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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Aqui chegados…

27 jul, 2022 • Opinião de José Miguel Sardica


Nos últimos tempos, olhando televisões, lendo jornais e seguindo a atualidade do país, não parecem existir muitas razões para contentamento nacional e, bem ao contrário, abundam motivos de pessimismo. O recente debate sobre o estado da Nação – a versão caseirinha do discurso do estado da União norte-americano – mostrou um parlamento tribalizado entre a autocomplacência governativa e da bancada do PS e todas as oposições, outrora amigas de António Costa ou desde sempre rivais e inimigas. O ministro Adão e Silva fez o inventário do possível – mas o possível são medidas conjunturais. A “estrutura”, de que o governo tanto gosta pelas suas costas largas, lá permanece, inamovível e estranguladora. Do debate parlamentar pouco ficou do que dantes se chamava projeto, visão, desígnio ou impulso. Talvez Montenegro venha a obrigar Costa a mexer-se; por ora, “no pasa nada”. E, entretanto, a atenção mediática reconcentrou-se apenas nos ralhetes de democrata ofendido de Santos Silva ao truculento Ventura, que só servem aos próprios, ajudando à vitimização do Chega! e à putativa presidencialização de um dos notáveis do socratismo.

A saúde tem problemas? Marta Temido reconhece que sim, para logo acrescentar que “a vida tem problemas”. Os aeroportos e os comboios da CP não funcionam? Pedro Nuno Silva recomenda aos portugueses que viajem menos. O país arde? Onde estão as mudanças estruturais na gestão do interior português juradas sobre as cinzas de 2017? O governo já leva sete anos de vida e ainda lhe faltam quatro, em maioria absoluta: é deixá-lo andar, em velocidade de cruzeiro, o que para o PS significa manter a clientela satisfeita e os opositores ao largo, mesmo quando o horizonte tem cores escuras.

Alguns jornais traziam, há dias, a notícia de que o Tejo, o maior rio da Península Ibérica, já se atravessa a pé, exibindo uma desoladora fotografia tirada a partir do jardim das Portas do Sol, em Santarém. Ainda me lembro, em miúdo, de ouvir familiares falarem das cheias do Tejo na lezíria local, quando a água chegava “aos pés da Santa” (uma pequena estátua que está na ribeira de Santarém). Talvez um dia ali volte água em abundância. O que se vê, e o que impacta em todas as atividades locais, é preocupante, como o são as notícias do racionamento da água no turismo algarvio, o facto de Portugal estar a viver a pior seca do século XXI e de as ondas de calor ameaçarem tornar-se um novo anormal, num país onde as estruturas habitacionais não estão preparadas para tal. O verão será, pois, tórrido, e o inverno, com os inevitáveis racionamentos europeus de gás, mais frio, mesmo que Portugal não seja a Alemanha.

Em cima disso, a inflação disparou, as taxas de juro começam a descolar, o dinheiro barato acabou e, do cabaz alimentar ao empréstimo bancário, tudo ficará mais caro. Sim, as soluções macrofinanceiras terão de ser europeias, no quadro do euro. Mas o espetro da crise regressou e, num aperto europeu, os PIGS, onde se inclui Portugal, têm sempre menos resistência, num continente hoje com menos aliados globais do que há uma década, e onde “bazucas” do BCE como as Mario Draghi já não serão exequíveis. A quadratura do círculo está, aliás, já montada: é preciso combater a inflação, que empobrece as sociedades; mas aliviar o aperto social com financiamentos extra que injetam dinheiro em circulação, poderá alimentar a espiral inflacionista que se quer conter. A política e as escolhas financeiras terão, assim, de ser bem calibradas.

Aqui chegados, ao verão deste ano de 2022, Portugal está quente, seco, mais pobre, mais desalentado ou mais zangado. Esta conjunção de problemas não é exclusivamente portuguesa; mas nas periferias estas coisas podem sempre doer mais.

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