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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Escravatura em Odemira

05 mai, 2021 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Milhares de imigrantes asiáticos são capturados e escravizados por redes criminosas. O Presidente da Câmara de Odemira queixa-se de não ser ouvido sobre esta tragédia humana e nem sequer ser informado sobre as empresas que se instalam no seu município. A reação governamental revela pelo menos um erro político e uma crescente atitude autoritária que se aproxima de Trump, Putin ou Erdogan.

A pandemia trouxe para a atualidade informativa a existência de uma forma de escravatura, que há anos se faz sentir na região de Odemira, mas que não parecia perturbar a opinião pública. Não é exagerado falar em escravatura, quando imigrantes asiáticos, que não entendem a língua portuguesa, são capturados por redes criminosas, que os exploram barbaramente com o silêncio e a complacência de empresas agrícolas e de outras entidades.

Os imigrantes não se queixam porque sabem que, se falarem, poderão ser mortos pelos criminosos que os aliciaram. E se algum consegue fugir a essas máfias internacionais, estas vingam-se em familiares do imigrante que ficaram no país de origem.

Alberto Matos, diretor nacional e delegado em Beja da Associação Solim-Solidariedade Imigrante, afirmou que o número de imigrantes no distrito poderá atingir os 20 mil, uma vez que "muitos chegam a Portugal, trazidos pelos contratadores de mão-de-obra temporária, com vistos turísticos, e depois ficam de forma ilegal na região". Alberto Matos foi categórico: "sem imigrantes ilegais, não há colheitas rentáveis", disse ao “Jornal de Notícias”, acrescentando que existem "autênticos negreiros" no recrutamento de mão-de-obra.

Muitos imigrantes ficam sem quaisquer documentos, que lhes são retirados pelas redes, e por vezes também por patrões, que assim têm à disposição uma mão-de-obra baratíssima e incapaz de reivindicar. Se isto não é escravatura num modelo moderno, não sei o que será...

As redes de tráfico de pessoas movimentam muito dinheiro. José Alberto Guerreiro, Presidente da Câmara de Odemira, referiu que habitações caras e automóveis de topo de gama são transacionados usando notas. E que se detetam ali “trabalhadores-fantasma”, imigrantes que não chegam a trabalhar na agricultura local. Por outro lado, o Presidente da Câmara afirmou ter denunciado abusos e diz acreditar que a dimensão do crime de tráfico de seres humanos é muito maior do que a envolvida nos inquéritos em curso. Também lamentou não ser sequer informado sobre as empresas que se instalam no seu município, porque a lei não prevê tal informação.

A agricultura portuguesa e, em particular, aquela que explora zonas de regadio, precisa de imigrantes, sobretudo para trabalhos sazonais. Mas não é aceitável que recorra ao trabalho de gente que vem de muito longe para ser explorada de forma desumana. E é chocante que o país não se incomode com uma tal situação; salvo raras e honrosas exceções, só por causa da pandemia o caso veio para a atualidade da comunicação social.

Não é só o facto, bem conhecido, de uma parte desses imigrantes viver em “condições de insalubridade habitacional inadmissível”, como há dias admitiu o primeiro-ministro A. Costa, que classificou o caso de “violação gritante dos direitos humanos”. Mas foi o mesmo primeiro-ministro que, em 2019, aprovou um regime especial e transitório (dez anos) para o perímetro de rega de Mira, instalando contentores para alojar imigrantes.

Reagindo a essa decisão num artigo no “Público”, Helena Roseta classificou, então, o regime especial de ser “uma violação grosseira do direito à habitação consagrado na nossa Constituição e na Lei de Bases da Habitação”. Acrescentava H. Roseta que “esta Resolução, que se preocupa com o respeito pelas normas ambientais, paisagísticas e urbanísticas, esqueceu as pessoas. Os contentores são agora equiparados a ‘estruturas complementares da atividade agrícola’, como se a habitação para os trabalhadores fosse a mesma coisa que o armazenamento de alfaias agrícolas”.

Neste triste caso de Odemira a falta de respeito pelos direitos humanos não tem a ver apenas com a exploração dos imigrantes. Respondendo ao surto epidémico local de “covid”, o Conselho de Ministros determinou a requisição civil de uma unidade hoteleira onde existem 260 casas, 160 das quais são propriedade de particulares, alguns dos quais têm ali a sua habitação permanente. A requisição visava instalar nesse empreendimento imigrantes em isolamento por causa da pandemia.

Só que a Ordem dos Advogados afirmou que a requisição põe em causa direitos humanos e, tendo acabado o estado de emergência, só é possível por decisão judicial, visto envolver residências privadas. Esta requisição revela incompetência governamental, manifestando uma crescente atitude autoritária que se aproxima de Trump, Putin ou Erdogan.

Comentários
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  • Cidadao
    06 mai, 2021 Lisboa 17:30
    O que se questiona é as pessoas serem expulsas de suas casas para alojar outras pessoas. Ninguém considera os migrantes culpados - embora depois disto seja de temer algumas situações em que são eles que vão pagar. Mas o governo que não só colaborou na situação dramática deles, como assobiou para o lado durante anos e só se mexeu agora que o caso passou a fronteira e ainda por cima desastradamente ao roubar habitação a umas pessoas para a dar outras mediante a força brutal dum pequeno exército vindo pela calada da noite como ladrões, para não enfrentar resistência. Quer dizer... Puseram o relógio a andar para trás e voltámos aos tempos do PREC? E aposto que na Providência Cautelar que já entrou, o governo vai invocar "superior interesse público" como se não houvesse alternativas a não ser roubar as pessoas. Se a moda pega... O melhor é armadilhar as casas e propriedade para quando o governo se lembrar de a dar a outros...
  • Maria Oliveira
    05 mai, 2021 Lisboa 19:55
    Excelente artigo. Anda por aí a "debater-se" o racismo, o colonialismo, a escravatura (de tempos passados) e ninguém, com responsabilidades, olhou para esta deplorável realidade vivida num país da UE, em pleno séc. XXI! Aliás, no que respeita ao chefe do governo, até colaborou nela. Não sei qual é a solução para um problema tão complexo, atentas as ameaças de que estes imigrantes são vítimas por parte dos que os exploram. Sei apenas que não podemos "olhar para o lado" porque é assim que as tragédias começam.