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José Luís Ramos Pinheiro
Opinião de José Luís Ramos Pinheiro
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Extremas: para que vos quero

23 nov, 2020 • Opinião de José Luís Ramos Pinheiro


Quanto mais tacticistas forem os partidos do centro, mais permeáveis se tornam à chantagem dos partidos radicais que assim se convertem na chave do sucesso de algumas soluções governativas. Para mudar este contexto os partidos do centro têm que repensar valores e princípios. Sem convicções não haverá tacticismo que nos valha.

Diz o povo, e com razão, que os extremos tocam-se. Diz o povo e diz a História. Os regimes mais brutais que o homem conheceu habitavam os extremos do espectro ideológico. De extrema-direita ou de extrema-esquerda, tais regimes não conhecem – ou não conheceram – limites. Abafaram a liberdade. Mataram e torturaram. Roubaram, mentiram, escravizaram. Negaram direitos em nome de ficções ideológicas. Invocaram a pureza da raça ou a necessidade de construir um novo homem. As narrativas variaram, mas conservaram um ponto em comum: uso e abuso da violência para impor a sua lei.

Por isso, é legítimo olhar a extrema-direita e a extrema-esquerda como duas faces do totalitarismo. Nem uns nem outros gostarão da vizinhança. Mas os factos são o que são.

Os crimes de Estaline rivalizam com os de Hitler. E as perseguições políticas nos países do bloco soviético, na China ou na Coreia do Norte não consta que tenham sido mais brandas e macias do que nos regimes fascistas europeus. Pelo contrário.

Em Portugal, o Estado Novo terá sido um dos mais suaves regimes de extrema-direita da Europa. Em todo o caso, Salazar negava a democracia, sufocava a liberdade e perseguia policialmente os inimigos políticos. Apesar de tudo, e ao contrário de muitos outros, Salazar morreu pobre. Não estava no poder para enriquecer. Vivia genuinamente convencido da sua providencialidade ao país e à sua História. Acreditava ter um mandato e estava decidido a impô-lo. Nunca aceitaria o escrutínio que a democracia prometia. Exercia o poder com a mesma solidão que preconizava para o país: orgulhosamente só. A sua reconhecida inteligência caminhava a par de uma enorme obstinação. Sem ambas, o regime teria caído mais cedo. E quando caiu, a democracia não nasceu sem dor.

Rapidamente se percebeu que democracia e liberdade não significavam para todos a mesma coisa.

Para a oposição radical e de extrema-esquerda, Portugal era a oportunidade que faltava para instaurar, no coração da Europa, uma “democracia popular”. E mesmo este conceito apresentava sabores diferentes, conforme os paladares: soviético para o PCP; chinês, para as esquerdas radicais que mais tarde dariam origem ao Bloco de Esquerda.

O que todas estas correntes recusavam era uma democracia ocidental, considerada burguesa, no pior sentido do termo. O PCP e os grupúsculos que criaram o Bloco de Esquerda preferiam regimes de partido único, como o soviético, o chinês, o albanês, o norte-coreano e outros que tais. Preferiam, mas perderam. Derrotados na rua e nas urnas renderam-se à matriz democrática ocidental. Renderam-se, mas sem nunca renegarem publicamente as ditaduras que os inspiravam e cujos exemplos os levaram a tentar tomar o poder em Portugal.

Saídos de um regime autoritário de extrema-direita e confrontados com a escalada da extrema-esquerda, pouco interessada em respeitar a vontade popular, os portugueses vetaram os extremos. Viraram-se para o centro político, entendido como território não radical. Os bons exemplos ajudavam. E na Europa não faltavam. Governos de centro-direita alternavam com executivos de centro-esquerda. Era possível e desejável governar ao centro.

Mas as crises económicas e as transformações sociais e culturais de diferente natureza alteraram o quadro político.

O centro perdeu força, os extremos recuperaram-na. A militância política abrandou ao centro. O estado do bem-estar na Europa anestesiou a mobilização política das elites. Algumas retiraram-se de cena, incomodadas por aquilo que consideravam ser o excesso de exposição e escrutínio mediático que a atividade política passou a implicar. E para quem já antes se sentia demasiado exposto pela crueza do debate político, as redes sociais foram a cereja no topo do bolo.

