forma.

“Se não tivesse comprado casa nessa altura, só conseguiria sair de casa dos meus pais se fosse dividir um apartamento com outras pessoas, porque pagar um arrendamento [sozinha] é absolutamente incomportável”, afirma.

Para estes jovens, viver de forma independente e sem partilhar a habitação é cada vez mais complicado.

Subidas com peso desproporcional

A professora Marta Lira dá o exemplo do irmão, frisando que é “quase impossível” sair de casa quando se começa a trabalhar.

“É muito normal ouvirmos as notícias de que os jovens estudantes, hoje em dia, são os últimos a sair de casa dos pais. Tenho um irmão de 22 anos e percebo perfeitamente que não queira sair. Está a trabalhar, ganha pouco menos de 1.000 euros, mas, neste momento, ele não se sente confortável para sair. Não consegue alugar uma casa por menos de 800 euros.”

A questão da casa é apenas uma das dimensões em que viver só tem um impacto sobre as finanças pessoais. A alimentação, a energia, o próprio transporte são outras áreas em que os aumentos têm um reflexo desproporcional.

O funcionário público Duarte Pereira, de 33 anos, que o diga. Vive sozinho num T1, no Porto, desde 2017, e pelo menos desde 2012 regista tudo o que gasta numa folha de Excel. Por isso, torna-se fácil comparar os preços. O resultado tem um único sentido: Duarte tem cada vez menos dinheiro na carteira.

“Em 2017, gastava 130 euros por mês nas despesas de supermercado. Este ano, já vai perto de 180, 190 euros”, revela.

Apesar disso, desdramatiza a situação, não pode dizer que esteja "com a corda na garganta" como outras pessoas.

“Sempre fui muito comedido com os meus gastos. A inflação só veio reforçar a necessidade de ter mais atenção às despesas. No próximo ano, não havendo atualização salarial, se a escalada de preços continuar, vai haver despesas que vão deixar de ser feitas e uma mudança de hábitos de consumo”, considera.

O que saltará primeiro das rotinas são os “jantares fora com os amigos”, que vão passar a ser feitos na casa uns dos outros. E “as férias no próximo ano também terão de ser reequacionadas”, adianta.

OuvirPausa
"Se formos a ver as despesas de electricidade, da água, e do gás, não são proporcionais pelo número de habitantes que vivem numa casa", Raquel Dias, gestora que vive em Vialonga.

A eletricidade e os aumentos este ano já pesaram na carteira, mas ainda não muito. O inverno está a chegar e, nessa altura, Duarte teme que o impacto nas suas finanças pessoais aumente.

O mesmo diz Raquel, que há dois anos e meio trabalha a partir de casa, com os preços da energia a subirem e sem nenhuma comparticipação da empresa ou do Estado.

“As despesas de eletricidade, da água e do gás não são proporcionais pelo número de habitantes que vive numa casa”, constata. “O aumento do custo por mais pessoas num agregado é marginal.”

Custos fixos indivisíveis

João Duque explica que o reflexo da inflação nos custos dos solteiros é desproporcional. “Como a inflação afeta muito os custos fixos, que não se conseguem diluir, porque se vive sozinho. O caso do aquecimento é um exemplo”, explica.

“Quanto mais a inflação afetar este tipo de custos, que não são naturalmente divisíveis por outros, porque esses outros não existem, vai atacar muito mais o orçamento dessas pessoas que vivem sozinhas”, conclui.

O economista cita ainda os alimentos perecíveis que, com uma pessoa que vive só, têm mais tendência a estragar-se e a tornarem-se desperdício. Por isso, conclui, “a inflação não afeta todos por igual”. Já antes da crise inflacionária assim era: a fiscalidade prejudica quem vive sozinho.

“Ao viver como casados pagam-se menos impostos do que dois separados ou divorciados, em que cada um paga a sua parcela pela soma dos dois. Claramente, o imposto é maior e, portanto, as pessoas que vivem sozinhas são penalizadas face às outras que vivem em comunhão de casa ou pelo menos de rendimento tributável”, adianta.

É algo que Marta Lira sente na pele. “O salário que tenho como professora, com os 12 anos de serviço, é de mais ou menos 1.000 a 1.100, e o facto de estar sozinha e de não ter filhos aumenta a questão dos escalões do IRS."

“Ainda ontem estava a falar com os meus pais, e 500 euros do meu salário bruto vão para o Estado”, lamenta.

Com a prestação da casa, a alimentação e os transportes, se já anteriormente pouco sobrava do salário, com a inflação a 9%, ainda menos.

Para ter alguma qualidade de vida, que para esta professora se traduz em poder fazer desporto ou jantar com amigos, tem de acumular outras ocupações, como dar explicações ou fazer traduções.

Marta Lira sente que todo este fenómeno chegou de forma “repentina e sem pré-aviso”. Já quanto às consequências, teme que se “arrastem no tempo e não há grande solução”.

“Parece que já é a nova normalidade. Os preços aumentarem e os salários continuam exatamente ao mesmo nível.”

Para combater este desnivelamento, Raquel Dias há muito que já só usa o carro em situações excecionais. Se quer ir a Lisboa no fim de semana, leva o automóvel até à estação e depois vai de comboio.

