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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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​Narcos: quem é o mau da fita?

23 set, 2022 • Opinião de Henrique Raposo


A elite que recusa a meritocracia por caminhos legais do pobre é a mesma elite que depois ganha dinheiro sujo com o pobre transformado em criminoso. É o grande pecado do snobe: só consegue ver o pobre em papéis caricaturais, o pobrete manso, de um lado, ou o criminoso, do outro lado.

Para que serve a fé? Para julgarmos os outros de forma moralista como se fôssemos juízes executores a pairar acima do caos da condição humana? Ou serve para esticarmos a nossa imaginação moral e empatia em relação aos outros, mesmo em relação àqueles que, à partida, nos causam medo? Julgo que a única resposta válida é a segunda. Neste esforço de imaginação moral – e não moralista – a ficção (romance, filme, série) é fundamental. Quando a garotada me pede livros fundamentais para a evolução da fé, eu recomendo sempre ficção. "Deixem os tratados para depois, primeiro leiam ou vejam personagens que estiquem a vossa empatia, a vossa imaginação moral em relação, por exemplo, às origens do mal". Por exemplo, a série Narcos, sobretudo a menos conhecida "Narcos México", é um desafio notável. À partida, é fácil julgar os narcotraficantes como meros delinquentes e assassinos. E são, sem dúvida. Mas isso é só o ponto de partida, não o ponto de chegada.

Estou a reler “Primitive Rebels” de Hobsbawn, um livro da faculdade, e a pensar numa coisa que ele diz sobre o banditismo clássico e pré-mafioso: estes gangues são muitas vezes respostas sociais a situações de extrema injustiça e pobreza. Não é por acaso que Escobar se reveste com a pele de Robin dos Bosques; era de facto amado por grande parte do seu povo em Medellín; esse povo, usado e abusado pelas elites snobes ligados ao partido do poder, respeitavam e amavam Escobar; não o seguiam apenas por medo. Se se lembrarem dos grandes assaltantes de bancos americanos, como Dillinger, vão encontrar a mesma reação: o povo adora esse assaltante, que vê como herói romântico que atormenta o “sistema” opressor.

De resto, quer na versão colombiana, quer na versão mexicana, os grandes vilões retratados por Narcos não são os narcotraficantes, mas as elites snobes. Estas elites são fechadíssimas, não deixam entrar ninguém de fora através do mérito e do trabalho, até porque a economia é corrupta – um pobre está ali destinado a ser pobre. Neste contexto, muitos narcos assumem uma posição de revolta contra esta sociedade pobre e estratificada, recusam a posição de pobrezinho manso e usam o crime de facto enquanto movimento de ascensão social e de revolta contra o status quo.

Isto legitima os assassínios e o crime? Não. Mas dá-lhes o contexto onde eles podem ocorrer naquela dimensão. Só uma sociedade profundamente injusta e snobe à partida pode criar o caldo onde operam narcotraficantes daquela dimensão e ambição. Nem todos são “bandidos sociais”, com certeza, muitos só querem poder e impunidade, a rebeldia pela rebeldia. No entanto, há aqui um lastro evidente de "bandido social", que, não por acaso, acaba por ter o apoio tácito de boa parte da população. Moral da história? A elite que recusa a meritocracia por caminhos legais do pobre é a mesma elite que depois ganha dinheiro sujo com o pobre transformado em criminoso. É o grande pecado do snobe: só consegue ver o pobre em papéis caricaturais, o pobrete manso, de um lado, ou o criminoso, do outro lado.

Na saga Narcos, todos são vilões. Todos estão nos círculos do inferno. Mas quem é que está nos círculos mais fundos do cone infernal? A resposta não é óbvia.

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