Houve, ainda assim, quem permanecesse no seu posto. Mas alguns dos novos atores do centro demonstram ambição a mais e convicção a menos. Desprendem-se de valores que não conhecem ou não partilham, na ânsia de não ficarem fora do arco da modernidade. Entendida a modernidade como o pensamento politicamente correto, globalmente definido, que impõe, entre outras, a ideologia do género como chave da construção social.

Sucede que em política o vácuo não existe. Espaço cedido é espaço (de imediato) ocupado.

O populismo radical de extrema-direita e de extrema esquerda ganhou tração à boleia das dificuldades e da desertificação do centro. O protesto, a negação, a “desconstrução” ganharam adeptos. Aqueles que se sentem esquecidos pelos decisores e abandonados pelo sistema tornaram-se presas fáceis para quem os procura instrumentalizar.

Neste contexto que não é apenas europeu, não deixa de ser curioso que Donald Trump acabe por perder as eleições para uma figura associada ao centro.

Joe Biden ganhou as eleições por muitas razões. Não terá sido escolhido apenas ou sobretudo pelos seus dotes presidenciáveis. Em primeiro lugar, havia um pesadelo chamado Trump. E Biden era o voto útil que permitia afastar o atual Presidente.

Em todo o caso, não faltavam opções. Bernie Sanders e a própria Kamala Harris são personalidades bem mais à esquerda, dentro do Partido Democrático. Disputaram com Biden a investidura à Casa Branca e falharam. Podendo escolher à esquerda, os Democratas optaram pelo centro, como modo de combater e derrotar o populismo de Trump.

A receita para derrotar o populismo de direita não tem de ser mais populismo de esquerda. E a inversa é verdadeira. A constatação de que o populismo pode ser derrotado ao centro é uma das melhores conclusões das eleições americanas.

Ao longo dos últimos quatro anos, a presidência de Trump deu novo alento aos populismos europeus.

Sendo o melhor amigo do Brexit, Donald Trump tudo tem feito para dividir os líderes europeus. Trump vive na ilusão de que uma Europa fraca torna os Estados Unidos fortes. Mas uma Europa frágil e dividida será uma débil aliada, perderá a referência de paz e estabilidade que a carateriza, desde a Segunda Guerra Mundial.

Uma Europa fragilizada e mergulhada em questões internas (ricos contra pobres, egoísmos nacionais, ressurgimento dos nacionalismos, populismos em larga escala etc.) é o sonho de potências como a Rússia ou a China. Mas o declínio europeu constituiria um pesadelo, para os europeus e também para os americanos.

Claro que a União Europeia é criticável por muitas e razoáveis razões. Mas a falência do projeto europeu será sempre a pior das alternativas.

A derrota de Trump não afasta a ameaça populista. Nem cá nem nos Estados Unidos. O próprio Partido Republicano parece recear o desempenho de Trump, uma vez fora da Casa Branca.

Se os barões republicanos não o apoiarem na cruzada obsessiva de contestação da vitória de Biden, Trump até poderia ameaçar com a bomba atómica: deixar o Partido Republicano e lançar um partido “Trumpista”. Compreende-se o receio dos Republicanos. Apesar de quatro anos perturbadores na Casa Branca, 71 milhões de americanos votaram convictamente em Donald Trump. Alguns fizeram-no pela primeira vez. Nunca um candidato à presidência, com a exceção do futuro Presidente Biden, obtivera semelhante votação.

O populismo (de direita ou de esquerda) geralmente não tem razão, mas em geral, tem pessoas. E é necessário ouvi-las. Ignorá-las é pior. O melhor modo de fortalecer os extremos é ignorar as razões e desprezar as pessoas que ocasionalmente os apoiam.

