08 jun, 2024 - 08:00 • Sandra Afonso , Arsénio Reis
Ouvimos muito falar de economia e ainda mais de felicidade, mas poucos sabem que os dois conceitos também existem juntos e ainda menos o que isso quer dizer. Divulgar a “economia da felicidade” tem sido o desafio abraçado por Gabriel Leite Mota, o primeiro doutorado do país nesta área.
Em entrevista no programa Dúvidas Públicas, da Renascença, Gabriel Leite Mota explica que “a economia da felicidade é um ramo de estudo científico, que pretende perceber o que determina a felicidade, com base nas dimensões económicas”.
Já se fizeram muitos estudos, mais ou menos intuitivos, para perceber a relação entre o crescimento económico e o bem-estar e a felicidade da população.
“A ciência da felicidade está em diversas disciplinas científicas, da neurologia, à medicina, à psicologia, à economia, entre outras, está a tentar perceber através de diferentes metodologias o que provoca sensações de bem-estar nos seres humanos”, explica.
Gabriel Leite Mota reconhece que “há muita confusão” entre a economia da felicidade e a filosofia da autoajuda, disseminada hoje nos gurus de autoajuda e no coaching, inspirados até em conceitos filosóficos e religiosos antigos, “numa reinterpretação mais pop”.
“A ciência decidiu estudar nos últimos 40 anos a felicidade”, diz o economista, e “há uma clara separação entre as duas dimensões, uma coisa é a ciência da felicidade e outra coisa as utilizações mais comerciais dessas temáticas”, a “indústria da felicidade”.
Segundo a economia da felicidade, depende sobretudo do ponto de partida. “A ciência comparou os dados que tinha sobre o PIB nos diferentes países com o crescimento económico ou a perceção de bem-estar.” Estas análises permitiram concluir, com segurança, que “a relação entre economia e felicidade é positiva, mas não linear”.
Ou seja, cai por terra a ideia generalizada de que “quanto mais crescemos economicamente, mais felizes estão as pessoas”. Na realidade, “depende muito do ponto de partida”, explica Gabriel Leite Mota.
Um país pobre que inicie o crescimento económico vai ter mais facilidade em transformar este crescimento em bem-estar. “A partir de certos patamares de riqueza e conforto material, já começa a ser mais difícil transformar este adicional de riqueza em bem-estar ou felicidade adicional”, acrescenta.
A mesma lógica aplica-se ao rendimento individual. “O salário contribui para a nossa felicidade, mas com utilidade marginal decrescente. Ou seja, há medida que o nosso salário vai aumentando vamos ficando mais satisfeitos, mas não na mesma proporção dos aumentos, até pelas expectativas”, diz. Precisamos de “um ganho adicional, acima das expectativas que criamos”.
Por outro lado, o crescimento também tem custos, como os congestionamentos do trânsito onde as pessoas perdem horas diariamente. O crescimento aumenta ainda a destruição criativa, o que provoca disrupções sociais e familiares, que pode ajudar a produtividade, mas prejudica o bem-estar.
É uma tendência humana e social a comparação com o outro, com aquilo que tem a mais ou a menos do que nós. Comparamos o carro, a casa, a família, o salário e até os animais de estimação. Tudo serve, mas o que diz verdadeiramente de cada um?
Segundo Gabriel Leite Mota, analisando os bens materiais e a situação sociofamiliar, “conseguimos encontrar relações estatísticas, que nos dão alguma confiança sobre as dimensões mais importantes”.
Uma das conclusões é que “o desemprego, nas sociedades modernas, é das dimensões mais destrutivas de felicidade e vai muito para além da perda de rendimento”. Ainda de acordo com este economista, “há um estigma (social) associado, uma sensação de desintegração, de não pertença à sociedade, um sentimento de isolamento, e tudo isso tem efeitos muito impactantes no bem-estar”.
