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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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​O Estado de direito e a UE

16 jul, 2021 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


A Polónia pôs em causa a prevalência do direito comunitário sobre o direito nacional dos países membros da UE. A Hungria procura na Rússia e na China possíveis alternativas aos fundos de Bruxelas, dada a condicionalidade destes. Condicionalidade que A. Costa tentou impedir.

O Tribunal de Justiça da UE considerou que a reforma judiciária na Polónia viola o direito europeu. Por exemplo, o Supremo Tribunal polaco tinha sido alvo de purgas - o Governo polaco afastara juízes que não lhe agradavam, sob o pretexto de serem “comunistas”.

O Supremo Tribunal da Polónia defende que o Governo polaco não tem que obedecer a exigências da UE sobre a independência do poder judicial relativamente ao poder político, independência que é uma das características da democracia liberal.

Por sua vez, o Governo polaco solicitou àquele tribunal que verificasse se várias disposições do Tratado da UE são ou não compatíveis com a constituição polaca. Assim se põe em causa um princípio básico da construção europeia, segundo o qual as leis comunitárias, bem como as sentenças do Tribunal de Justiça da UE, prevalecem sobre o direito nacional e as sentenças dos tribunais dos Estados membros. Trata-se de um grave ataque à ordem jurídica da UE, que Bruxelas não poderá ignorar.

Esta iniciativa polaca, que não teve eco entre nós, não é semelhante à recente intervenção do Tribunal Constitucional da Alemanha. O tribunal de Karlsruhe apreciou a decisão do Tribunal de Justiça Europeu (TJE) sobre a legitimidade da compra pelo BCE de dívida pública, confirmando que o TJE aplicou a lei europeia.

O que fez o Tribunal Constitucional alemão é criticável, pois não tem poderes legais para apreciar decisões do TJE, e já foi criticado pela Comissão Europeia (CE). Mas o processo posto pelo governo polaco no Supremo Tribunal da Polónia é bem mais grave. O governo polaco põe em dúvida que a lei europeia se aplique ao seu país – é outro patamar na contestação à ordem jurídica da UE.

E é irónico que, enquanto os governantes polacos desafiam as leis da UE, várias personalidades polacas considerem que medidas tomadas por esses governantes violam a constituição do seu país.

Entretanto, a Hungria ainda não viu ser aprovado o seu Plano de Recuperação de Resiliência, a “bazuca”. A CE retarda essa aprovação, que terá depois de ser ratificada pelo Conselho, provavelmente esperando que Victor Orbán recue em algumas infrações ao Estado de direito.

O primeiro-ministro húngaro tem distribuído generosamente pelos seus amigos políticos os fundos estruturais que o seu país recebe de Bruxelas desde a adesão à UE em 2004. Mas, face às críticas de Bruxelas, já começou a procurar outras fontes externas de financiamento, na Rússia e na China sobretudo.

V. Orbán mantém boa relações com Putin. Há importantes investimentos russos na Hungria, incluindo uma linha de caminho de ferro de Budapeste a Belgrado.

A Hungria foi o único Estado membro que bloqueou um protesto da UE contra as leis de segurança que Pequim aplicou a Hong-Kong. A China irá instalar uma universidade em território húngaro, envolvendo um enorme investimento financiado por empréstimos de um banco chinês. Diz-se que esta universidade terá tanto dinheiro quanto todo o sistema educativo húngaro. Recorde-se que V. Orbán forçou a saída do seu país da universidade promovida e financiada pelo milionário judeu George Soros.

Uma terceira nota sobre o Estado de direito na UE. No artigo do eurodeputado Paulo Rangel no “Público” da passada terça-feira recorda-se que, em julho de 2020, António Costa foi a Budapeste assegurar a V. Orbán que as questões do Estado de direito não deveriam ser ligadas à “bazuca” que se perfilava no horizonte.

Esta posição do primeiro-ministro português foi derrotada na cimeira europeia que aprovou o fundo de recuperação e resiliência, cuja ativação ficou assim sujeita à condicionalidade do respeito pelo Estado de direito. Face ao desacordo por parte da Hungria e da Polónia quanto a tal condicionalidade, “Merkel acabou por engendrar uma solução totalmente à margem da lei”. Em resumo, a condicionalidade não seria aplicada, na prática, até que o TJE se pronunciasse sobre os processos movidos por Varsóvia e Budapeste. O Parlamento Europeu nunca aceitou esta “solução”, escreveu Rangel.

A lei húngara sobre os direitos, ou a falta deles, das minorias sexuais veio estragar este lamentável arranjo. Mas a presidência portuguesa chutou para canto, com o argumento de que teria de se mostrar “neutral”. Ainda bem que Portugal tem no PE deputados, como Paulo Rangel, que, com conhecimento de causa, desfazem as “narrativas” que os governantes nos querem impingir.

Comentários
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  • Ivo Pestana
    16 jul, 2021 Funchal 11:41
    A UE é um mal necessário. Precisamos dela, senão passaríamos bem sem a mesma.
  • Ivo Pestana
    16 jul, 2021 Funchal 11:41
    A UE é um mal necessário. Precisamos dela, senão passaríamos bem sem a mesma.