Sempre haverá descontentamentos legítimos e compreensíveis, tanto em democracia, como em ditadura. O problema está em deixar o descontentamento crescer à solta, como bola de neve. Ainda que muito diferentes, tais razões de queixa, algumas de sinal contrário, acabam por se coligar e criar uma mistura explosiva que o populismo (de direita ou de esquerda) cativa e potencia.

Se não existisse um cocktail de razões e de pessoas desesperadas, não haveria condições para capitalizar tais situações. Sem pessoas, o populismo murcha.

Por outro lado, os extremos precisam uns dos outros. Alimentam-se do ódio recíproco. O radicalismo de um lado gera radicalismo do outro. Uma agenda radical de direita abre espaço ao radicalismo de esquerda. E uma agenda radical de esquerda acaba por suscitar o radicalismo de direita.

Em Portugal, a agenda radical imposta pelo Bloco de Esquerda e consentida pelos partidos da (ex?) geringonça faz mais pelo Chega do que André Ventura, sozinho, conseguiria.

E perante a agenda radical (tentativa de regresso às nacionalizações, mentalidade estatizante, eutanásia, aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, eliminação da liberdade de consciência no sistema educativo, manipulação genética, maior controle político sobre o sistema judicial, incluindo Tribunal de Contas entre tantos outros temas), o que faz o centro político? Consente ou promove, no caso do PS; divide-se, “indefine-se” e fraqueja, no caso do PSD e até, por vezes, no do CDS.

Se o centro não dá resposta às inquietações dos eleitores que não se reconhecem na agenda radical de esquerda, o extremo do lado direito agradece.

Se os partidos do centro falharem no debate cultural e mostrarem anemia de convicções, haverá sempre alguém que aparece para erguer as bandeiras que outros deixaram cair. E fazem-no tocando todas as feridas, de um modo cirúrgico, com propostas irrealizáveis, mas que seduzem eleitores órfãos dos valores que o centro arrumou na gaveta.

A subida dos extremos deve-se à falha do centro político e não à qualidade de propostas apresentadas pelos radicais de ambos os lados da paisagem política.

Animados pelo pragmatismo (como governar sem ter ganho as eleições, tanto no continente como nos Açores...) os partidos do centro sentem-se levados a entenderem-se com as “extremas”.

O PS fez com António Costa o que antes nunca havia feito. Já o PS de Mário Soares trocou as voltas à extrema-esquerda e barrou o caminho a quem pretendia impor a ditadura do proletariado. Soares esteve bem acompanhado, mas foi crucial. E nunca quis governar com ninguém à esquerda do PS. Quando chefiou governos, Mário Soares chegou a entender-se primeiro com o CDS e depois com o PSD. Com o PC e com a UDP (um dos partidos que está na base do Bloco de Esquerda), nunca.

A experiência da geringonça é apresentada pelo PSD como alibi para se entender com o Chega, nos Açores. O PS, de facto, não tem autoridade para criticar tais entendimentos. Mas um erro não justifica outro. Há barreiras que não deveriam ser ultrapassadas. E o PSD não o ignora.

Quanto mais tacticistas forem os partidos do centro, mais permeáveis se tornam à chantagem dos partidos radicais que assim se convertem na chave do sucesso de algumas soluções governativas.

Para mudar este contexto os partidos do centro têm que repensar valores e princípios. Sem convicções não haverá tacticismo que nos valha.

Comentários
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  • António J G Costa
    25 nov, 2020 Cacém 11:52
    Numa Democracia quando as pessoas têm fome queixam-se legitimamente. Numa Ditadura quando tem fome, tem de dizer que estao a fazer dieta, e de que estão muito bem. Reclamar coisas que não funcionam nas Ditaduras, equivale a ser "inimigo do povo", "inimigo de Deus", "terrorista", uma sentença de prisão. As Ditaduras não resolvem os problemas sociais, apenas perseguem e matam as pessoas que se atrevem a falar neles!
  • César Augusto Saraiva
    24 nov, 2020 Maia 08:34
    Excelente lição de Política a sério; Obrigado!
  • Cidadao
    24 nov, 2020 Lisboa 08:20
    Boa análise. O problema é que de momento, a única coisa que conta, é ter o Poder. E quando assim é...