Em relação ao cabaz alimentar, diz quea vai passar muito “por ter por uma grande organização em termos de compras para casa, um planeamento enorme, para que não haja desperdício com comida e para que consiga procurar os melhores preços ou as melhores substituições a preços mais baratos”.

Faria sentido o Governo olhar para este grupo e discriminá-lo positivamente, porque são mais penalizados com a inflação? João Duque olha para a questão com reserva.

OuvirPausa
"Não havendo atualização salarial, e com a escalada de preços, há despesas que vão deixar de ser feitas", Duarte Pereira, funcionário público que vive no Porto.

“Acho que a resposta merece algum cuidado, porque há muito muitas pessoas que vivem sozinhas de forma diferente. Uma coisa é a pessoa que vive sozinha porque é jovem e quer deliberadamente ter o estatuto de vida sem comunhão com terceiros e social e socialmente”, começa por dizer.

“Outra coisa são as pessoas idosas que vivem assim porque um dos cônjugues simplesmente faleceu e, portanto, não é escolha. Isso é penalizar uma pessoa que, sem ser por sua escolha, está nessa situação.”

João Duque sugere que a opção política pode ser a de encaminhar a sociedade no sentido de viver em conjunto “porque quer reforçar, chamemos assim, o acasalamento e a reprodução, porque é importante do ponto de vista social, cuidar de manter o fluxo de uma geração subsequente”.

Isto é algo que não está a acontecer, refere o economista. O Governo pode até achar que politicamente “se deve penalizar esse tipo de pessoa, porque não está, digamos assim, a defender o património coletivo que é a transmissão de cultura para uma geração subsequente”.

E finaliza: “A questão está em saber se a própria sociedade o deseja e, portanto, se deve premiar esse tipo de atitude.”

Costa não convence

Por fim, em relação às medidas apresentadas pelo primeiro-ministro, António Costa, de apoio às famílias face à subida dos preços, os três jovens ouvidos pela Renascença são unânimes: não convencem.

A gestora de vendas e distribuição Raquel Dias pensa que são “para inglês ver”, um "pacote cheio de nada, mas bem vendido porAntónio Costa, que tem o dom da palavra”.

Em relação aos 125 euros, que vão ser pagos em outubro a todos os que ganham menos do que 2.700 euros brutos, Raquel diz que “a justiça social não é assegurada”.

“Quem passa necessidades vai continuar a passar. Para quem não passa, é completamente inócuo”, refere.

O funcionário público Duarte Pereira defende que a quase universalidade da atribuição do apoio de 125 euros por adulto e os 50 euros por dependente deveria ser limitada aos agregados de menor rendimento.

“São esses que mais sentem o efeito da inflação e é esses que o Estado Social deve ajudar, afinal de contas estamos a distribuir 'impostos futuros'. Aos que ganham acima dos 1.000 euros até 2.700 euros por mês, estamos a colocar no bolso esquerdo o que tiramos do bolso direito”, argumenta.

Em relação à sua situação pessoal, Duarte acrescenta que “trocava de bom grado os 125 euros por uma redução efetiva de IRS (atualização dos escalões de IRS) e uma atualização salarial em 2023”.

“De janeiro de 2021 a agosto deste ano, o meu salário base líquido real diminuiu 8,3%. Os 125 euros não vão mudar a minha perda de poder de compra daqui para a frente.”

Raquel concorda e diz que o pacote “é anunciado como um pacotão, mas não é mais que um pacotinho de areia que nos atiram para os olhos para ficarmos contentes com nada”.

“Esgotamos em poucas horas milhares de lugares em concertos a preços astronómicos. Não são estas pessoas que precisam de ajuda. Mas estas pessoas vão receber os mesmos 125 euros de quem precisa de ajuda e que vai continuar a precisar”, lamenta.

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Raquel Rodrigues
    12 set, 2022 Viseu 11:11
    Tive a sorte de me conseguir organizar e comprar casa aquando da crise imobiliária de 2016. Comprei a casa, que estou a pagar ao banco, por cerca de metade do valor de mercado ao dia de hoje. Era solteira nessa altura e sou solteira hoje. Conto apenas e só comigo mesma para fazer face a todas as despesas, sem pais, irmãos, amigos, namorado a contribuir com o que quer que seja para ajudar. E, claro, neste momento, tenho algum receio com o que aí vem e se é suficiente o que ganho para cobrir estes aumentos.
  • Coragem, onde estás?
    07 set, 2022 Portugal 08:06
    A Habitação é um problema gravíssimo em Portugal. O maior problema dos portugueses. O mais fundamental. Raíz de quase todos os outros. Falta de estrutura, diminuição da natalidade. Desumanização. Desestruturação social e familiar. Gostaria de ver alguma força política e civil, e comunicação social seriamente empenhadas na resolução desta catástrofe.
  • Lei da Selva
    07 set, 2022 Portugal 08:04
    O problema não é apenas dos solteiros. É de praticamente todos os que vivem do seu trabalho, e têm salários "normais". A esmagadora maioria dos portugueses não pode pagar uma casa em Portugal, porque o mercado está uma selva. As leis do mercado (interno) não se aplicam E os políticos não mostram capacidade ou vontade suficientes para uma prioridade tão fundamental.

Destaques V+