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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Inveja: duas saídas morais

09 jul, 2021 • Opinião de Henrique Raposo


Repare-se que Ferrante não está no pensamento mágico e nas falsas esperanças sobre o ser humano. Ela não nega a inveja e a rivalidade entre amigos. Está apenas a dizer que essa inveja não tem de ser o ponto de chegada da conversa – o defeito de Thomas Bernhard.

Ferrante é muito cá de casa. A saga napolitana é, sem dúvida, um dos projectos literários que mais me tocou. Tocar-me-ia em qualquer contexto; ter-me-ia sensibilizado mesmo se eu tivesse nascido num berço de caxemira e rodeado por um exército de amas e serviçais. Mas claro que me tocou ainda mais devido às evidentes parecenças entre o meu percurso e o percurso de Lenu, a miúda do bairro pobre que é a narradora e a protagonista da saga “Amiga Genial”.

Thomas Bernhard não é cá de casa. Os meus austríacos são os da geração anterior à fragmentação do império austríaco, sobretudo Zweig. A razão da minha distância em relação a este austríaco azedo, Bernhard, não é só estilística. Sim, aprecio muito mais o estilo clássico de Ferrante do que os ziguezagues e os vórtices pós-modernos e pós-narrativos de Bernhard. Mas o motivo da distância também está no substrato moral da narração. Ferrante é dura, não esconde nada sobre a natureza humana, mas não odeia a humanidade. Ao invés, através do típico mal-estar austríaco do pós-guerra, Bernhard torna-se enjoativo na sua morrinha pessimista e cínica. Se o optimista pode ser aborrecido, o mesmo pode acontecer com o pessimista apocalíptico. Ambos não saem da mesma nota. Imaginem uma peça musical sem movimento; imaginem uma sinfonia que é a sucessão interminável da mesma nota – é assim a literatura de Bernard, o som da estática.


Há dias li “O Náufrago" e pensei de imediato no contraste com “A Amiga Genial”. O narrador é um pianista que se sente esmagado pelo talento de um colega e que, por isso, acaba por abandonar a carreira. Não se consegue livrar da sensação de inferioridade, não consegue lidar com a ideia de que nunca será o número um. O livro, de resto, é a repetição interminável desta inveja que se alimenta a si mesma num vórtice. Ora, em “Amiga Genial”, Lenu sente inveja da amiga, Lila. Quando olha para Lila, Lenu vê um ser alado, um anjo, uma inteligência inexplicável, um advento sobrenatural. No entanto, Lenu aguenta-se, sobrevive, trabalha, esforça-se, faz desse temor quase litúrgico pela amiga um motor de busca e de aperfeiçoamento e, no final, como sabemos, é Lila quem acaba por dizer, “Lenu, és a minha amiga genial”. Repare-se que Ferrante não está no pensamento mágico e nas falsas esperanças sobre o ser humano. Ela não nega a inveja e a rivalidade entre amigos. Está apenas a dizer que essa inveja não tem de ser o ponto de chegada da conversa – o defeito de Thomas Bernhard. Essa tensão é apenas o ponto de partida. Se o casamento é a anulação da rivalidade no ‘nós’, uma boa amizade vive da rivalidade. Amigas e rivais será sempre um bom título.


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