Gabriel Leite Mota sublinha ainda que nem sempre o salário representa o que cada um vale, per si. “O salário acaba por ser uma métrica do nosso valor de mercado”.
Por exemplo, um youtuber hoje consegue um rendimento várias vezes superior ao de um trabalhador no apoio social. O contributo de cada um para a sociedade está a ser bem medido? Este economista defende que não, mas também reconhece que é o mercado a funcionar.
Continuamos a reduzir as horas de trabalho e essa é a tendência. Aliás, “os países mais desenvolvidos são os que trabalham menos no mundo e curiosamente, ou não, são os mais felizes”.
Como se chega lá? “O truque aqui é a produtividade”, diz este economista. Se mantivermos a produtividade e trabalharmos menos, ficamos mais pobres, mas se conseguirmos fazer o mesmo em menos tempo, ficamos melhor.
No entanto, “não há receitas mágicas, tem de haver uma sinergia entre o público e o privado”, sublinha. Já há vários exemplos no país, com empresas que oferecem desde horários flexíveis a casa ou carro.
Em Portugal, “vivemos uma situação que não faz sentido, ou todos trabalhamos 40 horas ou todos trabalhamos 35 horas!” Neste caso, “todos os estudos apontam para as 35”, diz.
Nas últimas eleições legislativas, que decorreram este ano, a palavra felicidade quase não apareceu nos programas eleitorais, segundo este economista.
No setor público, é necessário “encontrar estratégias” que vão além do crescimento, para “tornar o país mais feliz”, defende.
“A resposta a isto não pode ser só que temos de crescer muito, é o único discurso que vigora. Todos os partidos andam a competir pelo maior crescimento.” Mas para além da quantidade, “interessa-nos a qualidade, crescer e ajudar verdadeiramente as pessoas”, acrescenta o economista.
Para Gabriel Leite Mota, é preciso garantir uma melhor gestão, de qualidade, que liberta tempo, com eficiência e respeito pelos trabalhadores. Na prática, deve-se conciliar eficácia com eficiência, assegurar o combate à corrupção e a qualidade das relações interpessoais.
Nesta entrevista à Renascença, Gabriel Leite Mota diz ainda que, em termos estatísticos, “o nosso patamar de PIB apontar-nos-ia para um nível de felicidade maior. Porque produzimos menos felicidade do que devíamos? Porque há políticas públicas e decisões concretas que vão afetar o resultado final e não passam apenas por pôr o país a crescer”, defende. Da mesma forma que não basta sermos o país do sol e do mar.
A ONU coloca Portugal na posição 56, no último Relatório Mundial da Felicidade, 20 lugares abaixo de Espanha. A liderar o ranking está a Finlândia.
Este especialista em economia da felicidade compara ainda os movimentos populistas a uma forma de comunicar, inspirada na publicidade. Fala em “vírus linguístico”, transposto para a política.
Sublinha ainda que, apesar deste fenómeno ser normalmente associado ao descontentamento da população, tem também crescido muito em países mais desenvolvidos e mais ricos, por exemplo, do norte da Europa.
A alimentar estes movimentos “está alguma falta de resposta, do sistema como um todo”, defende. Se se sentirem mais felizes, as pessoas vão ter, tendencialmente, menos comportamentos agressivos.
Diz que compete aos governos e às entidades supranacionais, como a ONU, zelar para que certos problemas não se agudizem, entre eles os populismos.
Nesta entrevista, Gabriel Leite Mota distingue ainda pobreza absoluta de pobreza relativa. Por exemplo, quando o progresso e as novas tecnologias determinam diferentes níveis de crescimento e riqueza.
Alerta também para a responsabilidade acrescida das empresas num mundo globalizado, nem todo o lucro é bom e as administrações são cada vez mais chamadas a apresentar resultados ao nível da sustentabilidade, do impacto social e da pegada ambiental.
São excertos do programa Dúvidas Públicas, que pode ouvir todos os sábados, a partir do meio-dia, na Renascença. Está ainda disponível online e em podcast.