26 ago, 2024 • Paulo Cardoso do Amaral
Como já referi no artigo anterior sobre este tema, a web3 vai concretizar as duas propriedades mais convenientes das Super App, ou seja, (i) a conveniência de uma só identidade digital comum às interações com múltiplos fornecedores, e (ii) a integração do sistema de pagamentos nessa mesma conveniência.
Houve, entretanto, uma evolução significativa da regulação europeia para o permitir. É que, em abril de 2024, foi publicada uma legislação sobre “os meios de identificação eletrónica de pessoas singulares e coletivas abrangidas por um sistema de identificação eletrónica”, e o objetivo deste diploma inclui, muito convenientemente, “fornecer e reconhecer carteiras europeias de identidade digital”.
Isto é muito importante, porque já estabelece a forma como as pessoas jurídicas na UE vão passar interagir e a transacionar digitalmente, seja no mundo virtual, seja no real. É, na verdade, a resposta da UE às referidas Super App orientais. É boa ideia, visto que o AliPay tem estado a tentar expandir-se para a Europa há anos (como podemos comprovar com a publicidade nos campeonatos Europeus de futebol), o que não seria bom para a nossa economia.
Felizmente, o regime de proteção de dados na UE, bem como a complexidade do sistema de pagamentos, tem tornado difícil, senão mesmo impossível, a apropriação digital das transações económicas do mundo não-virtual pelas Super App orientais. Porém, essa fricção também tem sido desfavorável ao nosso espaço geopolítico e é por isso que as wallet endereçadas pela legislação referida se tornam tão importantes. Então o que vai mudar?
Se a comunicação é a base de tudo na economia, o marketing vai sofrer uma disrupção significativa, com um novo canal de comunicação mais conveniente e capaz de substituir os anteriores para, atrevo-me a dizer, a maioria das transações.
Já hoje utilizamos carteiras digitais nos smartphones como canal de comunicação para os meios de pagamento baseados em contas bancárias, com ou sem cartões de crédito/débito envolvidos. Também utilizamos o mesmo tipo de carteiras para guardar bilhetes de avião, e até algumas das nossas credenciais, como o cartão de cidadão, carta de condução ou até o cartão de dador de sangue. Porém, não há atualmente uma única carteira digital capaz de abarcar todas essas funcionalidades. O próprio sistema de pagamentos parece inclusivamente uma barreira impossível de transpor nas wallet digitais, para além do que é possível com exemplos específicos como o fantástico MBWay ou o Apple Pay.
Pois bem, tudo isso vai pertencer ao passado. Com as novas carteiras digitais, consumidores finais, empresas, Estado, ou qualquer outro tipo de organização, vão poder passar a comunicar através das mesmas, o que torna muito mais conveniente as transações do dia a dia. Tal como tudo o que é interação móvel, é um tipo de comunicação que não privilegia o conteúdo da web, estando essencialmente direcionado ao contexto. É, portanto, o marketing contextual que conta em todas as suas vertentes, sabendo que a componente social é sempre a rainha dos custos de mudança que geram a tão ambicionada captura de valor.
Em português, os e-money token (EMT) dão pelo nome de criptofichas de moeda eletrónica. É uma nova forma de emitir Euros em formato eletrónico, separados das contas bancárias e geridos com tecnologia web3. Este tipo de moeda eletrónica já existe em circulação na UE desde julho de 2024.
Como token que são, assentam que nem uma luva nas novas wallet digitais preconizadas pela legislação acima referida. Os EMT são uma nova forma de pagamento digital entre wallet sem qualquer intervenção do sistema financeiro para além do fornecedor web3 devidamente licenciado.
O pagamento é instantâneo para qualquer das transações despoletadas pela respetiva wallet e é isso que faz toda a diferença – não é a nova forma de transferir valor em si que origina a vantagem. O ganho está na identificação digital única das pessoas jurídicas que vai permitir todos os outros tipos de interação para além dos pagamentos e de forma semelhante a uma Super App. Sim, vai ser a revolução.
A fidelização é uma dessas interações, e muito importante no marketing, pois, para além de criar custos de mudança, também permite executar a discriminação de preços tão importante para a captura de valor. Ora, a fidelização carece de identificação digital com valor jurídico, bem como de trocas de valor, como é o exemplo dos descontos.
Segundo a lei, pode até tomar a forma da moeda eletrónica emitida pela entidade fornecedora, ou por um conjunto limitado das mesmas. Podemos assim antecipar uma transição dos sistemas de fidelização atuais para as referidas wallet assim que estas comecem a ter tração no mercado.
É o problema do ovo e da galinha, mas assim que o primeiro competidor tomar posição a sério, seguramente ninguém vai querer ficar de fora. Afinal, se até a chave móvel digital teve tanto sucesso com a simples identificação jurídica para aquela identidade digital limitada essencialmente a assinaturas e ao login em alguns fornecedores de serviços na web, vamos ver seguramente taxas de crescimento muito maiores e uma intensidade de uso acrescida destas novas wallet, em função da utilidade imaginada pelos fornecedores e percebida pelos utilizadores. Quem será então o primeiro?
O marketing contextual georreferenciado em tempo real não é novidade. O que é novidade é a conveniência e o tipo de transações ao qual vai poder ser aplicado. A ideia não é ser a wallet a aplicar as ações de marketing, pois isso iria contra a proteção de dados pessoais na UE, o que destruiria a privacidade que tanto apreciamos. Consequentemente, vão continuar a ser as entidades fornecedoras a executar as ações de marketing com base na informação que os consumidores partilharem com as mesmas, e é aí que reside a grande diferença do novo ambiente competitivo.
Para os consumidores finais, o que antes era uma relação um-para-um através das aplicações nos smartphones, passa a ser uma relação de um-para-muitos com base na mesma identidade digital com identificação jurídica, algo só possível até hoje nas Super App.
Sendo essa relação extremamente conveniente, permite inclusivamente que várias dessas entidades façam parte da mesma transação comercial em tempo real, o que só agora se torna possível. É o consumidor que decide quem faz parte das transações e que informações está disposto a partilhar com cada uma delas.
Pode até dar-se o caso de a sua identidade real ser completamente privada sem que os fornecedores tenham conhecimento de quem é a pessoa jurídica em causa, e até da sua morada, apesar de essa mesma identificação estar subjacente às transações. Tal é possível dada a lei que foca precisamente essas as características e funcionalidades das novas wallet. É novo e é extraordinário!
Uma vez que toda a interação é (i) efetuada em tempo real, (ii) é geolocalizada através de smartphones, e (iii) as redes sociais também podem fazer parte do processo, cabe aos fornecedores convenceram os utilizadores a partilhar a informação relevante que lhes permita beneficiar a relação dos dois lados com técnicas de marketing a fazer apelo ao contexto disponibilizado pelos consumidores. É um tipo de marketing extremamente analítico e que carece de execução também em tempo real. O sentido de urgência e o valor emocional, social ou não, farão magia para o crescimento de cada ecossistema e para a captura de valor.
Viva o marketing digital das carteiras digitais da web3.
Paulo Cardoso do Amaral, Professor da Católica Lisbon Business School & Economics.
Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica-Lisbon School of Business and Economics.